Folha.com,
30/01/16
Livro conta história do primeiro milionário negro de Wall Street
DE SÃO PAULO
Armada de paus, pedras, cassetetes, tijolos, a multidão invadiu o Orfanato para Crianças Negras. Seus gritos de ódio vomitavam sangue: "Morte aos macacos!"
Antes da invasão do prédio na Quinta Avenida de Nova York, entre as ruas 43 e 44, os funcionários conseguiram tirar do asilo as 233 crianças que eram atendidas lá. Furiosa por não encontrar suas vítimas, a massa tacou fogo no edifício, que queimou inteiro.
Era o primeiro dia do Motim do Recrutamento (Draft Riots), que começou como revolta contra a convocação arbitrária de soldados para combater no Exército nortista, na Guerra Civil norte-americana, e se transformou em violência racial pura e simples.
Na terça-feira, 14 de julho de 1863, a barbárie continuava. Hordas de brancos armados perseguiam, espancavam e matavam os negros que viam em seu caminho. Alguns grupos de desordeiros tinham destino certo.
"Ses-sen-ta-e-oi-to! Ses-sen-ta-e-oi-to!", cantava ameaçadoramente uma turma que seguia pela rua 29. Protegidos por trás de suas janelas e cortinas, moradores brancos das elegantes casas da rua chique, observavam os invasores.
Por prosaico que pareça, quando a massa embrutecida chegou ao número 68 da rua 29 Leste, um dos atacantes teve a pachorra de tocar a campainha do sobrado.
Frente ao silêncio total, portas e janelas foram quebradas e derrubadas, e os atacantes chegaram derrubando móveis. Foram confrontados por uma elegante mulher branca, que teve calma para perguntar o que eles queriam.
"Matar o senhor Hamilton!", foi a resposta que Eliza Jane Hamilton
recebeu, segundo ela mais tarde contou às autoridades policiais. Por
certo, não foram essas as palavras exatas que ouviu. Talvez tivessem
sido algo como "acabar com aquele negão" ou "enforcar o crioulo
Hamilton".
Não conseguiram. Jeremiah G. Hamilton não só escapou do massacre - ao final dos quatro dias de tumulto em 1863, 119 pessoas tinham sido assassinadas, a maioria delas negros - como seguiu levando uma vida próspera e controversa.
Quando morreu, no dia 19 de maio de 1875, aos 67 anos, 11 meses e 22 dias, dezenas de jornais norte-americanos publicaram obituários do milionário negro de Nova York. Com uma fortuna estimada em mais de US$ 2 milhões (mais de US$ 250 milhões nos dias de hoje), era o mais rico homem de cor dos Estados Unidos.
Sua vida foi um turbilhão. Ao que se sabe, começou a carreira em 1828, traficando dinheiro falso no Haiti - foi condenado à morte pelas autoridades locais, que colocaram sua cabeça a prêmio.
Em 1833, porém, desembarcou em Nova York como homem de negócios. Na metrópole, fez de tudo: emprestou dinheiro a juros, atuou na área de seguros, negociou navios, comprou terras, arriscou-se na imprensa e se tornou o primeiro negro a atuar em Wall Street, o centro nervoso do mundo financeiro norte-americano.
Por sua cor e por seus métodos comerciais pouco ortodoxos - similares aos de seus pares, a bem da verdade –, foi alvo de ódio, desprezo e discriminação, além de admiração, por certo. Recebeu o apelido de 'Príncipe da Escuridão' - havia quem, ainda mais ofensivamente, o chamasse apenas de Crioulo Hamilton.
Sua curiosa e nebulosa trajetória está contada em 'Prince of Darkness - The Untold Story of Jeremiah Hamilton, Wall Street`s First Black Millionaire', obra do historiador britânico Shane White.
Talvez exatamente por ser negro, Hamilton não teve biógrafos contemporâneos, como outros magnatas da época - Cornelius Vanderbilt, por exemplo, com quem se enfrentou em momentoso processo nos tribunais nova-iorquinos.
Para contar a trajetória de seu personagem, White se baseou em reportagens e registros de tribunais - conseguiu levantar mais de 50 processos em que Hamilton era acusador ou acusado, além de outros em que apareceu como testemunha.
Recheia o relato com crônicas da época. Leva o leitor, por exemplo, a conhecer o mundo da imprensa de Nova York na primeira metade do século 19. Conta como surgiu a venda direta de jornal nas ruas da cidade, em 1833, e apresenta o primeiro jornaleiro de que se tem notícia, Bernard Flaherty, que tinha dez anos na época e vendia o recém-nascido "New York Sun" ao convidativo preço de um centavo.
Discute as complicações das finanças num período em que não havia nos Estados Unidos uma moeda única. E traça um quadro vivo da explosão da primeira bolha imobiliária nos EUA, que levou o país à sua primeira Grande Depressão, o Pânico de 1837.
Como pano de fundo, estão os horrores do racismo. Apesar de Nova York ter banido definitivamente a escravidão em 1827, a segregação prosseguiu.
Negros não podiam, por exemplo, usar transporte público com brancos. Tinham direito ao voto, mas as exigências para o registro eram tamanhas que isso se tornava praticamente impossível - dos 12.499 negros que moravam no Condado de Nova York em 1826, apenas 16 atendiam aos requisitos para se qualificar para votar.
Havia negros empresários, e alguns até fizeram fortuna. Mas deviam "conhecer o seu lugar", atuar na própria comunidade ou, no máximo, prestar serviços ao mundo branco - caso do famoso dono de restaurante Thomas Downing.
Jeremiah Hamilton escolheu subverter essa ordem. Como um furacão, invadiu um mundo de brancos, em uma área até então fechada aos homens de cor. E venceu.
Prince of Darkness
AUTOR Shane White
EDITORA St. Martin's Press
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