domingo, 31 de janeiro de 2016

Quando a inveja do Ocidente vira ódio





Folha.com, 31/01/16



Quando a inveja do Ocidente vira ódio

Por SLAVOJ ZIZEK

tradução CLARA ALLAIN



Quem são os "oito odiosos" do filme de Quentin Tarantino?1 O grupo inteiro – brancos racistas e um soldado negro da União (na Guerra Civil americana), homens e mulheres, agentes da lei e criminosos –, todos os participantes, sem exceção, são igualmente perversos, brutais e vingativos.

O momento mais constrangedor do filme acontece quando o oficial negro (representado pelo magnífico Samuel L. Jackson) conta a um velho general confederado, em detalhes e com prazer evidente, como matou o filho racista dele, responsável pela morte de muitos negros: depois de forçá-lo a marchar nu sob vento gelado, Jackson promete ao sujeito branco morrendo de frio que receberá uma coberta se lhe propiciar sexo oral. Mas, depois que o sujeito o atende, Jackson descumpre sua promessa e o deixa morrer. Assim, não há mocinhos na luta contra o racismo – todos estão engajados na luta com brutalidade máxima.

A lição a tirar dos ataques sexuais recentes em Colônia não é estranhamente semelhante à lição do filme? Mesmo que (na maioria) os refugiados sejam de fato vítimas que fogem de países em escombros, isso não os impede de agir de modo desprezível. Tendemos a esquecer que não existe nada de redentor no sofrimento: ser uma vítima na posição mais baixa da escala social não converte você em alguma espécie de voz privilegiada da moralidade e da justiça.



Mas esse insight geral não basta – precisamos olhar mais de perto para a situação que deu origem ao incidente de Colônia. Em sua análise da situação global após os ataques em Paris, "Notre Mal Vient de Plus Loin" (nosso mal vem de mais longe, editado pela Fayard), Alain Badiou discerne três tipos predominantes de subjetividade no capitalismo global de hoje: o sujeito liberal-democrata ocidental "civilizado", de classe média; as pessoas de fora do Ocidente dominadas pelo "desejo do Ocidente", tentando a qualquer custo imitar o modo de vida dito "civilizado" das classes médias ocidentais; e os niilistas fascistas, aqueles cuja inveja do Ocidente se converte em ódio autodestrutivo mortal.

No breve ensaio, Badiou deixa claro que aquilo que a mídia descreve como "radicalização" de muçulmanos é fascistização pura e simples: "Esse fascismo é o anverso do desejo frustrado do Ocidente, organizado de maneira mais ou menos militar, seguindo o modelo flexível de uma gangue mafiosa e com colorizações ideológicas variáveis em que o lugar ocupado pela religião é puramente formal".

A ideologia da classe média ocidental possui duas características opostas: ela exibe arrogância e crença na superioridade de seus valores (direitos humanos e liberdades universais ameaçados pelos "outsiders" bárbaros), mas, ao mesmo tempo, é obcecada pelo medo de que a área sob seu domínio seja invadida por bilhões de pessoas que estão fora dela, que não contam no capitalismo global, pois nem produzem commodities nem as consomem; o medo de seus membros é passar a fazer parte da fileira de excluídos.

A expressão mais clara do "desejo do Ocidente" são os refugiados imigrantes: o desejo deles não é revolucionário – é o desejo de deixar seu hábitat devastado para trás e viver na terra prometida do Ocidente desenvolvido. (Os que ficam para trás tentam criar em seus países cópias miseráveis da prosperidade ocidental, como as partes "modernizadas" encontradas em toda metrópole do Terceiro Mundo, em Luanda, em Lagos, etc., com shopping centers, cafés que vendem cappuccinos etc.)

Como para a maioria dos candidatos esse desejo não pode ser satisfeito, uma das opções restantes é a reversão niilista: a frustração e a inveja se radicalizam, dando lugar a um ódio do Ocidente, assassino e autodestrutivo, e e as pessoas buscam a vingança violenta. Badiou vê essa violência como expressão pura da pulsão de morte, uma violência que só pode culminar em atos de (auto)destruição orgiástica, sem qualquer visão séria de uma sociedade alternativa.

Badiou tem razão ao enfatizar que não há potencial emancipador na violência fundamentalista; contudo, por mais anticapitalista que esta possa se dizer, ela é um fenômeno estritamente inerente ao universo capitalista global, seu "fantasma oculto", na definição do autor. A verdade básica do fascismo fundamentalista é a inveja; mesmo em seu ódio do Ocidente, o fundamentalismo tem raízes no desejo do Ocidente; estamos diante da reversão comum do desejo frustrado em agressividade, descrita pela psicanálise, e o islã apenas fornece a forma para embasar esse ódio (auto)destrutivo.


AMOR-PRÓPRIO

Esse potencial destrutivo da inveja é a base da conhecida distinção traçada por Rousseau em "Diálogos ou Rousseau Juiz de Jean-Jacques" entre o egotismo, "amour-de-soi", o amor de si mesmo (o amor por si próprio que é natural), e o "amour-propre", amor-próprio, a preferência pervertida por si mesmo em detrimento dos outros, em que a pessoa se concentra não tanto em alcançar uma meta, mas em destruir o obstáculo que se interpõe a ela:

"As paixões primitivas, todas as quais tendem diretamente para nossa felicidade e cujo princípio é apenas o amor de si mesmo, nos levam a lidar apenas com objetos que se relacionem com elas e são todas essencialmente amáveis e ternas; contudo, quando são desviadas de seus objetos por obstáculos, elas se ocupam mais com o obstáculo do qual querem se livrar do que com o objeto que procuram alcançar, mudando com isso sua natureza e tornando-se irascíveis e odiosas. É assim que o amor de si mesmo, um sentimento nobre e absoluto, converte-se em amor-próprio, ou seja, um sentimento relativo com o qual nos comparamos, um sentimento que exige preferências, cujo prazer é puramente negativo e que não procura encontrar satisfação em nosso próprio bem-estar, mas apenas no infortúnio de outros."

