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Canal Ciências Criminais, 04/07/2015
Redução da maioridade penal: o que podemos aprender com as fábulas de Esopo?
Por Bernardo de Azevedo e Souza e Thiago M. Minagé
Segundo os historiadores, no século VI a.C. teria vivido na ilha grega de Samos um curioso escravo chamado Esopo. Comprado por um filósofo, obteve sua liberdade devido a sua inteligência incomum e invejável, tornando-se um disputado conselheiro dos reis mais poderosos da época. Mas o que essencialmente destacava Esopo dentre os demais era sua aptidão de transmitir valores de fundo moral por meio de fábulas – narrativas breves, normalmente em prosa, na maior parte das vezes protagonizadas por animais falantes, que, ao final, eram seladas por uma máxima moral.
Em suas aparições em público nas praças de cidades da antiga Grécia, o fabulista relatava a crianças e adultos seus contos cheios de imaginação. Certa vez, contudo, durante uma visita a cidade grega de Delfos, Esopo teria impensadamente ofendido alguns de seus habitantes ao contar uma de suas histórias. Os délficos, por vingança, o acusaram falsamente de roubo e o condenaram à morte. Esopo foi então arremessado do alto de um precipício, sem que suas fábulas pudessem salvá-lo no momento da queda.
Apesar do desfecho trágico da vida do fabulista, suas histórias tornaram-se muito populares no século V a.C. Os cidadãos gregos citavam-nas em festas e reuniões políticas para reforçar seus pontos de vista e impressionar os convidados. O interesse em tais contos, repassados de gerações a gerações, concederam a Esopo o título de “pai da fábula”, ainda que a origem desta espécie de narrativa remonte a períodos anteriores ao nascimento do próprio escravo.
Dos autores antigos, Esopo certamente está entre os mais conhecidos. As fábulas a ele atribuídas foram editadas ininterruptamente desde a antiguidade, sendo a primeira edição impressa datada de 1474. Provavelmente muito dos leitores foram apresentados aos seus contos ainda na infância. Quem não recorda ter ouvido a história da lebre que decide disputar uma corrida com a tartaruga para ver quem é a mais veloz? A lebre, rápida por natureza, encarou a prova com displicência, adormecendo durante o trajeto, enquanto a tartaruga, consciente de sua própria lentidão, não parou um minuto sequer, alcançando a vitória. Estas e outras histórias são (e continuam a ser) contadas pelos pais aos filhos quando crianças, tornando Esopo uma das maiores referências para a literatura infantil de todos os tempos.
As fábulas de Esopo foram aos poucos adquirindo novas traduções e tornaram-se clássicos da literatura com o advento da imprensa escrita. Muitos dos contos foram adaptados para versos rimados pelo francês La Fontaine, que acabou recebendo o crédito por grande parte delas. Os historiadores destacam, no entanto, que a autoria das fábulas pertence a Esopo, o escravo cujas histórias de fundo moral moldaram os padrões da civilização ocidental.
Embora as edições brasileiras das fábulas esópicas voltem-se, em sua grande maioria, exclusivamente ao público infantil, a produção de Esopo não se esgota neste âmbito. Algumas das histórias enfrentam temas como injustiça, morte, sensualidade, prostituição, estupro e discriminação. A maioria delas pode perfeitamente ser contextualizada para a realidade em que vivemos nos dias de hoje, notadamente no âmbito do sistema de justiça criminal, sendo possível, por meio delas, extrair valiosos aprendizados.
Queremos tratar hoje da fábula “O Lobo e o Cordeiro”. Segundo o conto, um cordeiro bebia água num riacho, com forte correnteza, quando percebeu a presença de um lobo alguns metros acima:
— Como tem coragem de sujar a água que bebo?, questionou o lobo, que estava há dias sem se alimentar e procurava algum animal para matar a fome.
— Senhor, como posso sujar a água que está bebendo se ela corre até mim?, indagou o cordeiro, trêmulo, com inocência.
— Você está agitando a água, continuou o lobo, e sei que andou falando mal de mim no ano passado.
— Mas senhor, respondeu o cordeiro, no ano passado eu ainda nem tinha nascido, como poderia ter feito tamanho mal?
— Se não foi você foi seu irmão, o que dá no mesmo, disse o lobo após pensar um pouco.
