quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
As duas faces do domínio do fato
Nilo Batista(*)
Em corajoso artigo, que analisou
percucientemente a argumentação expendida pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento da ação penal nº 470 (ou do assim chamado “caso mensalão”), Alaor
Leite demonstrou como o
corpus teórico elaborado em torno do conceito jurídico-penal de domínio do fato
foi mal utilizado para estabelecer a responsabilidade de acusados que ocupavam postos de comando, e não para intervir
em seu próprio campo dogmático de aplicação, ou seja, na caracterização e
atribuição da qualidade de autor[1].
O recente e desventurado episódio que
culminou na morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojão
ativado e lançado ao solo por dois manifestantes, também envolverá a teoria do
domínio do fato, como veremos em seguida. Mas é quase certo que a imprensa conservadora, tendo adorado a versão
abastardada dessa teoria na fundamentação de condenações no “caso mensalão”,
agora já não se entusiasmará com ela.
Ao lamentável óbito do desventurado
repórter seguiu-se implacável campanha pela imediata prisão dos dois
manifestantes. Afiaram-se as facas longas para uma noite agitada. O presidente
da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (rectius: Jornalismo
Judicante) pedia a condenação dos manifestantes antes mesmo de que as
circunstâncias mais elementares do acontecimento estivessem minimamente
investigadas. O Presidente do Senado resolveu incluir na pauta de votações uma absolutamente desnecessária (como procurei demonstrar em outra ocasião[2]) lei sobre terrorismo, cuja única utilidade residirá na
criminalização de movimentos sociais e reivindicações políticas. O Secretário de Segurança Pública do Rio de
Janeiro retornou a sua tese de criminalizar o uso de máscaras, tal como Carlos
V fez em Valladolid há quase cinco séculos atrás[3]. Editoriais, entrevistas e
artigos, às vezes permeados por um olhar suspeitoso sobre a advocacia dos
manifestantes, completam a irrespirável atmosfera do fascismo punitivista operando
a todo vapor na grande causa que supõe ter em mãos.
O sistema penal emite sinais de que
está disposto a exercer o papel
que a mídia – não a Constituição da República – lhe prescreve. A prisão cautelar de um suspeito que se
apresentou à polícia, concedeu entrevista à TV Globo – sem qualquer advertência
acerca de seu direito de ficar calado, de não produzir prova contra si mesmo –
e confessou em rede nacional que passou a outro manifestante o rojão, essa
prisão cautelar não tem as orelhas, os olhos e o focinho de uma pena
antecipada? E o que dizer da espetaculosa condução coercitiva de familiares do
outro indiciado, o que acendeu e colocou no chão o rojão, só explicável como
aterrorização para que ele se entregasse logo?
Ao contrário do que pode parecer à
primeira vista, a mais delicada questão
jurídico-penal que este caso oferece não residirá no dilema dolo eventual/culpa
temerária. O Delegado não hesitou um segundo: indiciou-os por homicídio doloso
qualificado pelo meio explosivo (art. 121, § 2º,
inc. III CP). Insatisfeito, indiciou-os também pelo crime de perigo comum
explosão (art. 251 CP). Ou seja, na opinião da autoridade policial a
explosão de fogos de artifício, independentemente de algum dano ou perigo que
venha concretamente a infligir a outrem, configura o crime de explosão. No réveillon, teríamos que usar o novo
Maracanã como primeira carceragem privada do Rio de Janeiro para atender à
demanda.
Suprimir as fronteiras entre o dolo
eventual e a culpa temerária é um dos dispositivos mais recorrentes no ativismo
punitivista. De modo geral, no noticiário policial
e na crônica forense, o “assumir o risco de produzir o resultado” (art. 18,
inc. I CP) é interpretado como “correr o risco” (no que o dolo eventual não se
diferenciaria em nada da culpa temerária) e não, como preconiza Zaffaroni, “em
sua acepção forte de ‘avocar’, ‘apropriar-se’, ‘imputar-se’, a única compatível
com a incorporação à vontade realizadora do agente de um efeito possível dos
meios por ele escolhidos”[4]. Na verdade, a insustentável opção teórica
pelo dolo eventual frequentemente está encobrindo uma opção ideológica pela pena mais grave, ainda que o delito tenha sido mais leve.