Assim, uma pessoa perversa não é um egotista, "que pensa apenas em seus próprios interesses". O verdadeiro egotista está ocupado demais cuidando do que o beneficia para ter tempo de fazer mal aos outros. O vício primário de uma pessoa perversa é preocupar-se mais com os outros que com ela mesma. Rousseau descreve um mecanismo libidinal preciso: a inversão que gera o deslocamento do investimento libidinal do objeto para o próprio obstáculo.

Isso pode muito bem ser aplicado à violência fundamentalista, independentemente de estarmos falando do atentado de Oklahoma City em 1995 ou do ataque ao World Trade Center em 2001. Em ambos os casos, trata-se de ódio puro e simples: destruir o obstáculo, o edifício federal de Oklahoma City ou as Torres Gêmeas, era o que realmente interessava, e não alcançar a meta nobre de uma sociedade verdadeiramente cristã ou muçulmana – veja-se o que diz Jean-Pierre Dupuy em "Petite Metaphysique des Tsunamis" (Seuil).



Essa fascistização pode exercer certa atração sobre a juventude imigrante frustrada que não consegue encontrar um lugar próprio nas sociedades ocidentais ou uma perspectiva com a qual se identificar. A fascistização oferece a esses jovens uma saída fácil para sua frustração: uma vida cheia de emoções e riscos disfarçados de dedicação religiosa sacrificial, somada à satisfação material (sexo, carros, armas...) – não esqueçamos que o Estado Islâmico também é um grande empreendimento comercial mafioso, que vende petróleo, estátuas antigas, algodão, armas e mulheres escravas – "um misto de propostas heroicas mortais e, simultaneamente, de corrupção ocidental por produtos", como escreve Badiou em seu livro.

É desnecessário dizer que essa violência fascista-fundamentalista é apenas um dos modos de violência pertinentes ao capitalismo global e que devemos ter em mente não apenas as formas de violência fundamentalista nos próprios países ocidentais (populismo anti-imigrante, etc.), mas, sobretudo, a violência sistemática do próprio capitalismo, desde as catastróficas consequências da economia global até a longa história das intervenções militares.


IMPOTÊNCIA

O fascismo islâmico é um fenômeno profundamente reativo no sentido nietzschiano do termo, uma expressão de impotência convertida em raiva autodestrutiva. Assim, ao mesmo tempo em que concordo com o sentido geral da análise de Badiou, considero problemáticas três de suas afirmações.

Em primeiro lugar, a redução da religião, forma religiosa de niilismo fascista, a elemento secundário superficial: "A religião é apenas uma vestimenta; ela não é de maneira alguma o xis da questão; é apenas uma forma de subjetivação, não o conteúdo real da coisa", escreve Badiou.

Ele está totalmente certo quando diz que a procura pelas raízes do terrorismo muçulmano de hoje em textos religiosos antigos (a história de "já estava tudo no Alcorão") é enganosa: devemos, em vez disso, nos concentrar no capitalismo global de hoje e conceber o fascismo islâmico como um dos modos de reação à atração desse capitalismo, através da inversão da inveja em ódio.

Mas, se vista criticamente, toda religião não é uma espécie de vestimenta, e não o cerne da questão? A religião não é, em seu próprio cerne, uma "forma de subjetivação" do dilema das pessoas? E isso não equivale a dizer que uma vestimenta é, em certo sentido, "o xis da questão", o modo como os indivíduos vivem sua situação? Não há como recuar um passo e, de alguma maneira, ver as coisas de fora, como elas "realmente são".
Daí advém a identificação, demasiado apressada, de refugiados e migrantes como um "proletariado nômade", uma "vanguarda virtual da gigantesca massa de pessoas cuja existência não é levada em conta no mundo do modo como ele é". Não são os migrantes (em sua maioria, pelo menos), os mais fortemente possuídos pelo "desejo do Ocidente", aqueles que se rendem mais profundamente ao fascínio da ideologia hegemônica?

Finalmente, a exigência ingênua de que devemos "ir ver quem é esse outro do qual se fala, quem são realmente essas pessoas". "Precisamos reunir seus pensamentos, suas ideias, sua visão das coisas e inscrevê-los, e a nós mesmos, em uma visão estratégica do destino da humanidade", defende Badiou.


OUTRO

Falar é fácil: esse outro é, como descreve o próprio Badiou, totalmente desorientado, possuído pelas atitudes opostas da inveja e do ódio, ódio esse que em última análise expressa seu próprio desejo reprimido pelo Ocidente (razão pela qual o ódio se transforma em autodestruição).

Faz parte de uma metafísica humana ingênua pressupor que exista algum núcleo humano "mais profundo" de solidariedade global por baixo desse ciclo vicioso de desejo, inveja e ódio. Não faltam relatos mostrando que muitos sírios constituem uma exceção entre os refugiados: nos campos de transição, eles limpam a sujeira que fazem, comportam-se de modo gentil e respeitoso; muitos deles têm alto nível de instrução e falam inglês, com frequência até pagam pelo que consomem – em suma, são como nós, como nossas classes médias educadas e civilizadas.

(E eles chegam a tentar criar solidariedade com os europeus nativos: na Eslovênia, a mídia divulgou casos em que imigrantes sírios de classe média entabularam conversas com eslovenos que os estavam ajudando, precavendo-os contra a maioria dos outros refugiados, que descreveram como brutais e primitivos.)

É comum e bem-visto dizer que os refugiados violentos representam uma minoria e que a maioria deles tem respeito profundo pelas mulheres. Embora isso seja verdade, é claro, devemos, mesmo assim, lançar um olhar mais atento sobre a estrutura desse respeito: que tipo de mulher é "respeitada" e o que se espera dela com esse respeito? E se a mulher for "respeitada" na medida em que (e apenas na medida em que) se enquadrar no ideal da criada dócil que cumpre suas tarefas fielmente, de modo que seu homem possa explodir em fúria se ela sair de seu controle e agir com plena autonomia?

