Folha.com, 31/01/16
Quando a inveja do Ocidente vira ódio
Por SLAVOJ ZIZEK
tradução CLARA ALLAIN
tradução CLARA ALLAIN
Quem são os "oito odiosos" do filme de Quentin Tarantino?1 O grupo inteiro – brancos racistas e um soldado negro da União (na Guerra Civil americana), homens e mulheres, agentes da lei e criminosos –, todos os participantes, sem exceção, são igualmente perversos, brutais e vingativos.
O momento mais constrangedor do filme acontece quando o oficial negro (representado pelo magnífico Samuel L. Jackson) conta a um velho general confederado, em detalhes e com prazer evidente, como matou o filho racista dele, responsável pela morte de muitos negros: depois de forçá-lo a marchar nu sob vento gelado, Jackson promete ao sujeito branco morrendo de frio que receberá uma coberta se lhe propiciar sexo oral. Mas, depois que o sujeito o atende, Jackson descumpre sua promessa e o deixa morrer. Assim, não há mocinhos na luta contra o racismo – todos estão engajados na luta com brutalidade máxima.
A lição a tirar dos ataques sexuais recentes em Colônia não é estranhamente semelhante à lição do filme? Mesmo que (na maioria) os refugiados sejam de fato vítimas que fogem de países em escombros, isso não os impede de agir de modo desprezível. Tendemos a esquecer que não existe nada de redentor no sofrimento: ser uma vítima na posição mais baixa da escala social não converte você em alguma espécie de voz privilegiada da moralidade e da justiça.
Mas esse insight geral não basta – precisamos olhar mais de perto para a situação que deu origem ao incidente de Colônia. Em sua análise da situação global após os ataques em Paris, "Notre Mal Vient de Plus Loin" (nosso mal vem de mais longe, editado pela Fayard), Alain Badiou discerne três tipos predominantes de subjetividade no capitalismo global de hoje: o sujeito liberal-democrata ocidental "civilizado", de classe média; as pessoas de fora do Ocidente dominadas pelo "desejo do Ocidente", tentando a qualquer custo imitar o modo de vida dito "civilizado" das classes médias ocidentais; e os niilistas fascistas, aqueles cuja inveja do Ocidente se converte em ódio autodestrutivo mortal.
No breve ensaio, Badiou deixa claro que aquilo que a mídia descreve como "radicalização" de muçulmanos é fascistização pura e simples: "Esse fascismo é o anverso do desejo frustrado do Ocidente, organizado de maneira mais ou menos militar, seguindo o modelo flexível de uma gangue mafiosa e com colorizações ideológicas variáveis em que o lugar ocupado pela religião é puramente formal".
A ideologia da classe média ocidental possui duas características opostas: ela exibe arrogância e crença na superioridade de seus valores (direitos humanos e liberdades universais ameaçados pelos "outsiders" bárbaros), mas, ao mesmo tempo, é obcecada pelo medo de que a área sob seu domínio seja invadida por bilhões de pessoas que estão fora dela, que não contam no capitalismo global, pois nem produzem commodities nem as consomem; o medo de seus membros é passar a fazer parte da fileira de excluídos.
A expressão mais clara do "desejo do Ocidente" são os refugiados imigrantes: o desejo deles não é revolucionário – é o desejo de deixar seu hábitat devastado para trás e viver na terra prometida do Ocidente desenvolvido. (Os que ficam para trás tentam criar em seus países cópias miseráveis da prosperidade ocidental, como as partes "modernizadas" encontradas em toda metrópole do Terceiro Mundo, em Luanda, em Lagos, etc., com shopping centers, cafés que vendem cappuccinos etc.)
Como para a maioria dos candidatos esse desejo não pode ser satisfeito, uma das opções restantes é a reversão niilista: a frustração e a inveja se radicalizam, dando lugar a um ódio do Ocidente, assassino e autodestrutivo, e e as pessoas buscam a vingança violenta. Badiou vê essa violência como expressão pura da pulsão de morte, uma violência que só pode culminar em atos de (auto)destruição orgiástica, sem qualquer visão séria de uma sociedade alternativa.
Badiou tem razão ao enfatizar que não há potencial emancipador na violência fundamentalista; contudo, por mais anticapitalista que esta possa se dizer, ela é um fenômeno estritamente inerente ao universo capitalista global, seu "fantasma oculto", na definição do autor. A verdade básica do fascismo fundamentalista é a inveja; mesmo em seu ódio do Ocidente, o fundamentalismo tem raízes no desejo do Ocidente; estamos diante da reversão comum do desejo frustrado em agressividade, descrita pela psicanálise, e o islã apenas fornece a forma para embasar esse ódio (auto)destrutivo.
