4 lições sobre leis anti-terror
Por Marcelo Zero
Os Mapuches são um povo indígena do centro-sul do Chile. Desde a
colonização, lutaram muito para tentar manter as suas terras. Penaram
bastante e em vão. Hoje, a maioria dos Mapuche vive marginalizada nas
cidades. Trata-se de uma longa história de muitos capítulos escritos com
horror e sangue.
Mas o último capítulo dessa saga trágica foi escrito com a tinta
obscura das leis antiterroristas. Já em plena democracia, o governo de
Ricardo Lagos, com o intuito de acabar com uma rebelião Mapuche, que
usava o incêndio dos equipamentos de grandes madeireiras como método de
sua luta desesperada para recuperar terras, modificou e usou a lei
antiterrorista de Pinochet para enquadrar os rebeldes.
Assim, líderes e ativistas Mapuches foram presos e julgados em tribunais militares. Alguns ficaram em prisão preventiva por quase um ano, para depois serem libertados sem julgamento. A rebelião acabou em 2002, mas os Mapuches ficaram com o estigma de terroristas e a democracia chilena ficou com marca da intolerância herdada de Pinochet.
Os membros da Câmara dos Lordes do Reino Unido são bem diferentes
dos Mapuches. Nunca perderam suas terras e estão muito longe de serem
marginalizados. Embora tenham perdido muito prestígio e poder, os Lordes
tinham, até 2005, a prerrogativa de revisar judicialmente leis já
promulgadas.
Pois bem, foi o que se atreveram a fazer com a Lei de Segurança e
Antiterrorismo que havia sido promulgada, no Reino Unido, logo após os
atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque. Tal lei permitia,
em sua Seção 23, a detenção por tempo indeterminado, sem processo legal,
de suspeitos estrangeiros de terrorismo. Dito e feito. Começaram
a se acumular em prisões britânicas, principalmente na de Belmarsh,
detentos sem processo legal e sem julgamento. Os Lordes não gostaram.
No julgamento que foi considerado o mais importante dos últimos 50
anos na Grã-Bretanha, os Lordes decidiram, em 2004, que a Seção 23 da
lei em questão violava a Convenção Europeia de Direitos Humanos,
assinada pelo Reino Unido.
Lord Hoffman, com sua grande eloquência, disse em seu voto que: A
verdadeira ameaça à vida da Nação, no sentido do povo poder viver de
acordo com suas leis tradicionais e seus valores políticos, não vem do
terrorismo, mas de leis como essa.
Contudo, a eloquência de Hoffman e o resultado do julgamento não
foram suficientes para debelar essa ameaça. Hoje, os detidos podem
ainda ficar incomunicáveis e sem o devido processo legal por 28 dias e
as autoridades ainda têm grande poder discricionário de atuação.
Com certeza, a decisão dos Lordes não foi suficiente para
proteger Jean Charles, o brasileiro executado com 11 tiros na cabeça num
metrô de Londres, em 2005. Jean Charles perdeu sua vida e a Câmara dos
Lordes perdeu, também em 2005, pouco depois do grande julgamento, as
suas prerrogativas judiciais.
Guantánamo, por sua vez, é bem diferente das Câmaras dos Lordes. As
pessoas que por lá passam, e ficam, não tem nenhum prestígio, riquezas
ou poder. Não têm sequer o direito de serem submetidas a julgamento. São
habitantes permanentes de um campo de concentração localizado num conveniente limbo jurídico, numa conveniente base militar. Lá, como havia na britânica Belmarsh, não há seres humanos, há suspeitos de terrorismo.
Como Belmarsh, Guantánamo é um produto direto das leis
antiterroristas promulgadas após o 11 de setembro. Não que os crimes
daqueles atentados não pudessem ser devidamente enquadrados em leis
anteriores. Sequestro de aviões, assassinatos, destruição do patrimônio,
etc., tudo isso já estava previsto como crime, com penas muito
severas, nas leis internas dos EUA e mesmo em convenções específicas da
ONU. Não. As leis antiterroristas norte-americanas não foram concebidas para tipificar crimes não previstos.
Sequer foram concebidas para enrijecer penas. Elas
foram concebidas, isto sim, para dar ao Estado poderes discricionários
que ele não tinha, sob a desculpa de poder enfrentar a “guerra contra o
terrorismo”. Foi isso que levou à criação dos tribunais militares
para “terroristas”. Foi isso que gerou a possibilidade da
incomunicabilidade dos presos, das prisões sem processo legal e sem
julgamentos. Foi essa “necessidade” que permitiu e permite a tortura de
suspeitos. Foram leis que criaram o campo de concentração de Guantánamo.
Foi isso também que permitiu
legalmente, sob a ordem jurídica interna norte-americana, a violação das
comunicações da Presidenta Dilma Rousseff. É isso que
permite que a minha e a sua correspondência sejam legalmente
bisbilhotadas, ao bel prazer de autoridades que não respondem a ninguém. É
essa “necessidade” que permite que parlamentares brasileiros tenham as
suas ligações escutadas pela NSA, inclusive aqueles que consideram
necessária uma lei antiterrorista no Brasil.
A voga internacional de leis antiterrorismo nasceu dessa “necessidade”. Da “necessidade”
do Estado norte-americano e de outros Estados aliados de poderem atuar
de forma livre, sem respeitar os tradicionais limites impostos pela
democracia, no combate a tudo o que for considerado ameaça. Assim, as leis antiterroristas nasceram de uma “necessidade” política, não de uma real necessidade jurídica.
Além dessa atuação estatal, assim digamos, desinibida, tais leis
também permitem, em geral, algo muito importante: a estigmatização de
qualquer grupo ou movimento social considerado ameaçador ou mesmo inconveniente. Os Mapuches que o digam. Os palestinos, também. É por tal razão que até hoje a ONU não conseguiu concluir uma convenção abrangente sobre terrorismo.
Não há consenso mínimo sobre o que é terrorismo e, sobretudo, não há
consenso sobre que grupos ou movimentos políticos seriam terroristas.
Portanto, temos de ter muito cuidado nessa discussão. Nenhum país está livre de atentados terroristas. Mas nenhuma democracia está livre de atentados aos direitos fundamentais que a constituem. Podemos ter um país seguro e uma Copa segura sem a necessidade de aderir à insana “guerra contra o terrorismo”, a qual, como a “guerra às drogas”, provoca mais vítimas do que salva vidas. E a primeira vítima é, em geral, a democracia e seus direitos.
É sempre bom lembrar que o conceito de terrorismo nasceu
fundamentalmente de uma prática de Estado. Com efeito, foi durante o
período negro da Revolução Francesa que surgiu o Terror, que arrebatou mentes iludidas pelas promessas de “virtude e justiça” e fez rolar milhares de cabeças. Robespierre,
em sua defesa desse período, dizia que o Terror nada mais é que a lei,
ou justiça, aplicada de forma rápida, severa e inflexível.
Tinha razão Robespierre. A depender da lei, a Lei é o próprio Terror.
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