Nossa mídia normalmente opõe refugiados "civilizados" de classe média a refugiados "bárbaros" de classe mais baixa, que roubam, assediam nossos cidadãos, comportam-se violentamente com mulheres, defecam em público...
Em vez de rejeitar isso tudo como propaganda racista, devemos munir-nos da coragem para discernir nisso um instante de verdade: a brutalidade, chegando à crueldade total em relação aos fracos, aos animais, às mulheres etc., é uma característica tradicional das "classes mais baixas"; uma de suas estratégias de resistência aos que estão no poder sempre foi uma manifestação apavorante de brutalidade, que visa perturbar o senso de decência da classe média.


CARNAVAL

Sentimos a tentação de interpretar assim também aquilo que aconteceu em Colônia na noite do Réveillon – como um carnaval obsceno da classe mais baixa, por exemplo, na descrição do jornal britânico "The Guardian":

"A polícia alemã investiga denúncias de que dezenas de mulheres teriam sido assaltadas e sexualmente agredidas no centro de Colônia durante os festejos do Ano-Novo, em algo que um ministro descreveu como 'uma dimensão de crime inteiramente nova'. De acordo com a polícia, os responsáveis pelos ataques sexuais e numerosos roubos teriam origem árabe ou norte-africana. Mais de cem denúncias foram feitas à polícia, um terço das quais ligadas a agressões sexuais. O centro da cidade se converteu em uma 'zona sem lei': entre 500 e 1.000 homens descritos como bêbados e agressivos teriam sido responsáveis pelos ataques a pessoas que festejavam o Ano-Novo no centro da cidade alemã ocidental. Mulheres relataram terem sido cercadas por grupos de homens que as molestaram e assaltaram. Algumas pessoas atiraram fogos de artifício no meio da multidão, agravando o caos. Uma das vítimas foi violentada. Uma policial voluntária está entre as mulheres que teriam sido sexualmente agredidas."
Como se poderia prever, o incidente está crescendo: mais de 500 mulheres já fizeram denúncias, com acontecimentos semelhantes em outras cidades alemãs e na Suécia; há indicações de que os ataques teriam sido coordenados previamente, e "defensores do Ocidente civilizado" de direita, contra os imigrantes bárbaros, estão revidando com ataques a imigrantes, de modo que uma espiral de violência ameaça ser desencadeada.

Como era previsível, a esquerda liberal politicamente correta mobilizou seus recursos para minimizar o incidente, do mesmo modo como fez no caso dos abusos sexuais contra crianças em Rotherham, no Reino Unido, um ano atrás. Mas há mais, muito mais: o carnaval de Colônia deveria ser inserido na longa sequência cujo primeiro caso registrado data de Paris na década de 1730, o chamado Grande Massacre dos Gatos.

Na ocasião, um grupo de aprendizes de gráficos torturou e matou ritualmente todos os gatos que conseguiu encontrar, incluindo o gato de estimação da mulher de seu mestre. Os aprendizes eram literalmente tratados pior do que os gatos por ela adorados, especialmente "La Grise", a gatinha cinzenta favorita dela, como aponta Robert Darnton em "O Grande Massacre dos Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa", cuja descrição seguimos aqui.


Certa noite os garotos resolveram corrigir essa situação injusta: jogaram sacos cheios de gatos semimortos no pátio e então os penduraram em forcas improvisadas. Os rapazes deliravam de alegria, de desordem, gargalhando. Mas por que a matança lhes parecia tão engraçada?

No Carnaval as pessoas comuns suspendiam as regras normais de comportamento e faziam uma inversão cerimonial da ordem social, colocavam-na de ponta-cabeça, numa procissão caótica. O Carnaval era o momento da hilaridade, da sexualidade e da juventude terem as rédeas soltas, e o povo frequentemente incorporava a tortura de gatos em sua diversão brutal.

Quando zombavam de um marido traído ou de alguma outra vítima, os jovens passavam um gato de mão em mão, arrancando seus pelos para fazê-lo uivar. Chamavam a isso "faire le chat". Os alemães o chamavam de "Katzenmusik", música dos gatos, termo que parece derivado dos uivos dos animais torturados.

A tortura de animais, especialmente gatos, foi uma diversão popular ao longo do início da era moderna na Europa. O poder dos felinos se concentrava no aspecto mais íntimo da vida doméstica: o sexo. "Le chat", "la chatte", "le minet" significam na gíria francesa a mesma coisa que "pussy" em inglês –a vulva.2 Essas palavras são empregadas como termos chulos há séculos.

Poderíamos, então, conceber o incidente de Colônia como uma versão contemporânea de "faire le chat"? Como uma revolta carnavalesca dos injustiçados? Não foi o simples desejo de satisfação de homens jovens, privados de sexo – isso poderia ser conseguido de maneira mais discreta, oculta –, foi antes de mais nada uma maneira muito pública de suscitar medo e humilhação, de expor as "pererecas" das alemãs privilegiadas a uma situação de impotência dolorosa. É claro que não existe nada de redentor ou emancipador, nada de efetivamente liberador em tal carnaval – mas é assim que funcionam os carnavais reais.

É por isso que esforços ingênuos para transmitir informações aos imigrantes – explicando a eles que nossos costumes sexuais são diferentes, que quando uma mulher anda de minissaia em público e sorri, isso não significa um convite sexual etc. – são exemplos de estupidez assombrosa. Eles sabem disso. Eles têm plena consciência de que o que estão fazendo destoa de nossa cultura predominante, mas o fazem precisamente para ferir nossas sensibilidades.

O que é preciso é mudar essa postura de inveja e agressividade vingativa, e não ensinar aquilo que eles já sabem muito bem.
A difícil lição a tirar disso tudo é que não basta simplesmente dar voz aos injustiçados do modo como eles estão: para concretizar a emancipação real, eles precisam ser educados – por outros e por eles próprios – para a liberdade.


Notas da tradutora:

1. Embora o filme tenha sido lançado como "Os Oito Odiados" no Brasil, a tradução mais próxima do original seria "os oito odiosos".2. Em português, um termo assimilado seria "perereca".

SLAVOJ ZIZEK, 66, filósofo e psicanalista esloveno autor de, entre outros, "O Absoluto Frágil" (Boitempo).

