Tijolaço, 13/07/17
Fernando Hideo Lacerda disseca a sentença de Moro
Do
advogado e professor de Direito Penal Fernando Hideo Lacerda, sobre a sentença
com que Sérgio Moro condenou o ex-presidente Lula.
Não
me proponho a exaurir o tema, tampouco entrar num embate próprio das
militâncias partidárias, relatarei apenas as minhas impressões na tentativa de
traduzir o juridiquês sem perder a técnica processual penal.
Objeto da condenação: a “propriedade de fato” de um
apartamento no Guarujá.
Diz a
sentença: “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram
PROPRIETÁRIOS DE FATO do apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no
Guarujá”.
Embora se
reconheça que o ex-presidente e sua esposa jamais frequentaram esse
apartamento, o juiz fala em “propriedade de fato”.
O que é
propriedade ?
Código
Civil – Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da
coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua
ou detenha.
Portanto,
um “proprietário de fato” (na concepção desse juiz) parece ser alguém que
usasse, gozasse e/ou dispusesse do apartamento sem ser oficialmente o seu dono.
Esse
conceito “proprietário de fato” não existe em nosso ordenamento jurídico.
Justamente porque há um outro conceito para caracterizar essa situação, que se
chama posse:
Código
Civil – Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o
exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
E não foi
mencionada na sentença qualquer elemento que pudesse indicar a posse do
ex-presidente ou de sua esposa do tal triplex: tudo o que existe foi UMA visita
do casal ao local para conhecer o apartamento que Léo Pinheiro queria lhes
vender.
Uma
visita.
Portanto,
a sentença afirma que Lula seria o possuidor do imóvel sem nunca ter tido posse
desse imóvel. Difícil entender ? Impossível.
Tipificações penais
–
corrupção (“pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência
do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”)
– lavagem
de dinheiro (“envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do
apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”).
Provas Documentais
Um monte
de documento sobre tratativas para compra de um apartamento no condomínio do
Guarujá (nenhum registro de propriedade, nada que indique que o casal tenha
obtido sequer a posse do tal triplex) e uma matéria do jornal o globo (sim,
acreditem se quiser: há nove passagens na sentença que fazem
remissão a uma matéria do jornal O Globo como se prova documental fosse).
Esse
conjunto de “provas documentais” comprovaria que o ex-presidente Lula era o
“proprietário de fato” do apartamento.
Mas ainda
faltava ligar o caso à Petrobras (a tarefa não era assim tão simples, porque a
própria denúncia do Ministério Público do Estado de São Paulo — aquela mesmo
que citava Marx e “Hegel” — refutava essa tese)…
Prova Testemunhal
Aí entra
a palavra dos projetos de delatores Léo Pinheiro e um ex-diretor da OAS para
“comprovar” que o apartamento e a reforma seriam fruto de negociatas envolvendo
a Petrobras.
Não há
nenhuma prova documental para comprovar essas alegações, apenas as declarações
extorquidas mediante constante negociação de acordo de delação premiada
(veremos adiante que foi um “acordo informal”).
A Corrupção
Eis o
tipo penal de corrupção:
Art. 317
– Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda
que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida,
ou aceitar promessa de tal vantagem.
Portanto,
deve-se comprovar basicamente:
–
solicitação, aceitação da promessa ou efetivo recebimento de vantagem indevida;
e
– Contrapartida do funcionário público.
– Contrapartida do funcionário público.
No caso,
o ex-presidente foi condenado “pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo
OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”.
O
pressuposto mínimo para essa condenação seria a comprovação:
– do
recebimento da vantagem (a tal “propriedade de fato” do apartamento); e
– da contrapartida sobre o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobras.
– da contrapartida sobre o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobras.
Correto?
Não.
Como não
houve qualquer prova sobre a contrapartida (salvo declarações extorquidas de
delatores), o juiz se saiu com essa pérola:
“Basta
para a configuração que os pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda
que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as
oportunidades apareçam.”
E
prossegue, praticamente reconhecendo o equívoco da sua tese: “Na jurisprudência
brasileira, a questão é ainda objeto de debates, mas os julgados mais recentes
inclinam-se no sentido de que a configuração do crime de corrupção não depende
da prática do ato de ofício e que não há necessidade de uma determinação
precisa dele”.
