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Carta Maior, 07/07/2015
Populismo não, Democracia: sobre as lições gregas aos bem pensantes
PorAndré Kaysel*
Enquanto o primeiro-ministro grego Alexis Tsipras anunciava a convocação do referendo sobre a proposta de acordo da “troika” – Banco Central Europeu (BCE), Comissão Europeia (CE) e Fundo Monetário Internacional (FMI) – para a rolagem da dívida do país, não faltaram vozes, entre as elites políticas europeias e na grande mídia internacional, que qualificaram sua atitude como “populista”. Populismo é uma dessas palavras gastas que todos usamos, sem nos indagarmos por seus significados e implicações. Só sabemos que sua conotação é claramente pejorativa, razão pela qual ninguém aceita, via de regra, o rótulo de “populista”. Na América Latina, por exemplo, poucos políticos escaparam ao adjetivo, embora nenhum jamais o tenha empregado como autoimagem. Como aponta de modo taxativo o historiador Jorge Ferreira, em uma ótima revisão sobre o tema no Brasil, “populista é sempre o outro”.
Já o jornalista italiano Marco D’Eramo, em um ensaio provocativo publicado no final de 2013 na New Left Review, afirmou que o populismo não deveria ser encarado como um conceito a ser empregado para explicar ou interpretar esse ou aquele fenômeno, mas sim como uma arma discursiva no embate político-ideológico. Em outras palavras, “populismo”, segundo ele, seria “um insulto”, que dirigimos a nossos adversários. Concretamente, no cenário político europeu contemporâneo, o termo seria empregado pelo centro político, formado por tecnocratas de “centro-esquerda” e “centro-direita”, para estigmatizar os “extremos”, banindo-os do escopo da legitimidade.
O caso do referendo grego ilustra, de modo lapidar, a acuidade do diagnóstico de D’Eramo. No caso específico, Tsipras seria “populista” simplesmente por querer consultar seus cidadãos a respeito de medidas que teriam um impacto decisivo em suas vidas, ao invés de aceitar os ditames do mercado financeiro e dos organismos multilaterais. Seria populista, em síntese, por ser um democrata. Isso corrobora uma das teses do falecido teórico político argentino Ernesto Laclau, para quem o avesso do populismo seria a tecnocracia, uma forma de negação ou esvaziamento da política, substituindo-a pela mera administração ou gestão.
Por trás do termo “populismo” se esconde um profundo desprezo pelo “povo”, ou “demos”, suas crenças e aspirações. Talvez nenhuma outra palavra condense tão bem a longa tradição de “demofobia” que existe na filosofia política, da Grécia antiga a nossos dias. É verdade que, se as elites sempre consideraram as massas como estúpidas e perigosas, nos últimos duzentos anos foram, a contragosto, obrigadas a tolerar sua presença crescente na vida política.
Nesse novo quadro histórico, inaugurado pela Revolução Francesa, a solução, do ponto de vista do andar de cima e seus sábios de plantão, passou a ser o esvaziamento do conteúdo substantivo da democracia política, tornando-a o mais formal e mínima possível. Para os defensores dessa democracia domesticada, qualquer alternativa política que pretenda ultrapassar esses estreitos limites, cai sob o opróbio do “populismo”, irmão-gêmeo do “totalitarismo” e outras pestes equivalentes.
Desse modo, falar em “populismo” é defender a hegemonia de uma lógica elitista e tecnocrática, segundo a qual os cidadãos e cidadãs tem o único papel de legitimar as decisões previamente tomadas a portas fechadas. Em tempos de hegemonia neoliberal a grande maioria dos governos “democráticos” no mundo contemporâneo tomam essa lógica como expressão do realismo político e a aceitam sem mais. Porém, no domingo passado, um grego maluco e irresponsável decidiu jogar com outra lógica: só podia ser mesmo um populista!
No último domingo, os cidadãos gregos deram democraticamente seu veredito. Contra toda chantagem e terrorismo financeiro e midiático, a maioria dos gregos decidiu dizer não à austeridade que vem arruinando seu país e suas vidas a cinco anos. Caberá agora à “Troika”, com a senhora Merkel á frente, negociar a sério com Tsipras ou rasgar de uma vez por todas a farsa democrática na qual a União Europeia se converteu a muito tempo e prosseguir na senda da ameaça e da truculência.
Nos próximos dias, economistas, colunistas de jornal e os indefectíveis “analistas políticos” continuarão a falar aos borbotões em uma vitória do “populismo”, ou em um avanço do “populismo”, no “perigo populista”, etc. Contra esse coro do “bom senso”, da opinião “bem pensante” das redações, consultorias e universidades de prestígio, deveríamos responder simplesmente: populismo não, democracia.
*Professor de Ciência Política da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA)
Carta Maior, 06/07/2015
Um outro 'No' decisivo na história
PorJoaquim Palhares - Diretor de Redação
PorJoaquim Palhares - Diretor de Redação
O peso decisivo de um plebiscito na vida de um povo e o desafio de vencê-lo, em confronto direto com o aparato coercitivo e midiático do poder dominante.