Esse homem não pode ser candidato


http://cartamaior.com.br/?/Editorial/Esse-homem-nao-pode-ser-candidato/35407



​Carta Maior, 31/01/2016



Esse homem não pode ser candidato


Por Saul Leblon



        
Não vai ter golpe. A receita do impeachment secou no forno tucano. A crise mundial escancarou a fraude que atribuía ao PT o desmanche do Brasil. Dilma afrouxou a camisa de força do arrocho com dano inferior ao imaginado. Pode e deve ir além, na frente econômica e política. A reativação do CDES mostrou que é possível arrastar uma parte expressiva do PIB para fora do golpe. Não é o único broto da frente política necessária à superação da encruzilhada do desenvolvimento, mas é um passo na retomada da iniciativa para além da defensiva e da prostração.

O que sobrou ao golpismo, então?

Sobrou a última carta na mesa: decidir 2018 em 2016.

Significa matar, picar, salgar, espalhar partes do carisma e da credibilidade de Lula pelas ruas, praças, vilas, periferias, vizinhanças e campos de todo o país

Esse homem não pode ser candidato; se for é capaz de vencer; se vencer será impossível impedi-lo de assumir; se assumir pode fazer outro grande governo.’

Essa é a versão de hoje para o que dizia Lacerda em junho de 1950, quando tentava igualmente abortar a candidatura de Vargas à presidência da República: ‘Esse homem não pode ser candidato; se candidato não pode ser eleito; se eleito não deve tomar posse; se tomar posse não deve governar’.

A caçada a Lula ganhou a velocidade vertiginosa da urgência conservadora que manda às favas o pudor e as aparências.

É preciso capturar essa presa antes que ela retome o fôlego e o fôlego tome as ruas.

Vale tudo.

Não é força de expressão.

É o nome da pauta interativa que conectou as redações a um pedaço do judiciário.

De onde virá a pá de cal?

Do pesqueiro que ele frequenta? Da canoa de alumínio de R$ 4 mil reais? Do apartamento que, afinal, não comprou? De um delator desesperado? De alguém coagido pela República do Paraná, disposto a qualquer coisa para proteger familiares retidos e ameaçados?

Eles não vão parar.

A Lava Jato escuda-se em razão meritória para agir como braço partidário. O golpismo os incentiva, a mídia sanciona e se lambuza.

Só a rua.

Desfrutáveis rapazes e moças denominados ‘jornalistas investigativos’ inscrevem-se nas mais diferentes façanhas para antecipar o desfecho, antes que alguma resistência aborte o cronograma.

A piada venezuelana sobre a escassez de pasta de dente, divulgada como noticia pelo UOL, mostra a tensão reinante entre rigor e furor.

A mesma sofreguidão fez a ênfase do delator Paulo Roberto Costa em inocentar Marcelo Odebrecht transformar-se em sutil incriminação do empresário na desgravação para Moro.

‘Isso não vem ao caso’ – diria FHC.

Nenhum caso vem ao caso quando associa tucanos a eventos em que o interesse público se subordina ao apetite privado.


Procuradores procuram -  produzem? - febrilmente a pauta da semana, auxiliados por redações interativas.

A narrativa geral é adaptada ao sotaque de cada público. Desde a mais crua, tipo JN, às colunas especializadas em conspirar com afetação pretensamente macroeconômica ou jurídica.

A mensagem vibra a contagem regressiva em direção a ‘ele’.

‘Ele’ é o troféu mais cobiçado, a cabeça a ser pendurada no espaço central da parede onde já figuram outras peças preciosas, embalsamadas pela taxidermia conservadora.

A sentença de morte política foi lavrada em 2005/06, quando se concluiu que pela via eleitoral Lula seria imbatível diante das opções disponíveis.

A partir de então seu entorno e depois o seu próprio pescoço seriam espremidos num garrote que range as derradeiras voltas do parafuso vil.

O assalto final será indolor à matilha?

Eis a pergunta política de resposta mais cobiçada nos dias que correm.

Depende muito do discernimento das lideranças nascidas dessa costela, e até mesmo - ou quem sabe, principalmente -  de algumas referenciadas a marcos históricos que vão além dela.

São hoje as mais mobilizadas.

Amanhã serão as primeiras atingidas, se a ‘macrização’ do Brasil for bem sucedida.
 
Acuado como está e limitado pelo
erro histórico de um ciclo que promoveu a mobilidade social sem correspondente organização política, Lula é refém da avaliação que o conjunto da esquerda fizer de sua importância para o futuro da democracia social no país.

É tão ou mais refém disso do que do sentenciamento conservador. Neste já foi condenado.

Mas a rua pode salvá-lo.

‘Ah, mas Lula foi ultrapassado pelo avanço da luta popular?’

É um paradoxo: se avançamos tanto, como é que eles estão em sulforosa ofensiva por ar, terra e mar?

‘Culpa do PT.’

Na Venezuela também? Na Argentina, na Europa...?

Há uma recidiva da crise mundial, cuja extensão e profundidade o PT subestimou.

O mundo vai murchar com a desalavancagem global de múltiplas bolhas perfuradas agora pela freada chinesa.

Estamos a bordo de um acirramento da disputa pelo bolo mais magro urbis et orbi.

Nada isenta o PT e o governo dos equívocos sabidos, que o tornaram mais vulneráveis nesse momento.

O embate, porém, vai muito além do que imagina o bisturi que resume a equação histórica a lancetar o espaço do PT na trincheira progressista.

Em Portugal, uma esquerda que conseguiu maioria parlamentar, acaba de perder no primeiro turno presidencial para a direita.

A esquerda portuguesa resolveu ir para as urnas dividida. Cada qual inebriada de sua autossuficiência para enfrentar a desordem mundial do capitalismo.

Como pretendemos caminhar para 2018?

A pergunta vale para o governo, para o PT e para as forças que legitimamente se evocam à esquerda do PT.

O ciclo iniciado em 2003 tirou algumas dezenas de milhões de brasileiros da pobreza; deu mobilidade a outros tantos milhões na pirâmide de renda.

Foi inconcluso porque atribuiu às gôndolas do supermercado a tarefa de promover o salto de consciência que mudaria a correlação de força no país.


