terça-feira, 1 de abril de 2014

50 anos do Golpe Militar de 1964



 
50 anos do Golpe Militar de 1964
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Carta Maior, 30/03/2014

 

O golpe de 64 e a modernização conservadora


Por Paulo Kliass



Passado meio século do golpe de primeiro de abril, as reais motivações e consequências da tomada de poder pelos militares ainda estão por serem pesquisadas e analisadas em toda a sua amplitude e profundidade. A derrubada de um governo democraticamente eleito e a instalação de um regime ditatorial representou, entre muitos outros aspectos, o lançamento das bases para a tentativa de construir um modelo mais eficiente para o processo de acumulação capitalista em nosso País.

Esse movimento pode ser mais bem compreendido caso seja analisado sob a perspectiva da chamada modernização conservadora. É inegável que os anos 50 e 60 representavam um momento histórico marcado por uma intensa disputa política entre diferentes projetos para o futuro da sociedade brasileira. Assim, o desfecho pela via da movimentação de tropas e pela violenta repressão aos opositores do retrocesso abriu o caminho para a implementação do projeto das forças conservadoras, dos setores mais à direita de nossa sociedade, aqueles vinculados de forma íntima ao capital financeiro e internacional.

Ao fazer terra arrasada do respeito às regras democráticas e institucionais, os governos militares chamaram para o comando da economia as figuras que mais bem representavam os interesses de amplos setores do capital, aqueles que se opunham às reformas de base e trabalhavam abertamente pela derrubada do Jango. Dentre as personalidades mais emblemáticas - e que ocuparem postos de destaque nas equipes de governo - estavam Roberto Campos, Delfim Netto e Mario Henrique Simonsen.

Campos, Delfim e Simonsen: a essência conservadora

“Bob Fields”, como era conhecido o embaixador de Jango em Washington, foi rapidamente chamado para ocupar o Ministério do Planejamento pelo Marechal Castelo Branco, logo depois de consolidado o golpe. Sua articulação com os representantes do sistema financeiro no além-mar facilitaram o processo de internacionalização da economia brasileira. O professor da USP Delfim Netto abriu pontes essenciais com o empresariado paulista e consolidou a estratégia do chamado período do “milagre brasileiro”. O carioca Simonsen permitiu o fortalecimento dos laços com a nata do monetarismo ortodoxo, em grande parte abrigada no interior da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. A presença dos três quadros do conservadorismo confirmava a natureza do novo regime e oferecia a “tranquilidade” necessária aos investidores internacionais.

Um conjunto importante de mudanças institucionais foi levado a cabo a partir da tomada do poder pelos golpistas. Tratava-se de construir os alicerces do edifício do capitalismo financeiro e de ampliar os espaços para a acumulação de capital, pelos mais variados setores e por todo o território nacional. Uma das primeiras medidas foi a revogação da limitação da remessa de lucros ao exterior. Carregada de forte simbolismo político, a medida de agosto de 1964 oferecia às empresas multinacionais aqui instaladas, aos investidores e ao financismo internacional a justa medida de como seriam, a partir de então, tratadas as novas relações econômicas e comerciais com o resto do mundo.
Pelo lado do sistema financeiro, outras decisões foram tomadas. Em dezembro de 1964 foi criado o Banco Central, uma autarquia federal que passaria a operar já no ano seguinte. Com isso, deu-se a retirada das funções de autoridade monetária que eram atribuídas, até então, a uma área do Banco do Brasil - a poderosa Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC). Em 1965, uma nova lei passa a consolidar o funcionamento das bolsas de valores e do mercado de capitais de forma mais ampla. A intenção era tornar as praças daqui mais contemporâneas das operações realizadas no mundo desenvolvido.