— Sou filho único, senhor, não tenho irmãos, mencionou o cordeiro.
— Pois se não foi seu irmão, foi seu pai ou seu avô!, vociferou o faminto lobo. E, ao constatar que suas razões não convenciam o cordeiro, saltou sobre o pobre animal e abocanhou-o, levando-o para comer num local mais sossegado.
A fábula encerra a ideia de que quando alguém está disposto a nos prejudicar, de nada adianta nos defendermos ou, ainda, que para aqueles que têm como propósito praticar a injustiça, nenhuma defesa justa tem valor. O enredo pode ser adaptado para o contexto atual, sobretudo em relação à recente e polêmica discussão travada sobre redução da maioridade penal. O discurso que vem sendo adotado demonstra que quando alguém tem a pretensão de suprimir, de maneira progressiva, direitos e garantias individuais, sociais, culturais, econômicos e políticos de seus opositores, pouco importa a irracionalidade dos motivos para justificar suas condutas.
É cada vez maior o ódio, o furor e a revolta daqueles que, intitulados legitimados para tanto, vendem ao povo a ilusão, o sonho de que podem resolver todos os problemas da criminalidade existente em nossa sociedade. Já não mais importam os motivos, os argumentos, as justificativas ou mesmo as consequências. Vamos atacar a juventude! Ela é a única que pode mudar aquilo que os vendedores não querem que mude. Eis a ignorante política social…
O populismo penal e o discurso do ódio chegaram infelizmente a um patamar feroz e avassalador. Apenas 24 horas após o plenário da Câmara dos Deputados rejeitar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171, com 303 votos a favor, 184 contra e três abstenções, a redução da maioridade penal foi novamente submetida à votação, sendo aprovada na madrugada desta quinta-feira (02/07/2015). Com 323 votos a favor, 155 contra e duas abstenções, a nova votação ocorreu em virtude de uma polêmica manobra do Presidente da referida Casa Legislativa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), por meio da apresentação de emendas aglutinativas à PEC, com o objetivo de “alterar” o texto rejeitado e manter a temática em pauta. A “nova” modificação foi suficiente para que 24 deputados mudassem radicalmente de opinião e possibilitassem a aprovação da medida.
No entanto, se esquecem alguns deputados que o Código Penal estabeleceu, em seu art. 27, o critério biológico como limitador da inimputabilidade penal do menor de 18 (dezoito) anos; se esquecem que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) abandonou a ideia de punição trazida em 1979, não assumindo o viés de código, mas de estatuto, sendo também encampado pelo Decreto 99710/90 (Convenção sobre Direitos da Criança); se esquecem que a Constituição Federal, dentre tantas outras inovações, inclui em seu art. 227 como obrigação da família, da sociedade e do Estado (sim, da sociedade e do Estado) assegurar os direitos da criança e do adolescente, passando a ser adotada a Doutrina da Proteção Integral; se esquecem que o Brasil acompanha a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989, assumindo a responsabilidade legal de garantir um futuro digno à sua juventude; em suma, se esquecem da existência de leis que tutelam integralmente direitos e deveres das crianças e dos adolescentes.
Não podemos dar as costas e furtar os sonhos de um adolescente, não só por considerá-lo formalmente imputável, mas sim por esquecermos de lutar por melhorias em todos os aspectos, respeito e dignidade. Parece que nos esquecemos de amar, o sonho se perdeu, a essência diluiu, deixamos de olhar o próximo com afeto. Restou-nos somente o apego de que a eliminação da criminalidade se efetiva pelo encarceramento maciço e desenfreado. Nossos menores estão a cada dia mais marginalizados. Já anunciava Gonzaguinha que não estamos nos preocupando com a pureza e a resposta das crianças. Estamos perdendo a essência da juventude.
O lobo, na fábula de Esopo, ao constatar que seus argumentos eram insuficientes para convencer o cordeiro, saltou sobre o animal e abocanhou-o. Alguns deputados já manifestaram que, se for novamente derrotado no 2º turno da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha não medirá esforços para acrescentar emendas aglutinativas à PEC 171 e convocará nova sessão até que sua posição seja imposta ao plenário.
Estaremos, afinal, diante do faminto lobo de que narra a fábula?
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