AMOR-PRÓPRIO
Esse potencial destrutivo da inveja é a base da conhecida distinção traçada por Rousseau em "Diálogos ou Rousseau Juiz de Jean-Jacques" entre o egotismo, "amour-de-soi", o amor de si mesmo (o amor por si próprio que é natural), e o "amour-propre", amor-próprio, a preferência pervertida por si mesmo em detrimento dos outros, em que a pessoa se concentra não tanto em alcançar uma meta, mas em destruir o obstáculo que se interpõe a ela:
"As paixões primitivas, todas as quais tendem diretamente para nossa felicidade e cujo princípio é apenas o amor de si mesmo, nos levam a lidar apenas com objetos que se relacionem com elas e são todas essencialmente amáveis e ternas; contudo, quando são desviadas de seus objetos por obstáculos, elas se ocupam mais com o obstáculo do qual querem se livrar do que com o objeto que procuram alcançar, mudando com isso sua natureza e tornando-se irascíveis e odiosas. É assim que o amor de si mesmo, um sentimento nobre e absoluto, converte-se em amor-próprio, ou seja, um sentimento relativo com o qual nos comparamos, um sentimento que exige preferências, cujo prazer é puramente negativo e que não procura encontrar satisfação em nosso próprio bem-estar, mas apenas no infortúnio de outros."
Assim, uma pessoa perversa não é um egotista, "que pensa apenas em seus próprios interesses". O verdadeiro egotista está ocupado demais cuidando do que o beneficia para ter tempo de fazer mal aos outros. O vício primário de uma pessoa perversa é preocupar-se mais com os outros que com ela mesma. Rousseau descreve um mecanismo libidinal preciso: a inversão que gera o deslocamento do investimento libidinal do objeto para o próprio obstáculo.
Isso pode muito bem ser aplicado à violência fundamentalista, independentemente de estarmos falando do atentado de Oklahoma City em 1995 ou do ataque ao World Trade Center em 2001. Em ambos os casos, trata-se de ódio puro e simples: destruir o obstáculo, o edifício federal de Oklahoma City ou as Torres Gêmeas, era o que realmente interessava, e não alcançar a meta nobre de uma sociedade verdadeiramente cristã ou muçulmana – veja-se o que diz Jean-Pierre Dupuy em "Petite Metaphysique des Tsunamis" (Seuil).
Essa fascistização pode exercer certa atração sobre a juventude imigrante frustrada que não consegue encontrar um lugar próprio nas sociedades ocidentais ou uma perspectiva com a qual se identificar. A fascistização oferece a esses jovens uma saída fácil para sua frustração: uma vida cheia de emoções e riscos disfarçados de dedicação religiosa sacrificial, somada à satisfação material (sexo, carros, armas...) – não esqueçamos que o Estado Islâmico também é um grande empreendimento comercial mafioso, que vende petróleo, estátuas antigas, algodão, armas e mulheres escravas – "um misto de propostas heroicas mortais e, simultaneamente, de corrupção ocidental por produtos", como escreve Badiou em seu livro.
É desnecessário dizer que essa violência fascista-fundamentalista é apenas um dos modos de violência pertinentes ao capitalismo global e que devemos ter em mente não apenas as formas de violência fundamentalista nos próprios países ocidentais (populismo anti-imigrante, etc.), mas, sobretudo, a violência sistemática do próprio capitalismo, desde as catastróficas consequências da economia global até a longa história das intervenções militares.
IMPOTÊNCIA
O fascismo islâmico é um fenômeno profundamente reativo no sentido nietzschiano do termo, uma expressão de impotência convertida em raiva autodestrutiva. Assim, ao mesmo tempo em que concordo com o sentido geral da análise de Badiou, considero problemáticas três de suas afirmações.
Em primeiro lugar, a redução da religião, forma religiosa de niilismo fascista, a elemento secundário superficial: "A religião é apenas uma vestimenta; ela não é de maneira alguma o xis da questão; é apenas uma forma de subjetivação, não o conteúdo real da coisa", escreve Badiou.
Ele está totalmente certo quando diz que a procura pelas raízes do terrorismo muçulmano de hoje em textos religiosos antigos (a história de "já estava tudo no Alcorão") é enganosa: devemos, em vez disso, nos concentrar no capitalismo global de hoje e conceber o fascismo islâmico como um dos modos de reação à atração desse capitalismo, através da inversão da inveja em ódio.