BC, BNH, FGTS, ORTN e outras siglas para o capital

Ainda na área de modernização financeira, foi criado o Banco Nacional da Habitação (BNH), para se ocupar de um grande movimento para construção de moradias. A base de financiamento desse expressivo salto à frente do setor da construção civil veio com o modelo da “caderneta de poupança” (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo - SBPE) e o modelo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). O estímulo a esse tipo de poupança oferecia às instituições financeiras um volume expressivo de recursos a custos reduzidos, ao passo que o FGTS (administrado pelo BNH) veio no vácuo criado pela eliminação da estabilidade no emprego, tal como prevista na legislação trabalhista até o golpe. Pelas novas regras, o trabalhador perdia o direito a um salário por ano trabalhado, que teoricamente seria compensado pelo recolhimento mensal, a ser efetuado pelas empresas, equivalente a 8% de sua remuneração.
A recuperação da capacidade fiscal do governo ocorreu por meio da aprovação do novo Código Tributário Nacional em 1966 e pela introdução da grande inovação da chamada “correção monetária”. O novo sistema de tributos estabelecia um modelo marcado por sua profunda regressividade, de forma que as rendas elevadas, o patrimônio e o capital eram menos atingidos do que os rendimentos do trabalho. Além do aumento de sua capacidade de arrecadação, o governo avançou pelo lado da oferta de títulos da dívida pública.

Assim, foram lançadas as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs). A correção monetária foi concebida como mecanismo de recuperação da credibilidade das aplicações financeiras, em razão das perdas provocadas pela inflação. Assim, os novos títulos emitidos pelo Tesouro passavam a assegurar aos investidores uma remuneração que seria composta pela taxa de juros e acrescida de uma correção baseada na inflação do período. Ali estava lançada a semente do processo generalizado de indexação, que viria a se espalhar por todos os setores de nossa economia a partir de então.
Endividamento externo e fragilidade interna

No pacote de busca de estabilidade, o viés monetarista orientou a reforma do padrão da moeda ainda em 1967. O cruzeiro foi substituído pelo “cruzeiro novo”, com a troca de cada mil unidades antigas por uma unidade da nova moeda. No entanto, essa mudança não foi suficiente para impedir a continuidade do processo inflacionário, que se manteve firme no período que se seguiu. Assim, um novo plano de estabilização ocorreu em 1986, quando novamente o padrão monetário foi alterado com o advento do cruzado.

Um dos principais pilares para alavancar o crescimento econômico a partir de 1964 foi o recurso ao endividamento externo. O setor público foi largamente utilizado para esse propósito, assim como as empresas privadas também foram estimuladas a tomar empréstimos em dólares norte-americanos. Essa opção embutia uma forte fragilidade para as operações de longo prazo. A partir do final da década de 1970, com a elevação das taxas de juros no mercado internacional, a dívida externa brasileira começa a apresentar sua fatura. Com o aumento dos preços do petróleo a crise do setor externo se torna mais aguda e 1982 representa um ponto de ruptura. Recessão, desemprego, desvalorização cambial. É um componente a mais no processo de desgaste político do regime militar, já em ritmo de abertura, e que desembocará na luta pelas diretas em 1984, na eleição de Tancredo Neves e na nova Constituição em 1988.

A política econômica desenvolvida durante a ditadura deixou marcas severas. O poder de compra dos salários foi bastante reduzido ao longo de período: seja pela repressão direta sobre o movimento sindical, seja pela tutela estabelecida sobre a justiça do trabalhista, seja pela corrosão provocada pela inflação persistente.
A concentração de renda também observou uma tendência de recrudescimento a partir de 1964. Uma das medidas utilizadas para aferir esse tipo de desigualdade - o chamado índice de Gini – sofreu elevação sistemática entre as décadas de 1960 e 1990, só vindo a apresentar alguma melhoria a partir do Plano Real. O recurso retórico que ficou bastante conhecido durante a ditadura militar foi eternizado por Delfim Netto. O então todo-poderoso ministro dizia que era necessário “primeiro fazer o bolo crescer, para depois reparti-lo.”
Apesar de todo o esforço exportador da época da ditadura, as respostas da Balança Comercial não foram tão promissoras. Ela sai de um superávit de US$ 340 milhões em 1964 e atinge um déficit de US$ 2 bilhões em 1980. A reversão desse quadro só ocorre em 1984, quando as exportações voltam a suplantar as importações. Além disso, a situação nas Transações Correntes é ainda mais grave.

Nesse caso, são computadas as despesas financeiras e de serviços nas relações internacionais. O superávit de US$ 81 milhões em 1964 se transforma em déficit de US$ 16 bilhões em 1982. O Brasil recorre a um acordo com o FMI para reverter essa debilidade e suas conseqüências foram um aprofundamento ainda maior da crise.

