sexta-feira, 25 de abril de 2014

Dirceu, homem-test​e


 





DIRCEU, HOMEM-TESTE


Paulo Moreira Leite



É inacreditável que, no Brasil de 2014, se tente levar a sério – por um minuto – o pedido de investigar todas ligações telefônicas entre o Planalto, o Supremo, o Congresso e a Papuda entre 6 e 16 de janeiro.
A rigor, o pedido de investigação telefônica tem um aspecto terrorista, como já disse aqui. 
Implica em invadir poderes - monitorar ligações telefônicas é saber quem conversou com quem mesmo sem acessar o conteúdo da conversa  - e isso o ministério público não tem condições de fazer antes que o STF autorize  a abertura de um processo contra a presidente da República. 
O que queremos? Brincar de golpe?
Criar o clima para uma afronta aos poderes que emanam do povo? 
Quem leva a sério o pedido de monitorar telefones do Planalto, com base numa denúncia anonima, sem data, nem hora nem lugar conhecido - o que permite perguntar até se tenha ocorrido - nos ajuda a  pensar numa hipótese de ficção cientica. Estão querendo um atalho atingir a presidente? Assim, com a desculpa de que é preciso apurar um depoimento secreto? 

Nem é possível fingir que é possível levar a sério um pedido desses. 

Por isso não é tão preocupante que uma procuradora do DF tenha feito tenha assinado um pedido desses. É folclórico, digno dos anais da anti-democracia e da judicialização.
O preocupante é a demora de Joaquim Barbosa em repelir o pedido. Rodrigo Janot, o PGR, já descartou a solicitação. Mas Joaquim permanece mudo.
O que ele pretende? 
O que acha que falta esclarecer? 
Indo para o terreno prático. Estamos falando de uma área por onde circulam milhares de pessoas, que mantém conversas telefônicas longas, curtas, instantâneas ou intermináveis com chefes, assessores, amigos, maridos, motoristas, namoradas, amantes...sem falar na frota de taxi, no entregador de pizza e no passeador de cachorro...
Monitorar quem ligou para quem?
Imagine. Num dia qualquer entre 6 e 16 de janeiro de 2016 uma jovem assessora do Senado, que trabalha de minissaia e namora um musculoso agente penitenciário na Papuda, resolve encontrá-lo para tomar um sorvete. Mas o rapaz não aparece. Ela liga para o celular do amor de sua vida. O namorado atende  dentro de um ônibus que, naquele momento, se encontra parado no sinal vermelho em frente ao Planalto. 
Três meses depois, aparece o grampo:
- Alô, Zé Dirceu na linha? Onde você está? Aqui é a Maça Dourada. Aquela, de 68. Lembra, na Maria Antônia....A gente não tinha marcado um encontro, 50 anos depois? Nossa turma tinha essa mania, lembra?

Está na cara que nada se pretende descobrir com uma investigação desse tipo. O que se pretende é ganhar tempo, como se faz desde 16 de novembro, quando Dirceu e outros prisioneiros chegaram a Papuda. Com ajuda dos meios de comunicação mais reacionários, os comentaristas mais inescrupulosos, pretende-se criar uma ambiente de reação contra o exercício de um direito típico dos regimes democráticos. Aguarda-se por uma comoção que impeça a saída de Dirceu. Você entendeu, né...
No plano essencial, temos o seguinte: Dirceu nunca deveria ter passado um único dia em regime fechado, pois  jamais recebeu uma sentença que implicasse em pena desse porte após o trânsito em julgado.
Suas condições de detenção na Papuda se tornaram inaceitáveis a partir do momento em que ele – cumprindo as determinações legais à risca – conseguiu uma oferta de emprego para trabalhar em Brasília, obtendo a aprovação do Ministério Público e da área psicossocial.
No plano da investigação policial, temos o seguinte: nenhuma das possíveis alegações para impedir o exercício desse direito foi provada. Nenhuma.
O que mantém Dirceu na prisão?
Apenas  a vontade política de negar um direito que a lei assegura a todos. Um pedido de monitoramento de milhares (ou centenas de milhares? Milhões?) de telefonemas expressa o tamanho dessa vontade delirante de  castigar, de punir. Já se ultrapassou qualquer limite civilizado. E aqui entramos em nova área de risco.
Depois de passar por um campo de concentração do nazismo, e, mais tarde, conduzido a um campo soviético porque fazia oposição política a Josef Stalin, o militante David Roussett fez uma afirmação essencial:
 “As pessoas normais não sabem que tudo é possível."
Ele se referia à câmara de gás, aos trens infectos, ao gelo, a fome, o frio – a todo sofrimento imposto a seres humanos em nome do preconceito de raça, de classe, da insanidade política, do ódio, da insanidade que dispõe de armas poderosas para cumprir suas vontades.
Não temos câmaras de gás no Brasil de 2014. Mas temos anormalidade selvagem.  Já tivemos um julgamento onde os réus não tiveram direito a presunção da inocência. Quem não tinha foro privilegiado não teve direito a um segundo grau de jurisdição. As penas foram agravadas artificialmente.  
Dirceu está sendo desumanizado, como se fosse uma cobaia de laboratório, mantida sob vigilância num cubo de vidro, 24 horas por dia.
Foi transformado num caso-teste.  
O direito que hoje se nega a Dirceu amanhã poderá ser negado a todos.
Será tão difícil captar a mensagem? ​


Paulo Moreira Leite é Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".

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