Ou seja,
como não dá pra saber em troca de que a oas teria lhe concedido a “propriedade
de fato” do triplex, a gente diz que foi em troca do cargo pra que as vantagens
fossem cobradas “assim que as oportunidades apareçam” e está tudo certo pra
condenação!
Para
coroar, as pérola máxima da sentença sobre o crime de corrupção:
– “Foi,
portanto, um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos
atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014,
aproximadamente”.
Haja
triplex pra tanta vantagem…
“Não
importa que o acerto de corrupção tenha se ultimado somente em 2014,
quando Luiz Inácio Lula da Silva já não exercia o mandato presidencial, uma vez
que as vantagens lhe foram pagas em decorrência de atos do período em que era
Presidente da República”.
Haja
crédito pra receber as vantagens até 4 anos depois do fim do mandato…
Lavagem de Dinheiro
A
condenação por corrupção se baseia em provas inexistentes, mas a pior parte da
sentença é a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro.
Hipótese
condenatória: lavagem de dinheiro “envolvendo a ocultação e dissimulação da
titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas
realizadas”.
Ou seja,
o ex-presidente Lula teria recebido uma grana da OAS na forma de um apartamento
reformado e, como não estava no nome dele, então isso seria lavagem pela
“dissimulação e ocultação” de patrimônio.
Isso é
juridicamente ridículo.
Lavagem é
dar aparência de licitude a um capital ilícito com objetivo de reintroduzir um
dinheiro sujo no mercado. Isso é “esquentar o dinheiro”. Exemplo clássico: o
cara monta um posto de gasolina ou pizzaria e nem se preocupa com lucro, só
joga dinheiro sujo ali e esquenta a grana como se fosse lucro do negócio.
Então não
faz o menor sentido falar em lavagem nesses casos de suposta “ocultação” da grana. Do
contrário, o exaurimento de qualquer crime que envolva dinheiro seria lavagem,
percebem ?
Não só
corrupção, mas sonegação, roubo a banco, receptação, furto… Nenhum crime
patrimonial escaparia da lavagem segundo esse raciocínio, pq obviamente ninguém
bota essa grana no banco !
Delação Informal (ilegal) de Léo Pinheiro
Nesse
mesmo processo, Léo Pinheiro foi condenado a 10 anos e 8 meses (só nesse
processo, pois há outras condenações que levariam sua pena a mais de 30 anos).
Mas de todas
as penas a que Léo Pinheiro foi condenado (mais de 30 anos) ele deve
cumprir apenas dois anos de cadeia (já descontado o período de prisão
preventiva) porque “colaborou informalmente” (ou seja, falou o que queriam
ouvir) mesmo sem ter feito delação premiada oficialmente.
Ou seja,
em um inédito acordo de “delação premiada informal”, ganhou o
benefício de não reparar o dano e ficar em regime fechado somente dois anos
(independentemente das demais condenações).
Detalhes
da sentença:
“O
problema maior em reconhecer a colaboração é a falta de acordo de
colaboração com o MPF. A celebração de um acordo de colaboração envolve um
aspecto discricionário que compete ao MPF, pois não serve à persecução realizar
acordos com todos os envolvidos no crime, o que seria sinônimo de impunidade.” –> delação informal.
“Ainda
que tardia e sem o acordo de colaboração, é forçoso reconhecer que o
condenado José Adelmário Pinheiro Filho contribuiu, nesta ação penal, para o
esclarecimento da verdade, prestando depoimento e fornecendo documentos” –> benefícios informais.
“é o caso
de não impor ao condenado, como condição para progressão de regime, a completa
reparação dos danos decorrentes do crime, e admitir a progressão de regime de
cumprimento de pena depois do cumprimento de dois anos e seis meses de reclusão
no regime fechado, isso independentemente do total de pena somada, o que
exigiria mais tempo de cumprimento de pena” –> vai cumprir apenas dois anos.
“O
período de pena cumprido em prisão cautelar deverá ser considerado para
detração” –>
desses dois anos vai subtrair o tempo de prisão preventiva.
“O
benefício deverá ser estendido, pelo Juízo de Execução, às penas unificadas nos
demais processos julgados por este Juízo” –> ou seja, de todas as penas (mais de 30 anos)
ele irá cumprir apenas dois anos em regime fechado…
Traumas e prudência
Cereja do
bolo: o juiz diz que “até caberia cogitar a decretação da prisão preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, mas “considerando
que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver
certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de
Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação”.