A elevação dos valores da dívida externa foi assustadora. Ela sai de um patamar de US$ 3 bi em 1964 e atinge a marca de US$ 102 bi em 1984.
E um elemento que oferecia mais preocupação foi a baixa capacidade do país em acumular reservas internacionais. Elas saíram de US$ 240 milhões em 1964 para US$ 12 bilhões. Assim, uma das principais marcas do modelo de política econômica foi a drenagem de recursos para pagar os compromisso da dívida externa contraída. A vulnerabilidade do setor externo foi uma herança bastante negativa para os períodos que se seguiram.

“A economia vai bem, o povo vai mal”

Outro elemento que se deteriorou ao longo dos 20 anos do regime golpista foi justamente o crescimento dos preços. Não obstante o discurso oficial das sucessivas equipes econômicas estar sempre focado no controle da inflação, o fato concreto é que houve uma evidente incapacidade em promover tal estratégia. O índice oficial de 1964 havia sido de 70%, mas em 1984 a inflação superava a barra dos 210%. Era o período que antecedia os difíceis anos que viriam na sequência, com a espiral hiperinflacionária e os sucessivos planos de estabilização que se seguiram ao Plano Cruzado.

A política econômica encerrava, portanto, os elementos de modernização e de atraso. Para o processo de produção e ampliação dos ganhos das empresas, as políticas públicas se encarregavam de oferecer o que de mais atual e eficiente existisse no estado das artes do capitalismo internacional. para os trabalhadores e para a maioria da população brasileira, o quadro era de aprofundamento da miséria e da desigualdade social e econômica. Uma frase atribuída ao General Presidente Medici, durante a época do chamado milagre, reflete bem essa aparente contradição: “a economia vai bem, mas o povo vai mal”.
   

(*) Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.


 





Carta Maior, 01/04/2014 
    

Jango: notas para uma retificação histórica


Por Wanderley Guilherme dos Santos

 


Entre as retificações indispensáveis dessa história cinquentenária encontra-se o papel atribuído a João Goulart que, primeiro vice-presidente foi, depois, presidente da República. Perseguido pela direita, e atropelado pelas esquerdas, em vida, tem sido vilipendiado, estando morto. A primeira linha de fogo atira em sua denunciada atração por mulheres e cavalos. Ora, bem, e daí? As pessoas são atraídas por certos prazeres e repelem outros. Não consta que consumisse drogas ou fosse submisso ao álcool, prazeres que outras personalidades usufruem habitualmente sem que tenham o juízo prejudicado. Dizem que apreciava coristas, mas outros, mais recentes, preferiam as jornalistas. O que isso tem a ver com o Plano Real, por exemplo, ou com o Plano de Metas de Juscelino. François Mitterand, como se dizia no Nordeste, tinha casa montada para a amante e a família Kennedy fez da Casa Branca um romântico aconchego para belas atrizes, mas seria risível atribuir-se a essa particularidade o desastre kennedyano da Baía dos Porcos ou à vodka de Nikita Kruschev a crise dos mísseis em Cuba.
A incorreção metodológica de derivar atitudes públicas de preferências ou atributos privados é da essência do racismo, da discriminação. E confundir o tamanho da crise do período 61-64 com os hábitos peculiares de Janio Quadros ou com atribuídos traços psicológicos de João Goulart só passa em branco em período de histeria retrospectiva.

A permanente crítica da direita era redundante: Jango pretendia entregar o País aos comunistas, espelhando-se na Revolução Cubana. O desagradável fato de ser João Goulart um estancieiro se apagava, na propaganda direitista, diante de seu caráter supostamente influenciável e de sua incompetência. Que esta vulnerabilidade a pressões externas tenha sido negada por sua resistência a ordenar o bombardeio de tropas rebeladas, conforme consta dos depoimentos, também é coberta pela presumida e fatal hesitação do Presidente João Goulart.

Nesta toada juntam-se as vozes da atual direita, de parte das esquerdas do momento, e o que restou de ambas do passado. O intervalo temporal serve de cúmplice para a excomunhão do ex-presidente a ele se conferindo total responsabilidade pelo sucesso do golpe de 64. Se o presidente fosse outro, diz-se, a direita não teria vencido. O argumento é confortável, especialmente porque não se pode demonstrar que é falso. É impossível reescrever capítulos e substituir João Goulart por... por quem?

