Folha.com, 13/07/17
Juízes de verdade não são rigorosos
nem complacentes: são equilibrados
Por Janio de Freitas
No mesmo dia e com diferença de poucas horas, o comentário suficiente sobre a condenação teve a originalidade, por certo involuntária, de antecipar-se à divulgação da sentença por Sergio Moro. E nem sequer lhe fez menção direta.
Procurador federal como os da Lava Jato, mas lotado em Brasília, Ivan Cláudio Marx escreveu em parecer referente ao ex-senador e delator Delcídio do Amaral: "Não se pode olvidar o interesse do delator em encontrar fatos que lhe permitissem delatar terceiros, e dentre esses especialmente o ex-presidente Lula, como forma de aumentar seu poder de barganha ante a Procuradoria-Geral da República no seu acordo de delação".
Não precisaria ser mais explícito na indicação de que acusar Lula tem proporcionado reconhecimento especial na Lava Jato, traduzido em maior "poder de barganha" para alcançar maiores "prêmios" –saída da cadeia, penas quase fictícias, guarda de dinheiro e de bens adquiridos em crimes (com Joesley Batista, a premiação progrediu para imunidade contra processos judiciais, o que nem presidente da República recebeu da Constituição).
O procurador quis, porém, precisar sua constatação: "Não se está aqui ressaltando a responsabilidade ou não do ex-presidente Lula naquele processo [alegada tentativa de obstrução da Justiça], mas apenas demonstrando o quanto a citação do seu nome, ainda que desprovida de provas em determinados casos, pode ter importado para o fechamento do acordo de Delcídio do Amaral, inclusive no que se refere à amplitude dos benefícios recebidos".
O objetivo e a valorização de acusações a Lula, "ainda que desprovidas de provas", não podiam ser gratuitos, nem precisam de mais considerações agora. Basta, a respeito, observar que determinadas pessoas e entidades foram alvos por iniciativa da Lava Jato, desde o começo proveniente de uma investigação que deveria ser, e nunca foi, sobre rede de doleiros. Só bem mais tarde, outras pessoas e entidades foram incluídas nos alvos da Lava Jato, mas por força de circunstâncias delatoras e ocasionais.
Na eventualidade de recurso contra a condenação, a defesa de Lula precisa dirigir-se ao tribunal da 4ª Região, em Porto Alegre. Ali já houve reconsiderações do decidido por Moro, como a recente absolvição do petista João Vaccari em um dos seus processos. Mas a maioria dos recursos é derrotada, tendo os julgadores da oitava turma o conceito de "juízes duros, muito rigorosos". Já por ser no Rio Grande do Sul, como seria nos outros dois Estados sulinos, muitas defesas costumam temer propensões conservadoras, ou à direita, no trato dos recursos.
Juízes tidos como rigorosos têm alto conceito na imprensa, e daí em geral. São péssimos. Assim como seus opostos. Juízes de verdade não são rigorosos nem complacentes: são equilibrados – uma raridade, talvez. Como sabem Moro, por certa ordem de motivos, e Ivan Cláudio Marx, por outra.
http://www.jb.com.br/sociedade -aberta/noticias/2017/07/15/ condenacao-de-lula-sem- fundamento-legal/
Jornal do Brasil, 15/07/17
Condenação de Lula: sem fundamento legal
Por
Dalmo de Abreu Dallari*
Numa decisão longuíssima, absolutamente desnecessária quando a acusação especifica do crime cometido pelo acusado, o Juiz Moro dá muitas voltas, citando fatos e desenvolvendo argumentos que não contêm qualquer comprovação da prática de um crime que teria sido cometido por Lula. E sem qualquer base para uma fundamentação legal chega à conclusão condenando o acusado. Evidentemente, a base para a condenação não foi jurídica e um conjunto de circunstâncias leva inevitavelmente à conclusão de que a motivação foi política, o que configura patente inconstitucionalidade.
Quanto ao enquadramento do acusado na prática de um crime, o que existe é a afirmação feita por um denunciante de que Lula, quando no exercício da Presidência da República, teria recebido como propina um apartamento de luxo, um triplex, no Guarujá, que lhe teria sido dado pela grande empresa de engenharia OAS em troca de privilégio ilegal para contratação com a Petrobras. Se realmente isso tivesse ocorrido haveria um fundamento jurídico para o enquadramento de Lula como autor de um crime e para sua consequente condenação juridicamente correta. Ocorre, entretanto, que nos registros públicos competentes não consta que Lula tenha sido ou seja proprietário do mencionado apartamento, nem foi exibido qualquer documento em que ele figure como tal, ou mesmo como compromissário comprador. Obviamente, o ato indicado como fundamento para a incriminação e condenação de Lula simplesmente não existe e nunca existiu. Assim, pois, sua condenação foi baseada num falso fundamento, sendo, portanto, ilegal.