A inclusão foi tão expressiva, porém, que sob a cortina de fogo impiedosa do monopólio midiático, há quase uma década, acuado, ferido, enxovalhado noite e dia, sem espaço de resposta, Lula ainda figura como o nome que parte com 25% dos votos nas sondagens da nova corrida presidencial.

Aécio e Marina, teoricamente o suplantariam numa quase certa aliança no segundo turno.

Mas a direita sabe que não é bem assim.

Com acesso diário à tevê que hoje lhe é sonegada, ao rádio e ao debate num cenário econômico que dificilmente será tão ruim quanto o atual, as alardeadas dianteiras dos seus principais adversários podem derreter junto com o ‘crime’ de frequentar um pesqueiro em Atibaia, com a canoa de preço equivalente ao de uma carretilha das disponíveis nos iates de alguns de seus críticos, e com o ‘tríplex’ que, afinal, não lhe pertence.

Por isso é preciso liquidar a fatura agora, na janela de oportunidade entre o vácuo orgânico da militância e a incerteza relativa a 2018.

Em 1954, quando a direita já escalava as grades do Catete e os jornais conservadores escalpelavam a reputação de quem quer que rodeasse Vargas, a sua morte política era comemorada por parte da esquerda.

O varguismo era acusado de ser um corredor aberto ao imperialismo, um manipulador das massas.

Vargas não era um bolchevique.

Tampouco detinha a representação de São Francisco de Assis na terra.

Era um estancieiro.

Não fez a reforma agrária. Nunca viveu agruras, não liderou greves, não leu Marx – perseguiu marxistas no seu primeiro governo.

Ao mesmo tempo, criou o salário mínimo, as leis trabalhistas, peitou o imperialismo...


Vargas foi o que são líderes nacionais populares de cada tempo concreto: seres contraditórios de carne e osso, exatamente por isso magnéticos na personificação de um projeto de desenvolvimento em que o vórtice selvagem do capital passa a ser domado pelas rédeas dos interesses sociais organizados.

Vem de Varoufakis, o ex-ministro da Fazenda da Grécia, a preciosa síntese do que está em jogo num mundo que é o avesso disso, capturado pela desregulação dos mercados: ‘Não deixar nenhuma zona livre de democracia’.

Até onde a sociedade pode ir por esse caminho? Até onde a correlação de forças permitir a democratização de todas as instâncias de poder na sociedade.

Lula tem seu espaço nesse enredo.

Em abril de 1953 uma parte da esquerda brasileira considerava que Vargas não tinha mais.

Simultaneamente uma ciranda de ataques descomprometidos de qualquer outra lógica que não a derrubada de um projeto de desenvolvimento soberano sacudia o entorno do governo que criara a Petrobras, o BNDES e uma política de fortalecimento do mercado interno com forte incremento do salário mínimo.

O clima pesado das acusações e ofensas pessoais atingia Getúlio e sua família de forma virulenta.

Lutero, irmão do Presidente, era seviciado por manchetes garrafais que o tratavam como ‘bastardo’ e "ladrão".

A imagem veiculada do ministro do Trabalho, João Goulart, era a de um cafajeste, um "personagem de boate".

Lembra algo?

A dramaticidade do suicídio político mais devastador da história iluminaria o discernimento popular gerando revolta diante do ódio golpista que tirou a vida de Vargas.

Porta-vozes da oposição a Getúlio foram escorraçados nas ruas do Rio; uma multidão consternada e enfurecida cercou e depredou a rádio Globo que saiu do ar; veículos da família Marinho foram caçados, tombados, queimados nas ruas da cidade. Para Carlos Lacerda não sobrou um centímetro de chão firme: o "Corvo" foi recolhido a bordo do cruzador Barroso, distante da costa.
A esquerda que dispensava a Vargas o tratamento dado a um cachorro morto, teve que reinventar a sua agenda com a bicicleta andando.

Quase sessenta e dois anos depois do tiro que sacudiu o país, a pressão atual do cerco conservador permite aquilatar a virulência daquele período.

O Brasil está de novo sob o tropel da mesma cavalaria.

Com os mesmos cascos escoiceando a nação e reputações.

O mesmo arsenal para alvos e objetivos correlatos.


No julgamento do chamado 'mensalão', o sociólogo Marcos Coimbra, presidente do Instituto de Pesquisas Vox Populi,  mensurou um pedaço da artilharia conservadora voltada contra o discernimento da sociedade.

Em apenas quatro semanas até 13 de agosto de 2012, 65 mil textos foram publicados na imprensa atacando o PT, Lula e o seu governo.
"No Jornal Nacional, para cada 10 segundos de cobertura neutra houve cerca de 1,5 segundos negativos.

Nas rádios, conectadas pela propriedade cruzada aos mesmos núcleos emissores, a pregação incessante era e ainda é mais abusada.

A mesma elasticidade ética reveste a ação da mídia determinada a calafetar cada poro do país  com uma gosma de nojo e prostração.

Persiste, enfim, o cerco ao Catete.

A qualquer Catete dentro do qual políticas públicas tenham buscado pavimentar mais um trecho da estrada inconclusa que leva à construção de uma democracia social na AL.

Desta vez não haverá tiro para alertar a esquerda brasileira.

Mas caberá a ela escrever a carta testamento para explicar o Brasil deixado aos que vierem depois de nós.

A ver.

De reais casos da afinidade rural comum a presidentes e empreiteiros





​Folha.com, 31/01/16



Uma visita ao sítio



Por Jânio de Freitas



A renovada notícia sobre obras em um sítio que a família de Lula frequentaria, na paulista Atibaia, dá oportunidade à recuperação de dois casos reais da afinidade rural comum a presidentes e empreiteiros. Embora um caso se passasse na ditadura e outro na democracia, a discrição que os protegeu teve a mesma espessura.


A ótima localização de um sítio em Nogueira, seguimento de Petrópolis, não chegava a compensar o aspecto simplório dada à área, nem a precariedade da casa. Em poucos meses, porém, acabou o desagrado do general-presidente com as condições locais. O terreno foi reurbanizado, a casa passou a ser um moderno bangalô de lazer. Surgiram piscina, uma pista de hipismo, estrebaria, estacionamento e um jardim como as flores gostam. Uma doação da empreiteira Andrade Gutierrez ao general Figueiredo, então na Presidência.