O vilipêndio de João Goulart serve de esconderijo para o rosário de irresponsabilidades, erros de análise e bravatas retóricas das esquerdas de então em alucinada competição para alcançar o pódio do radicalismo revolucionário. Siglas que não correspondiam a nenhuma força social efetivamente organizada como, entre várias, o Pacto de Unidade e Ação, a absoluta fraude em que se desagregaram as Ligas Camponesas, com reivindicações e ameaças que eram incapazes de sustentar, grifes revolucionárias de fantasia, tal como o Comando Geral dos Trabalhadores Intelectuais (CGTI), cópia de outra fantasia, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), tudo fica dissimulado pela repetida acusação de que Goulart manifestava a falta de conseqüência da burguesia brasileira. Bastaria pressioná-lo para, através dele, obrigar a burguesia a assumir seu papel hegemônico na pretensa revolução nacional-desenvolvimentista em curso. De nada adiantaram as advertências de que os conservadores podiam pagar para ver, como se diz no pôquer, e o único trunfo com que todos, no fundo, contavam, era o esquema de segurança dos militares nacionalistas comandados pelo Chefe da Casa Militar, General Assis Brasil.
A escalada de reivindicações do campo progressista adquiriu espantosa velocidade, obrigando o Presidente Goulart a sucessivas manobras ministeriais para aplacar as esquerdas sem perder totalmente o apoio do Congresso. Em menos de dois anos de governo, o País teve 6 ministros da Educação, 6 do Trabalho, 5 da Fazenda, 5 das Relações Exteriores, 4 da Marinha, 4 da Guerra e 3 da Aeronáutica. Foram, ao todo, 60 ministros contra 29 durante o período JK. O Congresso aprovava cada vez menor número de projetos apresentados e a coalizão governamental no Parlamento se desmanchava.

Indicador mais dramático da crise, desaparecia a viabilidade de uma coalizão alternativa dada a incapacidade da União Democrática Nacional (UDN), partido líder da oposição, de construir uma coalizão duradoura e sistemática. Sua bancada uniu-se à do PTB para derrotar uma proposta de reforma agrária apresentada pelo Partido Social Democrata (PSD), conservador e da base do governo. Em outra votação, parte da bancada da UDN uniu-se ao PTB e aos integralistas para aprovar projeto de limites à remessa de lucros de companhias estrangeiras para o exterior. Não havia mais consistência nem a favor nem contra o governo.

João Goulart não era um revolucionário. Tampouco era tolo ou tíbio. Ciente de que alguns pretendiam ir além do que seria possível legalmente, na verdade, tomar o poder com mão de gato, manteve o País dentro da legalidade, buscando alcançar seus propósitos de governo sem alterar, por meios ilícitos, as estruturas vigentes.

Em sua última mensagem ao Congresso pedia a alteração na cláusula constitucional dos alistáveis, acrescentado que seriam elegíveis todos os alistados. Ele e Leonel Brizola seriam, então, elegíveis, substituindo a legislação da época. Para a direita, essa era a senha que, no seu entender, prenunciava um golpe de Estado.

Os líderes retóricos da época procuraram as embaixadas e os aviões a partir de 2 de abril. Depois, e até hoje, e seus herdeiros, difamam João Goulart por não autorizar a resistência ao golpe, culpando sua fraqueza e titubeio pelo desenlace da crise. Com o apoio ao golpe de, no mínimo, quatro dos principais governadores estaduais – Minas Gerais, São Paulo, Rio de janeiro e Rio Grande do Sul – a resistência armada provocaria uma guerra civil e, aí sim, a quarta frota americana em passeio pelo Oceano Atlântico prestaria seus serviços. João Goulart rejeitou a proposta.

Como epílogo às 48 horas que submeteriam o Brasil a 21 anos de ditadura, os caluniadores de Jango vilipendiam sua memória ao insinuarem uma sombra de covardia em sua recusa a ordenar a movimentação das tropas. Estranho que os revolucionários de prontidão não tenham se apercebido que o general Mourão Filho não esperou ordem ou permissão para marchar de Juiz de Fora, que o comandante do IV Exército tenha prendido por conta própria o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, e que os tanques que deveriam defender a Vila Militar, no Rio de Janeiro, tenham se dirigido autonomamente ao Palácio Laranjeiras para proteger o governador Carlos Lacerda. Muito obedientes à hierarquia os nossos revolucionários...

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