Carta Maior, 06/11/2015
Homem feministo - o defensor
PorCamila Spósito
PorCamila Spósito
A pauta feminista ganhou notoriedade nos últimos dias nas redes sociais. Não por causa de um novo clip ou declaração de alguma celebridade – a movimentação partiu principalmente de disputas ideológicas em torno de um projeto de lei que visa restringir a venda da pílula do dia seguinte e da reação das mulheres à predação pedófila da imagem de uma menina na Tevê.
São discussões pautadas pela própria sociedade, de modo ativo, não apenas como comentários passivos aos que ocupam o spotlight. A liberdade da mulher é um tema que borbulha intensamente e tudo indica que essa fervença veio para ficar, muito mais do que um simples modismo.
Entre o machismo extremo reverberado principalmente por homens e aqueles que ignoram completamente o assunto, existem os que reconhecem a importância da pauta e querem ajudar. Geralmente são homens que se aproximam em alguma medida das ideias de esquerda, acostumados a protagonizar as campanhas e protestos que julgaram historicamente válidas e a terem as mulheres ao seu lado nessas lutas – ao seu lado, no máximo, nunca à sua frente.
Esse “costume” é justamente o que gera o desconforto com o movimento feminista entre esses homens bem intencionados. Pela primeira vez, eles veem a luta acontecer e sua opinião não é a mais importante em uma roda de discussão. Nem seu comentário é o mais curtido naquele post: ao contrário, seu comentário é por vezes rechaçado com algum grau de hostilidade.
E alguém que vive essa hostilidade sem entendê-la só pode reagir mal: “que mal educadas! Que ingratas! Estou querendo ajudar. Isso não está certo, não que EU seja contra, mas acho que a estratégia está errada”.
Pimba! Num passe de mágica, o homem bem intencionado deslegitimou o movimento feminista porque ele não se sente suficientemente contemplado no “diálogo” – e ele é uma parte importante da sociedade, não é? Ou elas querem falar sozinhas, ao vento?
Ele concorda com a pauta mas não concorda com a “forma” como ela é tocada e faz prognósticos de fracasso ao movimento feminista, caso ele não se atente ao seu alerta de dever de dialogar com o próprio opressor. Ou pior: se recusa a ouvir as feministas que não lhe concedem uma posição de “igualdade” nesse diálogo.
Ocorre que não concordar com a “forma”, neste caso, é não concordar com o próprio feminismo; ou, na melhor das hipóteses, não o entender – as mulheres feministas não querem (a sua) atenção e nem aprovação. Elas querem ser ouvidas na mesma posição privilegiada que os homens sempre tiveram: na condição de protagonistas, de únicas legitimadas a falar de uma coisa que só elas sofrem.
Quando o homem bem intencionado age em sua ânsia de ajudar sem considerar essa “forma” específica demandada pelas próprias mulheres, em vez de combater, ele só endossa o machismo. Como a recém-lançada música de Zezé de Camargo e Luciano, intitulada “O defensor”, na qual a mulher é representada mais uma vez como um ser frágil que vai ser resgatada da sua situação de violência doméstica.
No jogo dos sete erros do homem bem intencionado, o primeiro erro está fácil: a música é sobre uma mulher que apanha do marido? Negativo. Como o próprio nome diz, a música é sobre ele, (adivinhem?) o homem!! O Defensor, que vai acabar com todas as injustiças sociais e inclusive essa das quais essas feministas estão reclamando aí, a violência doméstica...
E o que ela traz de mensagem principal? Exorta que a mulher denuncie o seu agressor, mas não sem, logo em seguida, pedir, quase que mandando, em tom imperativo: “Deixa ele e vem morar comigo, DEIXA ELE E VEM MORAR COMIGO”. Não se trata de despertar na mulher a consciência de que ela não precisa ter um homem ao lado, ainda que dele apanhe – se trata apenas de achar um homem melhor.
Tenho certeza de que nem os compositores (Marco Aurélio e Fred Liel) e nem os músicos quiseram prejudicar as mulheres. Na cabeça deles, eles estão fazendo o melhor que podem – defendendo, incentivando a não se conformarem com uma situação de violência, estendendo a mão em auxílio às mulheres.
Como diz o ditado das nossas avós: “de boas intenções, o inferno está cheio”. A postura de um homem em relação ao movimento feminista deve ser a de um abre alas: como dizia Chiquinha Gonzaga, nós queremos passar. Não queremos ser puxadas.
Não nos levem a mal – ficamos felizes quando os homens se mostram abertos e receptivos à pauta feminista. Achamos muito construtivo e realmente legal quando vocês discutem entre si com tônicas libertárias e afirmativas sobre a gente. As mulheres héteros querem um homem que não bata nelas e que as apoiem na denúncia à delegacia das mulheres quando isso acontecer.
Mas quem vai receber os créditos por esse “salvamento” somos nós mesmas. Quem vai escrever as letras de música, os textos, de preferência, somos nós também – se vocês quiserem colaborar, vocês devem perguntar a nós, feministas, o que achamos. Porque só nós podemos dizer o que e como um homem deve se portar para que nos sintamos verdadeiramente livres.
Em um espaço público, fóruns de discussão, redes sociais, reuniões do partido, mesas de bar e etc., colocar o homem em posição de igualdade para o diálogo sobre o feminismo, além de gerar ações que mais perpetuam o machismo do que contribuem com a causa, é a mesma coisa que colocar uma pessoa com um megafone no meio de uma roda de pessoas que contam apenas com a própria voz: injusto. Opressor. A voz de vocês ainda é mais forte, mais ouvida, mais considerada e valorizada. Ela nos silencia quando fala por nós, mesmo quando falando de nós.
*Camila Spósito é advogada, integrante do Coletivo Dandara da Faculdade de Direito da USP, graduada e mestranda pela mesma instituição.
