IstoÉ.com, 12/02/2014
Justiça do absurdo
Por Paulo Moreira leite
No dia 24 de janeiro, o
ministro Ricardo Lewandovski deu parecer favorável ao pedido de José
Dirceu, que pretende exercer o direito legal de trabalhar fora da
Papuda, para onde foi encaminhado no cinematográfico voo de 15 de
novembro. Embora fosse uma decisão de um ministro do STF, o juiz Bruno
Ribeiro, da Vara de Execuções Penais, não deu encaminhamento imediato,
permitindo que Dirceu ficasse preso, em regime fechado, num prazo
absurdo que completará 90 dias na semana que vem.
Ontem, depois de voltar aos trabalhos, Joaquim Barbosa revogou a decisão de Lewandosvski.
O direito de Dirceu
trabalhar é legalmente indiscutível. Foi questionado depois que surgiu a
versão, nascida numa conversa ouvida por um repórter na mesa ao lado de
um restaurante de Salvador, de que um secretario de Jacques Wagner,
governador da Bahia, havia conseguido falar com o ex-ministro através de
um aparelho celular.
Comprovou-se, em
investigação oficial no presídio, que a história era uma pura cascata do
secretário -conhecido entre colegas de governo por um comportamento
falastrão – que foi divulgada sem o devido cuidado. No dia em que isso
teria acontecido, sequer houve visitas na Papuda. O próprio Dirceu nem
saiu da cela. Embora a investigação já tivesse se encerrado, tão banal
que foi possível terminar antes do prazo, o juiz Bruno Ribeiro não deu
curso a liminar de Lewandovski, alegando que havia tempo para novas
apurações. Essa decisão permitiu que Barbosa retornasse do recesso e
revogasse a liminar. Detalhe: Barbosa fez isso contrariando parecer da
procuradora da República Márcia Milhomens Corrêa se manifestou
favoravelmente ao pedido de trabalho de José Dirceu. Sexta-feira passada
Milhomem deu parecer favorável.
A decisão
criou uma situação nova no STF. Não se compreende por que razão o juiz
Bruno descumpriu a decisão de Lewandovski, que falava em nome da mais
alta corte do país.
Também não se compreende por
que Joaquim Barbosa não deixou que o plenário do STF tomasse a decisão,
como é recomendável em situações desse tipo. Embora já tenham ocorrido
antecedentes, existe a interpretação de que o regimento interno do STF
diz que só o juiz que prolatou a decisão tem direito de revogá-la.
A única forma de compreender
a situação criada pela decisão do presidente do STF é política, traço
principal do julgamento da AP 470, concluído com penas fortes para
provas fracas.
Para ouvir uma opinião
fundamentada a respeito, entrevistei o professor de Direito Luiz
Moreira, doutor em direito pela UFMG, membro do Conselho Nacional do
Ministério Público e um dos principais críticos da
“judicialização,” aquele processo em que os tribunais ocupam espaços
que os regimes democráticos reservam a luta política. Leia a
entrevista:
PERGUNTA: COMO EXPLICAR A DECISÃO DE JOAQUIM BARBOSA?
RESPOSTA: Explica-se a partir de uma falta de identidade do Supremo
Tribunal Federal. Com a redemocratização do país, tentou-se construir a
ideia de que o STF era o tribunal dos direitos fundamentais. Mas isso
tem se mostrado falso, como se viu no julgamento. Veja bem, apareceram
muitas contradições e incoerências, como mostra o caso do ex Ministro
José Dirceu. Ele está preso em regime fechado há noventa dias. E a
decisão de Joaquim Barbosa cristaliza uma situação de absoluto
desrespeito ao sistema jurídico que ele, Ministro do STF, deveria
proteger. Fosse ele um juiz dos direitos fundamentais deveria, de
ofício, conceder ao Ministro José Dirceu o regime condizente com sua
pena.
PERGUNTA : O QUE OS MINISTROS DEVERIAM FAZER?
PERGUNTA : O QUE OS MINISTROS DEVERIAM FAZER?
RESPOSTA: Um Ministro do STF
tem todas as garantias possíveis para imprimir à atuação do Tribunal uma
postura condizente com a defesa mínima dos direitos dos condenados.
José Dirceu está preso, está sob a tutela do Estado. O Judiciário não
pode fazer de conta que ele não tem direitos. Há um jogo de faz de conta
em curso. Pretende-se fazer de José Dirceu um troféu. Qualquer coisa
pode ser feita para garantir que tal objetivo seja alcançado.