É a prova
(agora sim, uma prova !) de que não se julga mais de acordo com a lei, mas
pensando nos traumas e na (im)prudência…
_______
Independentemente
da sua simpatia ideológico-partidária, pense bem antes de aplaudir condenações
dessa natureza.
Eis o
processo penal de exceção: tem a forma de processo judicial, mas o conteúdo é
de uma indisfarçável perseguição ao inimigo !
Muito
cuidado para que não se cumpra na pele a profecia de Bertolt Brecht e apenas se
dê conta quando estiverem lhe levando, mas já seja tarde e como não se importou
com ninguém…
Jornal GGN, 14/07/17
Como defender em tucanês a sentença de Moro
Por Luis Nassif
Veja o
desafio.
Brilhar
nas páginas de um jornal conta pontos para um advogado. O padrão aceito é o de
defender a Lava Jato, embora a unanimidade comece a ceder. Mas, ao mesmo tempo,
há uma reputação a ser zelada da parte dos mais advogados sérios.
Como se
equilibrar?
Em cada sentença, há a análise da forma e do mérito. O mérito é essencial, a forma é acessória, embora possa levar à anulação de julgamentos.
O título do artigo dr Sundfeld é "Ao rejeitar parte da denúncia, Moro fortaleceu sentença". Aparentemente, uma opinião definitiva sobre a sentença. De fato, é isso o que ele diz na abertura do artigo.
Colocar o secundário na frente e o essencial no fim faz parte do estilo jurídico, ao contrário da redação jornalística, que coloca o essencial no lide e no título. Mas nem Sundfeld conhece a fundo o jornalismo, nem o o mancheteiro conhece a fundo o direito. E destacou a forma em detrimento do mérito.
Segundo dr. Sundfeld, ao rejeitar a acusação secundária - o transporte de bens recebidos no exercício da Presidência - Moro teria fortalecido a acusação principal - o triplex.
Abre parêntesis:
Na época em que se levantou essa acusação, jornais se rejubilaram com vazamentos de procuradores e delegados lançando suspeitas até sobre a falta de alguns dos presentes. Aliás, era curioso. Lula era denunciado por se responsabilizar pelo transporte de bens que não eram dele. E, ao mesmo tempo, acusado de se apropriar dos mesmos bens.
Aliás, até o aparente ato de condescendência de Moro em relação ao transporte dos bens tem a intenção de reforçar a acusação principal.
Fecha parêntesis.
Sundfeld entra, então, na análise do mérito.
Endossa plenamente a tese de Moro de que a alegação de um acusado, de que o bem não é dele, é muito frágil porque todos os culpados dizem isso. "Isso, aliás, é lavagem de dinheiro, outro crime", conclui o douto jurista. E diz que esse argumento só comove a militância.
A afirmação é importante para comprovar que o realismo jurídico fantástico não é prerrogativa apenas de Curitiba.
Imagine um crime com dois suspeitos: um culpado e outro inocente, ambos acusados de terem a posse de determinado bem. Ambos negam. Por definição, apenas um é culpado. No entanto, o notável discernimento do dr. Sundfeld condenaria ambos, porque a regra é que todo culpado mente.
Também endossa amplamente as provas consideradas por Moro, ao enfatizar as relações da família de Lula com o apartamento e a reforma personalizada. Taxativamente? Nem tanto.
Para não ser cobrado mais tarde por endosso tão taxativo, dr. Sundfeld recorre a uma esperteza jurídica: o SMJ, salvo melhor juízo. Ou seja, tudo o que falei é definitivo, salvo melhor juízo. E como ele tem que contentar a linha editorial do jornal, mas também não pode se expor tanto assim ante o público especializado, coloca um enorme SMJ no final do parágrafo:
É verdade que a demonstração de Moro impressiona, mas é claro que o recurso vai tentar chamar atenção do tribunal para outra leitura dos mesmos fatos. Aí serão outros juízes, outras cabeças. Salvo melhor juízo, dr. Sundfeld não é contra nem a favor, muito pelo contrário.
Aí, entra em outro aspecto complexo: a cada ato de suborno tem que aparecer uma vantagem objetiva para o subornador.
