Folha.com, 01/01/2016
Sem perspectiva
Por Vladimir Safatle
Há uma conhecida história que teria envolvido Angela Davis e Theodor Adorno nos anos 1960. Em um dos seminários do frankfurtiano, a ativista e filósofa norte-americana teria iniciado uma discussão ao insistir na necessidade dos intelectuais "assumirem a perspectiva dos oprimidos", agindo principalmente a fim de garantir espaço para que oprimidos pudessem falar, reconhecendo a especificidade de seu lugar de fala.
Angela Davis insistia, com razão, na necessidade urgente de quebrar práticas de exclusão de grupos, até então, sem visibilidade. Assumir a perspectiva dos oprimidos não era falar em seus nomes, mas principalmente lutar para que suas vozes portadoras de sofrimento fossem ouvidas. No que Adorno teria dito, de maneira inesperada, que a verdadeira crítica devia mirar ainda mais fundo e se engajar, na verdade, em dissolver a pretensa evidência da noção mesma de perspectiva, assim como a estabilidade da ideia de "lugar".
Ou seja, tratava-se de afirmar que a própria noção de perspectiva e de lugar já era uma forma, talvez a mais violenta, de opressão.
Esta resposta tinha um alvo muito claro. Ela procurava insistir que não haverá transformação real enquanto aceitarmos os pressupostos e as formas de pensamento decididas de antemão como evidências incontestáveis.
Neste sentido, era o caso de lembrar como parecia cada vez mais natural aceitar que "só há perspectivas", que "cada um tem seu lugar", que "não se pode saltar sobre si mesmo e escapar da relatividade de sua própria posição".
Pretensas evidências desta natureza são, na verdade, o esteio de nossas sociedades neoliberais. Sociedades que procuram nos acomodar à ideia de que só há indivíduos envoltos em suas perspectivas, lugares, posições e nada mais. Afirmar que o problema é a falta de uma perspectiva silenciada pela opressão é fazer desta gramática dos indivíduos a condição para toda política. É reiterar a mesma gramática que já organiza nossos conflitos sociais, evitando assim se perguntar se o maior de todos os problemas não estaria exatamente na imposição de uma gramática da enunciação que nunca muda, que só se aprofunda.
Neste sentido, de nada adiantaria passar da noção de indivíduo à noção de grupo ou mesmo de classe. Quem diz grupo ou classe diz, neste contexto, organização coletiva a partir princípios substancialmente partilhados de identidade. Assim é quando nacionalidades, religião, etnia, gênero, entre tantos outros, funcionam como elemento substancial de identificação. No entanto, há de se insistir que não é a atomização social em indivíduos o verdadeiro problema de nossa vida social, mas a compreensão de toda coletividade como uma "identidade coletiva" dotada, entre outros, de uma perspectiva à qual suas unidades devem se adequar.
Afirmar que a função maior do pensamento crítico é dissolver a noção mesma de perspectiva, como um dia disse Adorno, significa assumir a que verdadeira crítica é uma fala sem lugar e sem posição, ou ainda, uma fala que destrói seu próprio lugar e sua própria posição.
Aqueles que ainda não tiveram voz continuarão sem voz se acreditarem que precisam defender o "seu" lugar, este lugar que é sua propriedade, esta perspectiva que lhe é "própria". Acreditar que falamos algo novo, que abrimos um espaço crítico quando organizamos nossa fala a partir de ideias de propriedade, de próprio, de identidade é simplesmente reiterar o que já está dado, é criar nada. Abolir a propriedade é algo mais complicado do que inicialmente parece.
Isto pode soar aberrante para alguns ou, ainda, pode parecer apenas uma maneira mais poética de assumir "ideias arcaicas" como a noção "totalitária" de consciência universal e totalizante.
Eu diria que uma das mais astutas criações do neoliberalismo é nos fazer crer que sair do espaço dos indivíduos e suas perspectivas proprietárias é deixar-se seduzir por cantos de sereias filosóficas totalitárias. Pois trata-se de nos impedir de se perguntar se a crítica não opera através de algo como "uma voz de ninguém", como disse uma vez Lacan.