Em poucos anos de novo regime, a Andrade Gutierrez podia provar que sua generosidade não padecia de pesares nostálgicos. Proporcionou até uma estrada decente para a fazenda em Buritis, divisa de Goiás e Minas, que o já presidente Fernando Henrique e seu ministro das Comunicações e sócio Sérgio Motta compraram em operação bastante original. Como a democracia tem inconvenientes, dessa vez a estrada foi guarnecida de um pretexto: era só dizer que serviria a uma área que a empreiteira comprara ou compraria na mesma região.

O sítio que não é de Lula, mas recebeu-o em visitas injustificadas para a imprensa e depois para a Lava Jato, entrou nas fartas suspeições de crime quando "Veja" e logo Folha noticiaram, em abril do ano passado: a OAS de Léo Pinheiro "realizou uma reforma em um sítio a pedido do [já] ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva", área de 173 mil m² dos sócios de um filho de Lula.

A descoberta desse fato deu-se, disse a notícia, nas "anotações feitas por Léo Pinheiro no Complexo Médico Penal, em Curitiba". Mas, como ninguém da Lava Jato falou nada, os jornalistas calaram o assunto por sete meses. Ou até que, em novembro, a opinião pública foi blindada com a aparente notícia de que "a Polícia Federal investiga se a OAS beneficiou a família do ex-presidente" Lula "ao pagar por obras" no sítio "frequentado pelo petista e seus parentes". Mas a obra deixara de ser "realizada" pela OAS para ser apenas "paga" pela empresa.

Nove meses depois da revelação, o sítio reaparece, ainda sem um esclarecimento da Polícia Federal e da Lava Jato: não houve delação a respeito, logo, só se investigassem. Nem por isso faltam novidades: sumiram a OAS e Léo Pinheiro e entrou a Odebrecht, empreiteira da moda. Citada por uma senhora vendedora de material de construção e um carpinteiro, com alegada base em alguns recebimentos que tiveram. E a tal anotação de Léo Pinheiro, que falava em OAS? Outra tapeação?

Figuras imaculadas, deve ter sido para não ver os seus novos bens em tal protelação e barafunda que Figueiredo, Fernando Henrique e Sérgio Motta preferiram que ninguém soubesse deles. Mas o sítio de Atibaia mostra bem o quanto fatos relevantes, pelas suspeitas-já-acusações que os utilizam, estendem consequências no tempo e confundem a indefesa opinião pública.

Como o sítio de Atibaia, há muitos fatos e circunstâncias, não só da Lava Jato, na atualidade brasileira.

sábado, 30 de janeiro de 2016

'O príncipe da escuridão' - Livro conta história do primeiro milionário negro de Wall Street






Folha.com,
​30/01/16



​Livro conta história do primeiro milionário negro de Wall Street

​​
RODOLFO LUCENA
DE SÃO PAULO



Armada de paus, pedras, cassetetes, tijolos, a multidão invadiu o Orfanato para Crianças Negras. Seus gritos de ódio vomitavam sangue: "Morte aos macacos!" 

Antes da invasão do prédio na Quinta Avenida de Nova York, entre as ruas 43 e 44, os funcionários conseguiram tirar do asilo as 233 crianças que eram atendidas lá. Furiosa por não encontrar suas vítimas, a massa tacou fogo no edifício, que queimou inteiro. 

Era o primeiro dia do Motim do Recrutamento (Draft Riots), que começou como revolta contra a convocação arbitrária de soldados para combater no Exército nortista, na Guerra Civil norte-americana, e se transformou em violência racial pura e simples. 

Na terça-feira, 14 de julho de 1863, a barbárie continuava. Hordas de brancos armados perseguiam, espancavam e matavam os negros que viam em seu caminho. Alguns grupos de desordeiros tinham destino certo.

"Ses-sen-ta-e-oi-to! Ses-sen-ta-e-oi-to!", cantava ameaçadoramente uma turma que seguia pela rua 29. Protegidos por trás de suas janelas e cortinas, moradores brancos das elegantes casas da rua chique, observavam os invasores.

Por prosaico que pareça, quando a massa embrutecida chegou ao número 68 da rua 29 Leste, um dos atacantes teve a pachorra de tocar a campainha do sobrado.

Frente ao silêncio total, portas e janelas foram quebradas e derrubadas, e os atacantes chegaram derrubando móveis. Foram confrontados por uma elegante mulher branca, que teve calma para perguntar o que eles queriam. 


"Matar o senhor Hamilton!", foi a resposta que Eliza Jane Hamilton recebeu, segundo ela mais tarde contou às autoridades policiais. Por certo, não foram essas as palavras exatas que ouviu. Talvez tivessem sido algo como "acabar com aquele negão" ou "enforcar o crioulo Hamilton".

Não conseguiram. Jeremiah G. Hamilton não só escapou do massacre - ao final dos quatro dias de tumulto em 1863, 119 pessoas tinham sido assassinadas, a maioria delas negros - como seguiu levando uma vida próspera e controversa.

Quando morreu, no dia 19 de maio de 1875, aos 67 anos, 11 meses e 22 dias, dezenas de jornais norte-americanos publicaram obituários do milionário negro de Nova York. Com uma fortuna estimada em mais de US$ 2 milhões (mais de US$ 250 milhões nos dias de hoje), era o mais rico homem de cor dos Estados Unidos. 

Sua vida foi um turbilhão. Ao que se sabe, começou a carreira em 1828, traficando dinheiro falso no Haiti - foi condenado à morte pelas autoridades locais, que colocaram sua cabeça a prêmio. 

Em 1833, porém, desembarcou em Nova York como homem de negócios. Na metrópole, fez de tudo: emprestou dinheiro a juros, atuou na área de seguros, negociou navios, comprou terras, arriscou-se na imprensa e se tornou o primeiro negro a atuar em Wall Street, o centro nervoso do mundo financeiro norte-americano. 