A pauta feminista ganhou notoriedade nos últimos dias nas redes sociais. Não por causa de um novo clip ou declaração de alguma celebridade – a movimentação partiu principalmente de disputas ideológicas em torno de um projeto de lei que visa restringir a venda da pílula do dia seguinte e da reação das mulheres à predação pedófila da imagem de uma menina na Tevê.
São discussões pautadas pela própria sociedade, de modo ativo, não apenas como comentários passivos aos que ocupam o spotlight. A liberdade da mulher é um tema que borbulha intensamente e tudo indica que essa fervença veio para ficar, muito mais do que um simples modismo.
Entre o machismo extremo reverberado principalmente por homens e aqueles que ignoram completamente o assunto, existem os que reconhecem a importância da pauta e querem ajudar. Geralmente são homens que se aproximam em alguma medida das ideias de esquerda, acostumados a protagonizar as campanhas e protestos que julgaram historicamente válidas e a terem as mulheres ao seu lado nessas lutas – ao seu lado, no máximo, nunca à sua frente.
Esse “costume” é justamente o que gera o desconforto com o movimento feminista entre esses homens bem intencionados. Pela primeira vez, eles veem a luta acontecer e sua opinião não é a mais importante em uma roda de discussão. Nem seu comentário é o mais curtido naquele post: ao contrário, seu comentário é por vezes rechaçado com algum grau de hostilidade.
E alguém que vive essa hostilidade sem entendê-la só pode reagir mal: “que mal educadas! Que ingratas! Estou querendo ajudar. Isso não está certo, não que EU seja contra, mas acho que a estratégia está errada”.
Pimba! Num passe de mágica, o homem bem intencionado deslegitimou o movimento feminista porque ele não se sente suficientemente contemplado no “diálogo” – e ele é uma parte importante da sociedade, não é? Ou elas querem falar sozinhas, ao vento?
Ele concorda com a pauta mas não concorda com a “forma” como ela é tocada e faz prognósticos de fracasso ao movimento feminista, caso ele não se atente ao seu alerta de dever de dialogar com o próprio opressor. Ou pior: se recusa a ouvir as feministas que não lhe concedem uma posição de “igualdade” nesse diálogo.
Ocorre que não concordar com a “forma”, neste caso, é não concordar com o próprio feminismo; ou, na melhor das hipóteses, não o entender – as mulheres feministas não querem (a sua) atenção e nem aprovação. Elas querem ser ouvidas na mesma posição privilegiada que os homens sempre tiveram: na condição de protagonistas, de únicas legitimadas a falar de uma coisa que só elas sofrem.
Quando o homem bem intencionado age em sua ânsia de ajudar sem considerar essa “forma” específica demandada pelas próprias mulheres, em vez de combater, ele só endossa o machismo. Como a recém-lançada música de Zezé de Camargo e Luciano, intitulada “O defensor”, na qual a mulher é representada mais uma vez como um ser frágil que vai ser resgatada da sua situação de violência doméstica.
No jogo dos sete erros do homem bem intencionado, o primeiro erro está fácil: a música é sobre uma mulher que apanha do marido? Negativo. Como o próprio nome diz, a música é sobre ele, (adivinhem?) o homem!! O Defensor, que vai acabar com todas as injustiças sociais e inclusive essa das quais essas feministas estão reclamando aí, a violência doméstica...
E o que ela traz de mensagem principal? Exorta que a mulher denuncie o seu agressor, mas não sem, logo em seguida, pedir, quase que mandando, em tom imperativo: “Deixa ele e vem morar comigo, DEIXA ELE E VEM MORAR COMIGO”. Não se trata de despertar na mulher a consciência de que ela não precisa ter um homem ao lado, ainda que dele apanhe – se trata apenas de achar um homem melhor.
Tenho certeza de que nem os compositores (Marco Aurélio e Fred Liel) e nem os músicos quiseram prejudicar as mulheres. Na cabeça deles, eles estão fazendo o melhor que podem – defendendo, incentivando a não se conformarem com uma situação de violência, estendendo a mão em auxílio às mulheres.
Como diz o ditado das nossas avós: “de boas intenções, o inferno está cheio”. A postura de um homem em relação ao movimento feminista deve ser a de um abre alas: como dizia Chiquinha Gonzaga, nós queremos passar. Não queremos ser puxadas.
Não nos levem a mal – ficamos felizes quando os homens se mostram abertos e receptivos à pauta feminista. Achamos muito construtivo e realmente legal quando vocês discutem entre si com tônicas libertárias e afirmativas sobre a gente. As mulheres héteros querem um homem que não bata nelas e que as apoiem na denúncia à delegacia das mulheres quando isso acontecer.
Mas quem vai receber os créditos por esse “salvamento” somos nós mesmas. Quem vai escrever as letras de música, os textos, de preferência, somos nós também – se vocês quiserem colaborar, vocês devem perguntar a nós, feministas, o que achamos. Porque só nós podemos dizer o que e como um homem deve se portar para que nos sintamos verdadeiramente livres.
Em um espaço público, fóruns de discussão, redes sociais, reuniões do partido, mesas de bar e etc., colocar o homem em posição de igualdade para o diálogo sobre o feminismo, além de gerar ações que mais perpetuam o machismo do que contribuem com a causa, é a mesma coisa que colocar uma pessoa com um megafone no meio de uma roda de pessoas que contam apenas com a própria voz: injusto. Opressor. A voz de vocês ainda é mais forte, mais ouvida, mais considerada e valorizada. Ela nos silencia quando fala por nós, mesmo quando falando de nós.
*Camila Spósito é advogada, integrante do Coletivo Dandara da Faculdade de Direito da USP, graduada e mestranda pela mesma instituição.
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