Voz que todos podem assumir mesmo que ninguém possa se apropriar pois voz que me despossui de meus predicados e atributos quando falo. Voz que produz uma implicação genérica e que abre a possibilidade de uma noção de comum que não é a partilha de uma substância, mas a crença na força de criação de uma despossessão generalizada.
Angela Davis insistia, com razão, na necessidade urgente de quebrar práticas de exclusão de grupos, até então, sem visibilidade. Assumir a perspectiva dos oprimidos não era falar em seus nomes, mas principalmente lutar para que suas vozes portadoras de sofrimento fossem ouvidas. No que Adorno teria dito, de maneira inesperada, que a verdadeira crítica devia mirar ainda mais fundo e se engajar, na verdade, em dissolver a pretensa evidência da noção mesma de perspectiva, assim como a estabilidade da ideia de "lugar".
Ou seja, tratava-se de afirmar que a própria noção de perspectiva e de lugar já era uma forma, talvez a mais violenta, de opressão.
Esta resposta tinha um alvo muito claro. Ela procurava insistir que não haverá transformação real enquanto aceitarmos os pressupostos e as formas de pensamento decididas de antemão como evidências incontestáveis.
Neste sentido, era o caso de lembrar como parecia cada vez mais natural aceitar que "só há perspectivas", que "cada um tem seu lugar", que "não se pode saltar sobre si mesmo e escapar da relatividade de sua própria posição".
Pretensas evidências desta natureza são, na verdade, o esteio de nossas sociedades neoliberais. Sociedades que procuram nos acomodar à ideia de que só há indivíduos envoltos em suas perspectivas, lugares, posições e nada mais. Afirmar que o problema é a falta de uma perspectiva silenciada pela opressão é fazer desta gramática dos indivíduos a condição para toda política. É reiterar a mesma gramática que já organiza nossos conflitos sociais, evitando assim se perguntar se o maior de todos os problemas não estaria exatamente na imposição de uma gramática da enunciação que nunca muda, que só se aprofunda.
Neste sentido, de nada adiantaria passar da noção de indivíduo à noção de grupo ou mesmo de classe. Quem diz grupo ou classe diz, neste contexto, organização coletiva a partir princípios substancialmente partilhados de identidade. Assim é quando nacionalidades, religião, etnia, gênero, entre tantos outros, funcionam como elemento substancial de identificação. No entanto, há de se insistir que não é a atomização social em indivíduos o verdadeiro problema de nossa vida social, mas a compreensão de toda coletividade como uma "identidade coletiva" dotada, entre outros, de uma perspectiva à qual suas unidades devem se adequar.
Afirmar que a função maior do pensamento crítico é dissolver a noção mesma de perspectiva, como um dia disse Adorno, significa assumir a que verdadeira crítica é uma fala sem lugar e sem posição, ou ainda, uma fala que destrói seu próprio lugar e sua própria posição.
Aqueles que ainda não tiveram voz continuarão sem voz se acreditarem que precisam defender o "seu" lugar, este lugar que é sua propriedade, esta perspectiva que lhe é "própria". Acreditar que falamos algo novo, que abrimos um espaço crítico quando organizamos nossa fala a partir de ideias de propriedade, de próprio, de identidade é simplesmente reiterar o que já está dado, é criar nada. Abolir a propriedade é algo mais complicado do que inicialmente parece.
Isto pode soar aberrante para alguns ou, ainda, pode parecer apenas uma maneira mais poética de assumir "ideias arcaicas" como a noção "totalitária" de consciência universal e totalizante.
Eu diria que uma das mais astutas criações do neoliberalismo é nos fazer crer que sair do espaço dos indivíduos e suas perspectivas proprietárias é deixar-se seduzir por cantos de sereias filosóficas totalitárias. Pois trata-se de nos impedir de se perguntar se a crítica não opera através de algo como "uma voz de ninguém", como disse uma vez Lacan.
Voz que todos podem assumir mesmo que ninguém possa se apropriar pois voz que me despossui de meus predicados e atributos quando falo. Voz que produz uma implicação genérica e que abre a possibilidade de uma noção de comum que não é a partilha de uma substância, mas a crença na força de criação de uma despossessão generalizada.
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