Por sua cor e por seus métodos comerciais pouco ortodoxos - similares aos de seus pares, a bem da verdade –, foi alvo de ódio, desprezo e discriminação, além de admiração, por certo. Recebeu o apelido de 'Príncipe da Escuridão' - havia quem, ainda mais ofensivamente, o chamasse apenas de Crioulo Hamilton

Sua curiosa e nebulosa trajetória está contada em 'Prince of Darkness - The Untold Story of Jeremiah Hamilton, Wall Street`s First Black Millionaire', obra do historiador britânico Shane White.

Talvez exatamente por ser negro, Hamilton não teve biógrafos contemporâneos, como outros magnatas da época - Cornelius Vanderbilt, por exemplo, com quem se enfrentou em momentoso processo nos tribunais nova-iorquinos.

Para contar a trajetória de seu personagem, White se baseou em reportagens e registros de tribunais - conseguiu levantar mais de 50 processos em que Hamilton era acusador ou acusado, além de outros em que apareceu como testemunha. 

Recheia o relato com crônicas da época. Leva o leitor, por exemplo, a conhecer o mundo da imprensa de Nova York na primeira metade do século 19. Conta como surgiu a venda direta de jornal nas ruas da cidade, em 1833, e apresenta o primeiro jornaleiro de que se tem notícia, Bernard Flaherty, que tinha dez anos na época e vendia o recém-nascido "New York Sun" ao convidativo preço de um centavo. 

Discute as complicações das finanças num período em que não havia nos Estados Unidos uma moeda única. E traça um quadro vivo da explosão da primeira bolha imobiliária nos EUA, que levou o país à sua primeira Grande Depressão, o Pânico de 1837

Como pano de fundo, estão os horrores do racismo. Apesar de Nova York ter banido definitivamente a escravidão em 1827, a segregação prosseguiu. 

Negros não podiam, por exemplo, usar transporte público com brancos. Tinham direito ao voto, mas as exigências para o registro eram tamanhas que isso se tornava praticamente impossível - dos 12.499 negros que moravam no Condado de Nova York em 1826, apenas 16 atendiam aos requisitos para se qualificar para votar

Havia negros empresários, e alguns até fizeram fortuna. Mas deviam "conhecer o seu lugar", atuar na própria comunidade ou, no máximo, prestar serviços ao mundo branco - caso do famoso dono de restaurante Thomas Downing.

Jeremiah Hamilton escolheu subverter essa ordem. Como um furacão, invadiu um mundo de brancos, em uma área até então fechada aos homens de cor. E venceu.

Prince of Darkness

AUTOR Shane White
EDITORA St. Martin's Press

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Dívida Pública: mitos e realidade


http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Divida-Publica-mitos-e-realidade/7/35396



Carta Maior, 28/01/2016

Dívida Pública: mitos e realidade


José Luis Fevereiro*


Sobre a origem

A dívida pública brasileira é estimada em torno de R$3 trilhões (conforme a metodologia usada pode ser mais ou menos). Isso corresponde a cerca de 65% do PIB, no caso da dívida bruta, e a cerca de 49% do PIB na dívida líquida (descontadas as reservas). Em termos comparativos com outros países, não é uma dívida grande. O Japão deve mais de 230% do PIB, os EUA quase 100%. No entanto, desde 1994 até hoje, ela cresceu de cerca de R$50 bilhões para os valores atuais. No início dos anos 90, com o plano Collor, a dívida brasileira havia sido quase toda "esterilizada". O bloqueio dos ativos financeiros, a não incorporação da inflação de março de 90 (de quase 80%) e a posterior correção desses ativos em valores inferiores à inflação real corresponderam a um calote efetivo na dívida, que foi reduzida a valores muito baixos.

Reza a lenda, difundida pela mídia conservadora e pelos economistas liberais, que o crescimento da divida é resultado da "gastança" dos governos, culpa da Constituição de 88 que foi muito "generosa" com os direitos sociais, culpa dos aposentados - e por aí vai. Na verdade, com exceção de alguns anos do governo FHC e dos dois últimos anos do governo Dilma, em nenhum momento os gastos primários do governo (excluindo juros) foram maiores que a arrecadação de tributos e contribuições sociais. O chamado déficit primário foi exceção nos últimos 21 anos em relação aos superávits primários.

Na verdade, a história começa com o Plano Real e a sua concepção embutida de trocar inflação por dívida. Ao ancorar informalmente o real ao dólar e abrir o país às importações, com o objetivo de impedir remarcações de preço pelos produtores nacionais, o governo precisava de entrada de dólares para sustentar o câmbio e cobrir os déficits comerciais e de serviços nas contas externas. A forma de obtê-los foi o programa de privatizações e a subida alucinada da taxa de juros sobre a dívida pública, atraindo toda a sorte de capital especulativo. Taxas de juros reais (descontada a inflação) de mais de 10% ao ano eram normais nos anos 90.
Lula assume em 2003 com uma dívida pública já inflada para R$630 bilhões, decorrente exatamente dessas taxas de juros extravagantes. A política de juros elevados é mantida por Lula com Henrique Meirelles na presidência do Banco Central. A alegação era de que juros altos são essenciais numa economia com tendências inflacionárias crônicas. Dito assim, pode parecer que a inflação é algo no DNA do povo brasileiro ou decorrente da água que bebemos. Na verdade, duas são as razões estruturais para o Brasil ter uma taxa de inflação tão resiliente na faixa media dos 5 a 6%.

A primeira é que como economia em transição há um ajuste de preços relativos em curso que os países ricos já fizeram faz tempo. A elevação em termos reais do salário mínimo, bem como a melhoria dos padrões educacionais, encareceram o custo da mão de obra de baixa qualificação, elevando o preço dos serviços. A estabilidade da moeda e a abertura do crédito imobiliário (praticamente inexistente até então), mesmo que caro, encareceram o preço dos imóveis. Estes preços relativos os países ricos já corrigiram faz tempo. Por esta razão é impensável que possamos ter inflação Suíça, na faixa de 1 a 2% ao ano.