A mais delicada questão que o caso
oferece, contudo, reside nas dificuldades para imputar objetivamente ao
manifestante que acendeu e lançou ao solo o rojão o resultado morte do
cinegrafista. Sem dúvida está presente o mais elementar requisito para
que a morte seja imputada ao manifestante: o nexo causal entre sua conduta e o
resultado, requisitado pelo artigo 13 CP. No entanto, se perante uma visão
baseada apenas na equivalência dos antecedentes (critério da conditio sine qua
non) a conduta do manifestante foi causal, saltam aos olhos certas
características do caso que questionam seriamente a imputação do resultado, a
partir de um arco doutrinário que se iniciou historicamente com a categoria da
causalidade adequada e hoje se espraia nas teorias pós-finalistas de imputação
objetiva. Quem deixa de lado as paixões que conduzem o debate público
do caso tem que deter-se sobre essas características, que permitem reconhecer
ali um curso causal irregular ou inadequado. Arrolemos algumas dessas características.
a) Rojões não são propriamente armas (ainda que possam ser utilizados como
armas: para ficar num exemplo claro, A obriga B a abrir a boca e nela introduz
e acende o artefato); b) rojões são licitamente comercializados, com a única
proibição de serem vendidos a adolescentes; c) rojões são licitamente
utilizados em muitas situações, dos festejos juninos a comemorações esportivas;
d) o trajeto dos bólidos é desorientadamente errático e flexuoso, mesmo se o
foguete for apontado para um alvo; e) no caso, o artefato foi, após aceso,
colocado no chão, onde se concluiu automaticamente o procedimento de disparo;
f) o objetivo do manifestante era que o rojão se deslocasse na direção dos
policiais militares[5], não só protegidos por escudos como adestrados para
proteger-se, tal como acontecera em tantos conflitos no país: a PM, atrás de
seus escudos, disparando armas de fogo municiadas com balas de chumbo ou de
borracha e também de gás lacrimogêneo ou de efeito moral, e os manifestantes,
atrás de suas máscaras, disparando rojões e mais raramente coquetéis molotov;
g) ressalvados acidentes juninos, nos quais preponderam auto-lesões, estamos
diante de um raro – quiçá o primeiro – caso de um homicídio doloso cometido com
o emprego de um rojão. Pois este curso causal evidentemente irregular
ou inadequado está sendo açodada e levianamente equiparado ao homicídio de quem
aponta, mira e dispara uma pistola a poucos metros de sua vítima, atingindo-a
na cabeça.
Nos crimes comissivos dolosos, é
autor quem dispõe do domínio do fato, ou seja, quem decide – solitária ou
compartilhadamente com algum coautor – sobre o “se”, o “quando” e o “como” do
feito típico. Mas o domínio do fato abrange
o domínio do curso causal que produzirá o resultado típico. Quando este curso causal, por sua irregularidade ou inadequação, não é
dominável, é desnecessário investigar o domínio do fato, ou seja, a autoria. A
dominabilidade do curso causal constitui o pressuposto objetivo do domínio do
fato.
O exemplo mais surrado da doutrina[6]
(o sobrinho que estimula o tio a passear na montanha onde caem raios) será aqui
“carioquizado”. A, sobrinho e herdeiro único de B, observando que em
determinada ocasião toda semana explodia um bueiro da Light – que
pena que nosso Delegado e nossa mídia estivessem então distraídos, porque
ninguém se recorda da notícia de instauração de inquéritos policiais por
aquelas explosões – convence-o, com o intuito de matá-lo, que o melhor
lugar para assistir ao pôr-do-sol no Arpoador é postado sobre um enorme bueiro
na calçada, sucedendo-se uma explosão e a morte de B. Pode este resultado morte
ser imputado a A?