Mas, se vista criticamente, toda religião não é uma espécie de vestimenta, e não o cerne da questão? A religião não é, em seu próprio cerne, uma "forma de subjetivação" do dilema das pessoas? E isso não equivale a dizer que uma vestimenta é, em certo sentido, "o xis da questão", o modo como os indivíduos vivem sua situação? Não há como recuar um passo e, de alguma maneira, ver as coisas de fora, como elas "realmente são".
Daí advém a identificação, demasiado apressada, de refugiados e migrantes como um "proletariado nômade", uma "vanguarda virtual da gigantesca massa de pessoas cuja existência não é levada em conta no mundo do modo como ele é". Não são os migrantes (em sua maioria, pelo menos), os mais fortemente possuídos pelo "desejo do Ocidente", aqueles que se rendem mais profundamente ao fascínio da ideologia hegemônica?
Finalmente, a exigência ingênua de que devemos "ir ver quem é esse outro do qual se fala, quem são realmente essas pessoas". "Precisamos reunir seus pensamentos, suas ideias, sua visão das coisas e inscrevê-los, e a nós mesmos, em uma visão estratégica do destino da humanidade", defende Badiou.
OUTRO
Falar é fácil: esse outro é, como descreve o próprio Badiou, totalmente desorientado, possuído pelas atitudes opostas da inveja e do ódio, ódio esse que em última análise expressa seu próprio desejo reprimido pelo Ocidente (razão pela qual o ódio se transforma em autodestruição).
Faz parte de uma metafísica humana ingênua pressupor que exista algum núcleo humano "mais profundo" de solidariedade global por baixo desse ciclo vicioso de desejo, inveja e ódio. Não faltam relatos mostrando que muitos sírios constituem uma exceção entre os refugiados: nos campos de transição, eles limpam a sujeira que fazem, comportam-se de modo gentil e respeitoso; muitos deles têm alto nível de instrução e falam inglês, com frequência até pagam pelo que consomem – em suma, são como nós, como nossas classes médias educadas e civilizadas.
(E eles chegam a tentar criar solidariedade com os europeus nativos: na Eslovênia, a mídia divulgou casos em que imigrantes sírios de classe média entabularam conversas com eslovenos que os estavam ajudando, precavendo-os contra a maioria dos outros refugiados, que descreveram como brutais e primitivos.)
É comum e bem-visto dizer que os refugiados violentos representam uma minoria e que a maioria deles tem respeito profundo pelas mulheres. Embora isso seja verdade, é claro, devemos, mesmo assim, lançar um olhar mais atento sobre a estrutura desse respeito: que tipo de mulher é "respeitada" e o que se espera dela com esse respeito? E se a mulher for "respeitada" na medida em que (e apenas na medida em que) se enquadrar no ideal da criada dócil que cumpre suas tarefas fielmente, de modo que seu homem possa explodir em fúria se ela sair de seu controle e agir com plena autonomia?
Nossa mídia normalmente opõe refugiados "civilizados" de classe média a refugiados "bárbaros" de classe mais baixa, que roubam, assediam nossos cidadãos, comportam-se violentamente com mulheres, defecam em público...
Em vez de rejeitar isso tudo como propaganda racista, devemos munir-nos da coragem para discernir nisso um instante de verdade: a brutalidade, chegando à crueldade total em relação aos fracos, aos animais, às mulheres etc., é uma característica tradicional das "classes mais baixas"; uma de suas estratégias de resistência aos que estão no poder sempre foi uma manifestação apavorante de brutalidade, que visa perturbar o senso de decência da classe média.
CARNAVAL
Sentimos a tentação de interpretar assim também aquilo que aconteceu em Colônia na noite do Réveillon – como um carnaval obsceno da classe mais baixa, por exemplo, na descrição do jornal britânico "The Guardian":
"A polícia alemã investiga denúncias de que dezenas de mulheres teriam sido assaltadas e sexualmente agredidas no centro de Colônia durante os festejos do Ano-Novo, em algo que um ministro descreveu como 'uma dimensão de crime inteiramente nova'. De acordo com a polícia, os responsáveis pelos ataques sexuais e numerosos roubos teriam origem árabe ou norte-africana. Mais de cem denúncias foram feitas à polícia, um terço das quais ligadas a agressões sexuais. O centro da cidade se converteu em uma 'zona sem lei': entre 500 e 1.000 homens descritos como bêbados e agressivos teriam sido responsáveis pelos ataques a pessoas que festejavam o Ano-Novo no centro da cidade alemã ocidental. Mulheres relataram terem sido cercadas por grupos de homens que as molestaram e assaltaram. Algumas pessoas atiraram fogos de artifício no meio da multidão, agravando o caos. Uma das vítimas foi violentada. Uma policial voluntária está entre as mulheres que teriam sido sexualmente agredidas."