Da decisão condenatória cabe recurso para o Tribunal Regional Federal da 4a.Região, sediado em Porto Alegre, que é o Tribunal competente. Como foi informado pelo jornal « O Estado de S. Paulo », aquele Tribunal já decidiu dando provimento a 38% (trinta e oito por cento) dos recursos interpostos contra decisões do Juiz Moro. Assim, pois, existe grande possibilidade de que a condenação de Lula seja anulada por aquele Tribunal. Aliás, o elevado percentual de acolhimento dos recursos permite concluir que não é raro que aquele Juiz profira decisões contrariando as provas dos autos, ou seja, sem fundamento legal.
O dado fundamental é que a condenação de Lula pelo Juiz Sérgio Moro não teve fundamentação jurídica, restando, então, como justificativa, a motivação política. E aqui vem muito a propósito lembrar que a Constituição brasileira, no artigo 95, parágrafo único, estabelece, textualmente, que aos juízes é vedado : « III. Dedicar-se à atividade político-partidária ». Evidentemente, essa atividade pode ser exercida, e estará sendo exercida, quando alguém praticar atos tendo por motivação um objetivo político, seja o favorecimento de um candidato ou de uma corrente política, seja a criação de obstáculos para integrantes de uma orientação política contrária às preferências do Juiz.
Ora, proferindo uma decisão desprovida de fundamento jurídico, visando criar obstáculos para um político de destaque oposto às suas convicções e aos candidatos de sua preferência, o Juiz está participando de atividade político-partidária. Foi precisamente o que fez o Juiz Sérgio Moro, que, além de proferir sentença desprovida de fundamento jurídico, ofendeu disposição expressa da Constituição.
Por tudo isso, adotando fundamentação estritamente jurídica, os defensores do acusado Lula devem recorrer para o Tribunal superior, existindo grande possibilidade de que seja dado provimento ao recurso anulando-se a decisão condenatória.
* Jurista
Conversa Afiada, 15/07/17
Quid iam agunt pueri? Por que agiram assim, meninos?
Por Eugênio José
Guilherme de Aragão
É de obscura proveniência medieval o provérbio
"sunt pueri pueri – pueri
puerilia
tractant". A aparente tautologia poderia ser
traduzida por "sois meninos, seus
meninos! e meninos fazem meninices!".
Outra frase, esta de Virgílio, que, neste dramático
momento nacional me vem à mente é "quid
legitis flores et humi nascentia fraga, frigidus, O puer fugite hinc, latet
anguis in herba" (Éclogas III 93), com o sentido de - fujam, meninos pastores que colhem flores e
morangos ao solo, (pois) a serpente se esconde debaixo da relva.
Ao tempo em que Moro se festeja com falsa
modéstia em sua mais que previsível sentença condenatória contra Lula,
propaga-se que os norte-americanos
realizam manobras militares na Amazônia com os exércitos do Brasil, da Colômbia
e do Peru, a tríplice aliança
subcontinental da reação ao progresso, à altivez e à independência dos povos
latino-americanos.
Moro, o embevecido juiz que gasta quase uma centena de páginas na sentença para se justificar e
atacar a defesa que legitimamente apontou para sua suspeição ao longo de todo o
processo, se comporta como o menino com suas meninices. E a serpente que o
colocou lá onde está nos vigia para dar o bote final. No rastro dessa toada, já destruiu estratégicos ativos nacionais,
como a indústria da construção civil e o setor pecuário. Tudo em nome de um
fetichista combate seletivo à
corrupção que virou fixação coletiva.
Não fosse tão trágica o momento que o Brasil do
golpe vive, a sentença de Moro seria uma
piada, de tão tosca. Mal instaurada a instância, ninguém tinha dúvida que o
brioso magistrado pretendia construir seu currículo com a condenação do
ex-presidente, ao passo que socializava abertamente com a oposição mais feroz
aos governos do PT das últimas duas décadas. A foto do juiz em bem-humorada confraternização com Aécio Neves, às costas de Temer,
é muito eloquente. Está ali, Moro, com toda a simpatia que contrasta com a
agressividade no trato coma defesa de Lula. Um juiz no speak easy com
um político de quinta categoria, acusado, com indícios mui robustos, de desvio
de recursos públicos, de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização
criminosa. O interlocutor risonho não é ninguém menos do que o derrotado
candidato a presidente da república, que, por não assimilar sua derrota, jogou
a democracia brasileira na sua pior crise desde a reinstalação do governo civil
em 1985. Mas Moro mostra com suas
gargalhadas que aprova integralmente o golpe dado pelas instituições deformadas
do país. É visível sua ternura para com aquele que foi o
estopim da derrocada dos governos populares de que Lula foi seu maior
protagonista.