PERGUNTA : QUAL A MEDIDA CONCRETA?
PERGUNTA : QUAL A MEDIDA CONCRETA?
RESPOSTA - A saída jurídica para estancar esta sangria dos direitos é o
Habeas Corpus. No caso dele, o processo de autorização para ele
trabalhar se exauriu. A burocracia da VEP já se manifestou; o Ministério
Público deu parecer favorável. Como José Dirceu passaria a cumprir sua
pena em regime semi aberto, Joaquim Barbosa providenciou, com sua
decisão, que o condenado não fosse submetido ao que prescreve a lei
penal. Quer dizer, ocorre com ele o que acontece em Guantânamo. A
mensagem é clara: José Dirceu não pode sequer ter direito a cumprir sua
pena. Seus direitos são boicotados por quem caberia exigir que sua pena
fosse efetivamente cumprida. Este não é o papel de um Juiz.
PERGUNTA : O QUE SE PODE FAZER NUMA SITUAÇÃO COMO ESTA?
PERGUNTA : O QUE SE PODE FAZER NUMA SITUAÇÃO COMO ESTA?
RESPOSTA : A situação é muito delicada. Todos parecem fugir de suas
responsabilidades. Há um clima de absoluta covardia institucional. Onde
está o Ministério Público? Onde está a Defensoria Pública? Há Comissões
de Direitos Humanos? Tudo se justifica se tratar de uma vingança contra
José Dirceu?
PERGUNTA : COMO SE CHEGOU A ESSE PONTO?
RESPOSTA : Com a AP
470, o moralismo assumiu um protagonismo só existente nos Estados de
Exceção. No estágio em que vivemos a política é a grande perdedora. O
messianismo patriótico que antes era exercido pela militares é hoje
exercido por figuras oriundas dos órgãos de controle. Joaquim Barbosa e
outros personagens são exemplos desse messianismo que tenta produzir
saídas a partir do direito penal máximo.
PERGUNTA: ESTAMOS FALANDO DE UMA POSTURA QUE AMEAÇA A DEMOCRACIA ...
PERGUNTA: ESTAMOS FALANDO DE UMA POSTURA QUE AMEAÇA A DEMOCRACIA ...
RESPOSTA: O caso do cinegrafista morto revela este paradoxo. Não se
pode querer que a morte de um profissional que cobria uma manifestação
se transforme na criminalizarão das manifestações. A resposta há de ser
cirúrgica. Há duas responsabilidades em jogo. As empresas de comunicação
têm que dotar seus funcionários de equipamentos de segurança (colete,
capacetes etc.). Cabe a polícia encontrar os responesáveis pelo crime,
que devem ser entregues a Justiça. O resto é populismo penal.
PERGUNTA : DÁ PARA EXPLICAR ESSA SITUAÇÃO?
RESPOSTA : O moralismo quer fingir que não vivemos conflitos próprios às
sociedades como à brasileira, que pleiteia direitos. Então a política
pública não pode ter um viés de direito penal, mas de direito social.
PERGUNTA: HÁ NESSAS RESPOSTAS UMA PERSPECTIVA MORALISTA?
PERGUNTA: HÁ NESSAS RESPOSTAS UMA PERSPECTIVA MORALISTA?
RESPOSTA: Sem dúvida. A pena de José Dirceu, por exemplo, deixou de ser
jurídica para ser moralista. Por isso contra ele vale tudo. No caso do
cinegrafista morto não se discute o que as empresas de comunicação devem
fazer para proteger seus funcionários, nem que infelizmente mortes em
manifestações são geralmente produzidas pelos órgãos de segurança. Ao
contrário, procura-se crimininalizar os movimentos sociais,
classificando como terrorista suas ações.
PERGUNTA – DÁ PARA ENXERGAR O QUE VEM POR AÍ?
RESPOSTA -
Fica claro que há uma clara construção ideológica de deslegitimacao da
política e a entronização do sistema de justiça (Ministério Público e
STF), que caminha para a criminalizarão dos Partidos e do Congresso
Nacional. Com isso, o sistema de justiça sufocará os movimentos sociais,
impossibilitará o surgimento de lideranças populares e se constituirá
como Poder Moderador, acima dos Poderes e da democracia.
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