A resposta negativa proveio, em
primeiro lugar, da teoria da causação adequada, e para além dos trabalhos
pioneiros de Von Bar e von Kries, na segunda metade do século XIX, podemos
recorrer à filosofia de Spinoza: “chamo de causa adequada aquela cujo
efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma; chamo de causa
inadequada ou parcial, por outro lado, aquela cujo efeito não pode ser
compreendido por ela só”[7]. Ao lançamento de um rojão associa-se clara e
distintamente como efeito a morte de um homem?! Uma segunda resposta negativa
proviria da consideração de que não se poderia reconhecer no sobrinho ambicioso
a vontade de matar que é – e no direito penal brasileiro por imposição legal,
releia-se o artigo 18, inc. I CP – a essência do dolo, e sim um mero desejo de
que o tio morresse. Como lembrava Welzel, um dos inúmeros defensores dessa
solução, em direito penal “querer” não significa “querer ter” ou
“querer alcançar”, e sim “querer realizar”[8].
Mas a superioridade dogmática da
resposta negativa fundada na falta de dominabilidade (por alguns chamada
“controlabilidade”, por outros “planejabilidade racional”) parece irrecusável.
Diante de um curso causal irregular ou inadequado, insusceptível de domínio, a
imputação do resultado ao autor é inadmissível devido – valham-nos palavras de
Roxin – “ao caráter objetivamente casual (objektiven Zufälligkeit) do
acontecimento”[9]. Se o nosso Delegado resolvesse fazer uma
reconstituição do fato – a mídia gostaria muito – poderíamos verificar
empiricamente se um rojão lançado naquelas condições, do solo, implica um curso
causal dominável. A irrepetibilidade do
fato confirmaria seu caráter casual.
Nenhum desses problemas, aqui
apressadamente esboçados, se apresentaria na imputação a título de culpa, ou
seja, da produção por imprudência de resultado. O autor do crime
culposo é apenas um causante (art. 18, inc. II CP) que não observou o cuidado
exigível, e não um autor que domina o fato – inclusive o curso causal –, como
nos crimes comissivos dolosos. Porém,
como os âncoras poderiam encher a boca com a palavra “assassinos”, se o
enquadramento jurídico-penal do caso fosse corretamente efetuado?
O domínio do fato, que fez as
delícias de muita gente no “caso mensalão”, pode ser agora um artefato teórico
perigoso, se lançado ao caso do momento. Até
quando as forças políticas progressistas não se darão conta dos perigos que a
hipertrofia do sistema penal traz para a democracia? O sistema penal, Presidenta, também pratica, e
massivamente, seus mal-feitos...
(*) Professor titular de direito
penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
[1] Leite, Alaor, Domínio do fato,
domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros – sobre
os conceitos de autor e partícipe na APn 470 do STF, em Revista Brasileira de
Ciências Criminais, S. Paulo, ed. RT, v. 106, pp. 47 ss.
[2] Reflexões sobre terrorismos, em
Passetti, Edson e Oliveira, Salete (orgs.), Terrorismos, S. Paulo, 2006, ed.
PUC-SP, pp. 13 ss.
[3] Novisima Recopilación de las leys
de España, liv. XII, tit. XIII, lei I: “Porque del traer de las máscaras
resultan grandes males, y se disimulam con ellas y encubren; mandamos, que no
haya enmascarados en el reyno, ni vaya con ellas ninguna persona disfrazada ni
desconocida”. As penas eram, se se tratasse de “persona baxa”, cem açoites
públicos; se se tratasse de “persona noble o honrada”, desterro por seis meses.
No uso noturno da máscara, penas dobradas.
[4] Zaffaroni, Raul et al, Direito
Penal Brasileiro, Rio, 2010, ed. Revan, v. II, t. I, p. 276.
[5] Não ingressarei no debate, que
também interessará ao caso, acerca da aberratio ictus (art. 73 CP).
[6] Não o mais antigo. Em 1894,
Thyrén formulava o seguinte exemplo: A, totalmente desajeitado no manejo de
armas dispara contra B, querendo matá-lo, a uma distância na qual nem mesmo um
campeão de tiro conseguiria acertar, e não obstante B é atingido e morre. Cf.
Gimbernat Ordeig, Delitos Cualificados por el resultado y causalidad, Madri,
1966, ed. Reus, p. 39.
[7] Spinosa, Bento de, Ética, trad.
T. Tadeu, B. Horizonte, 2007, ed. Autêntica, p. 163.
[8] Welzel, Hans, Das Deutsche
Strafrecht, Berlim, 1969, ed. W. de Gruyter, p. 66.
[9] Roxin, Claus, Strafrecht A.T.,
Munique, 2006, ed. C. H. Beck, v. I.
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