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Folha.com, 19/07/2015
Prisão sem pena
Por José Carlos Dias
Do Judiciário se espera que o devido processo legal seja sacralizado de forma serena, sem dar-se a fazer parceria com julgamentos midiáticos
Ser livre é tão importante quanto viver. Só se justifica viver quando é possível ser livre. Mas há casos em que se justifica a perda da liberdade. E é atribuído a outro ser humano o direito de subtrair a liberdade de alguém. A esse ser humano chamamos juiz, pessoa que deve ter serenidade, coragem e respeito aos direitos esculpidos na Constituição e na consciência de cada um.
A Constituição Federal estabelece a igualdade perante a lei, a inviolabilidade do direito à vida e à liberdade e proclama que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória, admitindo-se privação da liberdade somente quando respeitado o devido processo legal.
É imperioso que se atente para a importante tarefa que a Polícia Federal vem desenvolvendo no combate à corrupção desenfreada, com a participação indispensável do Ministério Público, que tem de se manter independente da vontade dos que estão a exercer o Poder Executivo. Do Judiciário se espera que o devido processo legal seja sacralizado de forma serena e enérgica, sem dar-se a fazer parceria com julgamentos midiáticos.
A fonte maior da justiça há de ser o Supremo Tribunal Federal, mas de cada juiz com responsabilidade de presidir um processo criminal se espera que garanta o direito de defesa. Além disso, espera-se que garanta que o cerceamento da liberdade antes do julgamento final somente se efetive nas hipóteses justificadoras da prisão preventiva: garantia da ordem pública e econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Na prática, vez por outra, juiz decreta prisão por ser o réu humilde, sem eira nem beira, morador de rua ou de casebre, sem "residência fixa". Em outros casos, prisões são decretadas porque, rico, o acusado tem condição de evadir-se.
Em 2011 foram introduzidas no Código de Processo Penal diversas medidas cautelares alternativas à prisão preventiva, como recolhimento domiciliar, suspensão do exercício de atividade econômica e monitoramento eletrônico do acusado.
Diz a lei que o magistrado tem o dever de aplicar tais medidas prioritariamente, admitindo-se a opção pelo encarceramento provisório apenas quando as cautelares alternativas à prisão não se mostrarem cabíveis. E a decisão de privar o cidadão acusado de liberdade durante o processo não pode guardar relação com o mérito da acusação, por caracterizar antecipação da pena.
É preciso coragem para afirmar que a luta contra os desmandos de corrupção não pode justificar excessos praticados por agentes públicos investidos da função de investigar e de julgar e que, pelos excessos, devem ser responsabilizados.
O justo clamor por moralização e combate à corrupção faz, por vezes, soar um ruído perigoso de aplauso às prisões sem pena. O anseio punitivo pode estimular excessos por parte daqueles aos quais é atribuída a tarefa de decidir com equilíbrio.
A prisão preventiva desmotivada ou decretada a partir de presunções arquitetadas subjetivamente, sem lastro em fatos concretos, vincula internamente o magistrado a compromisso de condenação à pena privativa de liberdade para justificar o mal praticado, afetando a imparcialidade que dele se exige.
Condena para justificar-se perante sua história pessoal e perante a sociedade, que poderá ficar perplexa diante de sentença absolutória em favor de alguém que amargou o encarceramento sem causa. O instante exige que se reflita com serenidade, para que a ânsia de reerguer este país combalido não nos leve ao caos da insegurança jurídica.
O processo penal é o "sismógrafo da Constituição", afirmou o professor alemão Claus Roxin. O grau de respeito aos direitos e às obrigações do acusado, aos limites dos poderes investigatórios do Estado, à imparcialidade do Judiciário revela o estágio de desenvolvimento jurídico e político de uma sociedade.
O exercício do poder punitivo deve ser meio de estabilização normativa, deve reforçar valores constitucionais. Se não há fronteiras entre o crime e o combate ao crime esvai-se a superioridade moral do Estado frente à delinquência.
José Carlos Dias, 76, advogado criminalista, foi integrante da Comissão Nacional da Verdade e ministro da Justiça (governo FHC). É sócio do escritório Dias e Carvalho Filho, que defende, entre outros, Milton Pascowitch na Operação Lava Jato
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