À sentença. Li e reli relatório e qual não foi
minha surpresa ao não detectar em nenhum de seus parágrafos enumerados com
meticulosidade burocrática qualquer referência às testemunhas da defesa.
Já a
indicação dos testemunhos de acusação mereceu cuidadosa indexação.
Vou para a fundamentação. Páginas mais
páginas de autodefesa do brioso juiz de piso. Ao réu, palavras de
ressentimento por ter exercido em toda extensão possível seu direito de defesa.
Digo "possível" porque os defensores tiveram que fazer uma dantesca
viagem ao inferno para garantir a ampla defesa. O juiz tentou negociar a
diminuição de suas testemunhas em troca do direito processual a prazos de
manifestação. Disse que ouvir as testemunhas arroladas em número menor até do
que permitido pela lei era uma manobra protelatória. Na única oportunidade em
que esteve frente à frente com Lula, o corajoso magistrado fez trancar toda a
redondeza da sede da justiça federal com uso de desproporcional aparato
policial. E, quando o réu fazia uso da
palavra em sua autodefesa, Moro foi o interrompendo, mostrando impaciência e
até profunda antipatia por aquele que foi o maior estadista do Brasil no
período republicano, comparável só mesmo com personagens do porte de Getúlio Vargas.
Moro, o pequeno burocrata judicial, se pretendia,
porém, maior. Violando a regra do
procedimento acusatório, preferiu fazer perguntas ao réu gigante, antes do
representante do Ministério Público, que permaneceu calado, cúmplice da farsa
que ali se encenava. Aliás, o representante era um backbencher da
Lava-Jato, já que o palestrante pio Dallagnol preferiu não dar as caras, certamente
com medo de ser destruído no duelo retórico com Lula.
As perguntas de Moro versaram sobre o sabor do pomo
proibido degustado por Adão e Eva no Paraíso. Interpelado pela defesa, insistia
na relevância do aspecto "circunstancial" do pecado original. Via-se
como o próprio arcanjo que expulsava o casalzinho desnudo do Éden, com sua
espada flamejante. Foram tantas
perguntas fora do lugar - obscenas no sentido próprio - que já indicavam a
intenção do julgador de condenar o réu por protagonizar um enredo midiatizado –
o sempre lembrado “conjunto da obra” – sem qualquer objetividade e base probatória.
O tal triplex do Guarujá, verdadeiro motivo da contenda, era o que menos vinha
ao caso.
Moro nunca escondeu
sua profunda aversão a Lula. Tornou criminosamente pública
gravação de conversa telefônica do réu com a Presidenta Dilma Rousseff,
interceptada ilicitamente. Fê-lo somente com intuito de destruir reputações e
interferir no processo político que inaugurava o golpe parlamentar liderado
pelo hoje condenado e encarcerado Eduardo Cunha. Este, em incipiente delação
recente, parece querer informar sobre toda a trama do impedimento da chefe de
estado, que contou com inegável apoio do brioso juiz.
Este é o Moro que condena Lula. O festejado Moro,
que, a despeito de ter logrado
exclusividade para o trato com os processos da Lava-Jato, supostamente porque lhe
faltava tempo para lidar com outras causas da competência legal de sua vara,
encontra ócio suficiente para rodar o mundo com digressões públicas sobre os
feitos sob sua responsabilidade.
Mas, voltemos à sentença. Mesmo com esforçado enchimento de linguiça, o juiz de piso
não consegue disfarçar a falta de prova para demonstrar o que interessa: ser ou
não ser Lula proprietário, oculto dono ou promitente comprador do triplex. Só o coitado do Léo Pinheiro, em sua delação sem
qualquer valor de evidência, foi, depois de meses no cárcere, obrigado a
apontar para Lula como o beneficiário de um suposto esquema de suborno, não sem
antes avisar que não tinha provas da acusação, porque o réu lhe teria feito
destrui-las. Ninguém mais confirma essa
tese esdrúxula. O fato é que o tal imóvel nunca pertenceu a Lula.