Esse é o tema do filme 'No', de Pablo Larraim, lançado em 2011, cuja mecânica guarda pontos de contato interessantes com a consulta grega deste domingo.
O 'No' chileno trata do plebiscito que, em 1988, marcou o fim do regime sanguinário de Augusto Pinochet.
Sob o cerco interno e internacional, acuado por denuncias e pela crise, Pinochet decidiu apostar na força de seu aparato midiático para renovar a permanência no poder. Confiante, aceitou submeter-se a uma consulta no dia 5 de outubro de 1988, em que o 'Si' lhe daria legitimidade para mais oito anos de poder, enquanto o 'No' que determinaria o fim de sua dominação no prazo de um ano.
Mais de sete milhões de eleitores (o Chile então tinha pouco mais de 12 milhões de habitantes), compareceram às urnas para impor uma derrota histórica à tradição das tiranias latinoamericanas: com 56% dos votos, venceu o “No”, contra 44% para o “Si”.
Esse é o grande cenário de um roteiro que privilegia um aspecto decisivo do embate: o papel cada vez mais imperativo dos meios de comunicação no escrutínio político em nosso tempo.
O Brasil sabe o que isso significa. E a sociedade grega também. Lá, as 'Globos' gregas, as 'Folhas' gregas, as 'Vejas' gregas, os Ibopes gregos recorreram inescrupulosamente à manipulação e ao terrorismo para coagir a população a referendar a vontade dos mercados contra os seus próprios interesses.
Na antevéspera do plebiscito deste domingo, a televisão da Grécia dedicou 46 minutos de cobertura às manifestações pró-Sim, enquanto o comício de Tsipras em defesa do 'Não' recebeu oito minutos de cobertura.
Neste caso não funcionou. E não funcionou porque o governo Syriza liderou a resistência à campanha conservadora indo às ruas contra a sabotagem midiática, defendendo de forma contundente a rejeição ao arrocho, ganhando assim os corações e mentes da maioria da sociedade (61% da população, como se viu).
No Chile também a democracia venceu. Neste caso, porém, graças a uma estratégia insólita e ousada da campanha midiática progressista, que derrotou o monopólio conservador na batalha das comunicações.
Vale a pena assistir à narrativa desse feito histórico; sobretudo para aprender algo de que o Brasil tanto se ressente nos dias que correm: conquistar o imaginário da sociedade para deter a voragem golpista, em marcha batida no país.
O peso decisivo de um plebiscito na vida de um povo e o desafio de vencê-lo, em confronto direto com o aparato coercitivo e midiático do poder dominante.
Esse é o tema do filme 'No', de Pablo Larraim, lançado em 2011, cuja mecânica guarda pontos de contato interessantes com a consulta grega deste domingo.
O 'No' chileno trata do plebiscito que, em 1988, marcou o fim do regime sanguinário de Augusto Pinochet.
Sob o cerco interno e internacional, acuado por denuncias e pela crise, Pinochet decidiu apostar na força de seu aparato midiático para renovar a permanência no poder. Confiante, aceitou submeter-se a uma consulta no dia 5 de outubro de 1988, em que o 'Si' lhe daria legitimidade para mais oito anos de poder, enquanto o 'No' que determinaria o fim de sua dominação no prazo de um ano.
Mais de sete milhões de eleitores (o Chile então tinha pouco mais de 12 milhões de habitantes), compareceram às urnas para impor uma derrota histórica à tradição das tiranias latinoamericanas: com 56% dos votos, venceu o “No”, contra 44% para o “Si”.
Esse é o grande cenário de um roteiro que privilegia um aspecto decisivo do embate: o papel cada vez mais imperativo dos meios de comunicação no escrutínio político em nosso tempo.
O Brasil sabe o que isso significa. E a sociedade grega também. Lá, as 'Globos' gregas, as 'Folhas' gregas, as 'Vejas' gregas, os Ibopes gregos recorreram inescrupulosamente à manipulação e ao terrorismo para coagir a população a referendar a vontade dos mercados contra os seus próprios interesses.
Na antevéspera do plebiscito deste domingo, a televisão da Grécia dedicou 46 minutos de cobertura às manifestações pró-Sim, enquanto o comício de Tsipras em defesa do 'Não' recebeu oito minutos de cobertura.
Neste caso não funcionou. E não funcionou porque o governo Syriza liderou a resistência à campanha conservadora indo às ruas contra a sabotagem midiática, defendendo de forma contundente a rejeição ao arrocho, ganhando assim os corações e mentes da maioria da sociedade (61% da população, como se viu).
No Chile também a democracia venceu. Neste caso, porém, graças a uma estratégia insólita e ousada da campanha midiática progressista, que derrotou o monopólio conservador na batalha das comunicações.
Vale a pena assistir à narrativa desse feito histórico; sobretudo para aprender algo de que o Brasil tanto se ressente nos dias que correm: conquistar o imaginário da sociedade para deter a voragem golpista, em marcha batida no país.
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