O segundo fator é a persistência de indexações indesejadas na economia brasileira. Diz-se entre economistas que uma das vertentes da luta de classes é o esforço em desindexar a renda do outro lado mantendo a sua perfeitamente indexada. Assim, o discurso conservador aponta a necessidade de desindexar o piso da previdência e agora até o próprio salário mínimo da inflação, possibilitando o "ajuste" em tempos de crise. Mas o Brasil é dos poucos países onde um contrato de aluguel de 30 meses vem com cláusula de reajuste anual, onde as concessões de serviços públicos têm cláusulas de reajuste anual indexadas a índices inflacionários, onde portanto a renda do patrimônio e do capital segue perfeitamente indexada sem contestações, reprogramando para a frente a inflação passada.

Neste cenário a política de juros altos, muito pouco eficaz no controle da inflação, nada mais é que um mecanismo de transferência de renda do conjunto da sociedade para os beneficiários do rentísmo.


Dívida Pública: para que serve e para o que deveria servir


Na maior parte dos países a dívida pública é algo positivo. O estado gastar mais do que arrecada para realizar investimentos em infraestrutura, educação, universalização da rede de saúde, benefícios que atingirão gerações, diluindo estes custos no tempo, sempre foi um instrumento positivo para acelerar o desenvolvimento. O maior desenvolvimento daí decorrente aumentará no momento seguinte a própria arrecadação tributária, aumentando a capacidade de gasto do estado. Obviamente que estamos falando de países que remuneram a sua divida com taxas próximas à inflação e em alguns casos até abaixo. Inacreditáveis taxas de 0,5% ao ano são frequentes no Japão, por exemplo. Não imagino que fosse possível taxas dessa natureza no Brasil porque nossa moeda não é considerada reserva de valor ao contrário do Dólar, do Yen e do Euro, mas taxas próximas à média da inflação (portanto taxa zero em termos reais) seriam perfeitamente possíveis.

Para além disso, dívida pública é fundamental como mecanismo de política econômica para regular a liquidez da economia induzindo maior ou menor crescimento. Se, por uma intervenção celestial, a dívida fosse extinta, teria que ser recriada.

O problema, portanto, da dívida brasileira não é o seu tamanho nem a sua existência. É a quem ela serve. Enquanto for remunerada a taxas de juros despropositadas, obrigando o estado a gerar superávits primários para a sustentar, ela serve à elite rentista. Retomar o controle público sobre a dívida, transformando-a em fator de financiamento do desenvolvimento econômico e social do Brasil, é o programa que a esquerda brasileira deve assumir como central.


Quanto dos nossos impostos vai anualmente para pagar a dívida

Em 2014 e 2015, zero. A União teve déficit primário e, portanto, não sobrou da arrecadação de impostos e contribuições nem um centavo para a dívida, fazendo com que toda ela fosse rolada com a emissão de novos títulos com vencimento a futuro. Mais do que isso, parte dos gastos primários do governo, o déficit primário, também foi financiado com emissão de dívida. Essa, aliás, é a razão da grita da mídia conservadora e dos defensores do rentismo, porque esta taxa de juros só é sustentável se a União obtiver robustos superávits primários, como aconteceu de 2003 a 2013.

Circula pelas redes sociais um gráfico em forma de pizza atribuído à Auditoria Cidadã da Divida (ACD) que mais confunde que explica. Essa "pizza" mostra a estrutura de gastos do Orçamento Geral da União e compara despropositadamente gastos com educação, saúde e investimentos, todos vinculados ao orçamento fiscal, com os gastos de amortizações e juros da dívida. Se tivesse, junto à mesma "pizza", algo que mostrasse a origem dos recursos do Orçamento Geral da União, veríamos que de 2003 a 2013 a maior parte dos recursos pagos na rubrica da dívida teriam vindo de captações de novos empréstimos com lançamento de novos títulos da dívida, restando uma parte menor paga com os superávits primários. Em 2014 e 2015, veríamos que os recursos captados com o lançamento de novos títulos da dívida superaram os valores pagos relativos à divida vincenda. A diferença é que de 2003 a 2013, o Brasil realizou superávits primários e, em 2014 e 2015, teve déficits cobertos com nova dívida.

Para os leigos em economia o tal gráfico passa a noção absurdamente errada de que, se não tivesse dívida, teríamos mais 45% do orçamento para gastar. No cenário de hoje, com déficit fiscal primário em 2014, 2015 e certamente em 2016, a decorrência de uma moratória ou suspensão de pagamentos da dívida seria a União ter que apertar mais ainda o orçamento por não ter como financiar o déficit. Paradoxalmente, significaria mais arrÔxo.



Dois apontamentos para uma política econômica de esquerda

Esclarecida a inviabilidade das soluções mitológicas como "suspenda-se o pagamento da dívida e a profecia Bíblica de que o mel jorrará para todos se cumprirá", é necessário pensar um programa de esquerda capaz de enfrentar a realidade.

O primeiro ponto obviamente será mudar o enfoque do enfrentamento da inflação. Este deverá passar pela desindexação de contratos, quebrando-se a reprogramação inercial da inflação passada para o futuro, preservando-se apenas a indexação do salário mínimo e da previdência, baixando a taxa de juros a patamares próximos à inflação, o que significa taxa real próxima a zero. Neste cenário torna-se sustentável ter déficits primários continuados (os EUA têm déficits primários ininterruptos desde 1960), aumentando significativamente a capacidade de gasto do estado. Trata-se aqui de fazer da dívida uma aliada do desenvolvimento.

O segundo ponto passa por uma reforma tributária efetiva que aumente a taxação do patrimônio e da renda, reduzindo os impostos indiretos que oneram o consumo e a produção. Aumentar a progressividade das alíquotas do Imposto de Renda, voltar a tributar distribuição de lucros, isento desde os anos 90, criar um imposto federal sobre heranças (a melhor e mais eficiente forma de tributar grandes fortunas).
 

Não pretendo nem tenho capacidade de esgotar este assunto, mas acho fundamental que a esquerda faça um debate sério sobre economia e aponte saídas reais fora da mitologia que com frequência a cerca - e que no máximo serve para fazer propaganda de má qualidade.


*Economista e dirigente nacional do PSOL​