In der Kürze liegt die Würze, dizem os alemães. Na brevidade está o sabor. Em outras
palavras, quem
precisa de mais de duzentas páginas para explicar e julgar tão singela acusação
não pode ter razão. Tudo não passa de conversa para boi dormir, para
impressionar o público leigo, que adora uma novelinha das oito. Mas nada disso
impressiona juristas sérios.
Ao final, temos que Lula foi condenado PORQUE não havia provas
contra ele. Mais kafkiano impossível. Supôs
o juiz que o réu é um caráter deformado, capaz de ocultar a propriedade de um
imóvel, sem deixar qualquer vestígio dessa propriedade. Só rindo mesmo, se esse
modo de agir não fosse tão desastroso para a credibilidade das instituições do
país.
Mas nos resta a esperança de acreditar que ainda
existem juízes em Porto Alegre. Para recuperar a moral da prestação
jurisdicional e redimir o Brasil das tramas estratégicas globais dos inimigos
de sua independência, de certo saberão apontar para as gritantes teratologias
da sentença e não deixarão sua razão ser ofuscada pelo ódio político que tomou
conta do país. Só assim os desembargadores conseguirão dar sua imprescindível
contribuição à normalização institucional e à sobrevivência da democracia entre
nós. Quanto aos meninos de Curitiba, se seu objetivo for apenas tornar Lula
inelegível em 2018, não passarão!
Folha.com. 15/07/17
Moro e a morte do
Direito
Por Wadih Damous
Do ponto de vista do rigor técnico-jurídico é importante afirmar que a sentença afronta a exigência constitucional de que fundamentadas sejam todas as decisões judiciais, ainda mais quando está em jogo a vida e a liberdade alheias. Só é legítima e válida a decisão judicial que indicar, concretamente, as suas premissas lógicas e o caminho racional percorrido pelo magistrado para resolver a contradição entre acusação e defesa.
Resolver essa dialética implica, portanto, em trabalho rigoroso de análise da prova colhida durante o processo e se ela seria suficiente para comprovar o quanto alegado na denúncia.
Alguns dados ajudam a compreender a absoluta nulidade da sentença que condenou o ex-presidente Lula. Cerca de 60 páginas, 30% da sentença, são utilizadas pelo juiz para se defender de acusações de arbitrariedades por ele praticadas contra o acusado e nos processos em que atua. Só 8%, cerca de 16 páginas, são utilizados para rebater e se contrapor ao que o acusado afirmou em seu interrogatório, e apenas 0,4% é dedicado às testemunhas da defesa, menos de uma página de um total de 218.
A questão central do processo, a titularidade do imóvel que teria sido recebido em contrapartida aos atos que beneficiariam empresas, é tratada pelo juiz com absoluto desdém, a ponto de dizer que no processo "não se está, enfim, discutindo questões de direito civil, ou seja, a titularidade formal do imóvel, mas questão criminal".
Ora, para resolver o processo era fundamental que o Ministério Público provasse ter o ex-presidente recebido o referido imóvel em troca de favorecimentos a terceiros e, para o Código Civil, a única forma disso acontecer é com a transferência da sua titularidade.
Em resumo, a sentença pode ser caraterizada como uma expiação narcísica de atos autoritários do juiz, preenchida pelo profundo desprezo aos argumentos da defesa e pela miséria jurídica e intelectual. Lula estava condenado antes mesmo de ser julgado.
A ânsia em condenar a maior liderança popular do Brasil fez com que o juiz furasse uma fila de quatro processos de outros acusados que estavam prontos para sentença desde o ano passado. Tudo isso pela vaidade de tentar recuperar um protagonismo perdido, fruto do crescimento das críticas de setores sociais que antes o apoiavam.
O juiz que já havia favorecido Michel Temer ao criminosamente gravar a presidenta Dilma Rousseff e depois divulgar o conteúdo da gravação, novamente o faz, proferindo sentença absolutamente ilegal, em meio ao julgamento pela Câmara dos Deputados da admissibilidade de denúncia oferecida perante o STF.
É simbólico que a sentença contra Lula tenha sido proferida no dia seguinte à criminosa condenação dos direitos trabalhistas pelo governo ilegítimo que Moro ajudou a estabelecer e agora ajuda a se manter com suas estapafúrdias, ilegais e atabalhoadas decisões judiciais.
A esperança é que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região possa, de forma imparcial, reformar a sentença e corrigir essa injustiça manifesta contra o ex-presidente e sua família. No julgamento da história, no entanto, Lula já foi absolvido.
*Deputado
federal (PT-RJ), é vice-líder do partido na Câmara e ex-presidente da OAB/RJ
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