Como se poderia prever, o incidente está crescendo: mais de 500 mulheres já fizeram denúncias, com acontecimentos semelhantes em outras cidades alemãs e na Suécia; há indicações de que os ataques teriam sido coordenados previamente, e "defensores do Ocidente civilizado" de direita, contra os imigrantes bárbaros, estão revidando com ataques a imigrantes, de modo que uma espiral de violência ameaça ser desencadeada.
Como era previsível, a esquerda liberal politicamente correta mobilizou seus recursos para minimizar o incidente, do mesmo modo como fez no caso dos abusos sexuais contra crianças em Rotherham, no Reino Unido, um ano atrás. Mas há mais, muito mais: o carnaval de Colônia deveria ser inserido na longa sequência cujo primeiro caso registrado data de Paris na década de 1730, o chamado Grande Massacre dos Gatos.
Na ocasião, um grupo de aprendizes de gráficos torturou e matou ritualmente todos os gatos que conseguiu encontrar, incluindo o gato de estimação da mulher de seu mestre. Os aprendizes eram literalmente tratados pior do que os gatos por ela adorados, especialmente "La Grise", a gatinha cinzenta favorita dela, como aponta Robert Darnton em "O Grande Massacre dos Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa", cuja descrição seguimos aqui.
Certa noite os garotos resolveram corrigir essa situação injusta: jogaram sacos cheios de gatos semimortos no pátio e então os penduraram em forcas improvisadas. Os rapazes deliravam de alegria, de desordem, gargalhando. Mas por que a matança lhes parecia tão engraçada?
No Carnaval as pessoas comuns suspendiam as regras normais de comportamento e faziam uma inversão cerimonial da ordem social, colocavam-na de ponta-cabeça, numa procissão caótica. O Carnaval era o momento da hilaridade, da sexualidade e da juventude terem as rédeas soltas, e o povo frequentemente incorporava a tortura de gatos em sua diversão brutal.
Quando zombavam de um marido traído ou de alguma outra vítima, os jovens passavam um gato de mão em mão, arrancando seus pelos para fazê-lo uivar. Chamavam a isso "faire le chat". Os alemães o chamavam de "Katzenmusik", música dos gatos, termo que parece derivado dos uivos dos animais torturados.
A tortura de animais, especialmente gatos, foi uma diversão popular ao longo do início da era moderna na Europa. O poder dos felinos se concentrava no aspecto mais íntimo da vida doméstica: o sexo. "Le chat", "la chatte", "le minet" significam na gíria francesa a mesma coisa que "pussy" em inglês –a vulva.2 Essas palavras são empregadas como termos chulos há séculos.
Poderíamos, então, conceber o incidente de Colônia como uma versão contemporânea de "faire le chat"? Como uma revolta carnavalesca dos injustiçados? Não foi o simples desejo de satisfação de homens jovens, privados de sexo – isso poderia ser conseguido de maneira mais discreta, oculta –, foi antes de mais nada uma maneira muito pública de suscitar medo e humilhação, de expor as "pererecas" das alemãs privilegiadas a uma situação de impotência dolorosa. É claro que não existe nada de redentor ou emancipador, nada de efetivamente liberador em tal carnaval – mas é assim que funcionam os carnavais reais.
É por isso que esforços ingênuos para transmitir informações aos imigrantes – explicando a eles que nossos costumes sexuais são diferentes, que quando uma mulher anda de minissaia em público e sorri, isso não significa um convite sexual etc. – são exemplos de estupidez assombrosa. Eles sabem disso. Eles têm plena consciência de que o que estão fazendo destoa de nossa cultura predominante, mas o fazem precisamente para ferir nossas sensibilidades.
O que é preciso é mudar essa postura de inveja e agressividade vingativa, e não ensinar aquilo que eles já sabem muito bem.
A difícil lição a tirar disso tudo é que não basta simplesmente dar voz aos injustiçados do modo como eles estão: para concretizar a emancipação real, eles precisam ser educados – por outros e por eles próprios – para a liberdade.
Notas da tradutora:
1. Embora o filme tenha sido lançado como "Os Oito Odiados" no Brasil, a tradução mais próxima do original seria "os oito odiosos".2. Em português, um termo assimilado seria "perereca".
SLAVOJ ZIZEK, 66, filósofo e psicanalista esloveno autor de, entre outros, "O Absoluto Frágil" (Boitempo).
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