Dr. Sundfeld diz que os executivos da OAS afirmaram que o valor foi descontado da conta de propina do PT. Ele não é um leitor comum, que acredita piamente que tudo o que um acusado diz para se safar é verdade cristalina: ele é advogado experiente que sabe que, se existisse a menor prova concreta, os delatores da OAS teriam apresentado. Além disso, o dr. Sundfeld trabalha com advocacia empresarial e sabe que o apartamento é uma besteira, totalmente desproporcional em relação aos valores envolvidos.
Mas ele endossa ou não a acusação? Na sequência, diz ele:
Moro levou isso em consideração na leitura de outras provas, que deram indicações no mesmo sentido. Mas é um ponto difícil, que o recurso vai atacar.
Qual o significado de "é um ponto difícil". É simples: não convence. Se convencesse, não seria um ponto difícil, mas um ponto de fácil comprovação.
Pergunto: com tantas dificuldades para se afirmar o óbvio, é possível dizer que a Folha informa adequadamente seus leitores?
Folha.com, 14/07/17
O golpe final
Por Vladimir Safatle
Aqueles
que, nas últimas décadas, acreditaram que o caminho do Brasil em direção a
transformações sociais passava necessariamente pelo gradualismo deveriam
meditar profundamente nesta semana de julho.
Não foram
poucos os que louvaram as virtudes de um reformismo fraco porém seguro que
vimos desde o início deste século, capaz de paulatinamente avançar em
conquistas sociais e melhoria das condições de vida dos mais vulneráveis,
enquanto evitava maiores conflitos políticos graças a estratégias
conciliatórias.
"Há
de se respeitar a correlação de forças", era o que se dizia. Para alguns,
isso parecia sabedoria de quem lia 'A Arte da Guerra', de Sun Tzu,
antes de reuniões com José Sarney e a lama do PMDB. Eu pediria, então, que
meditássemos a respeito do resultado final de tal sabedoria.
Pois o
verdadeiro resultado dessa estratégia está evidente hoje. Nunca o Brasil viu
tamanha regressão social e convite à espoliação do mundo do trabalho.
O salto
de modernização que nos propõem hoje tem requintes de sadismo. Ou, que nome
daríamos para a permissão de mulheres gestantes trabalharem em ambientes
insalubres e de que trabalhadores "tenham o direito" de negociar seu
horário de almoço?
Tudo isso
foi feito ignorando solenemente o desejo explícito da ampla maioria da
população. Ignorância impulsionada pelo papel nefasto que tiveram setores
majoritários da imprensa ao dar visões completamente monolíticas e unilaterais
das discussões envolvendo tal debate.
Mas isso
podia ser feito porque não há mais atores políticos capazes de encarnar a
insatisfação e a revolta. Hoje, o governo pode atirar contra a população nas
ruas em dias de manifestação e sair impune porque não há ator político para
incorporar rupturas efetivas. Eles se esgotaram nos escaninhos de tal modelo de
gestão social brasileiro.
A reforma
trabalhista apenas demonstra que o gradualismo pariu um monstro. Os mesmos que
votaram para mandar a classe trabalhadora aos porões de fábricas inglesas do
século 19 estavam lá nas últimas coalizões dos governos brasileiros, sendo
ministros e negociadores parlamentares.
Ou seja,
a política conciliatória os alimentou e os preservou, até que eles se sentissem
fortes o suficiente para assumirem a cena principal do poder. "Mas era
necessário preservar a governabilidade", era o que diziam. Sim, este é o
verdadeiro resultado da "governabilidade" do ingovernável, da
adaptação ao pior.
Como se
fosse apenas um acaso, no dia seguinte à aprovação da reforma trabalhista o
Brasil viu o artífice deste reformismo conciliatório, Luiz Inácio Lula da
Silva, ser condenado a nove anos de prisão por corrupção. Esse era um roteiro
já escrito de véspera.
De toda
forma, há de se admirar mais um resultado desta política conciliatória – a
adaptação ao modelo de corrupção funcional do sistema brasileiro e,
consequentemente, a fragilização completa de figuras um dia associadas, por
setores majoritários da população, a alguma forma de esperança de modernização
social.
O Brasil
agora se digladia entre os que se indignam com tal sentença e os que a aplaudem
com lágrimas de emoção. Engraçado é ver outros políticos que também mereciam
condenação pregarem agora moralidade.
No
entanto, o problema é que só existirá essa sentença, nada mais. Este é o
capítulo final. Da mesma forma que o capítulo final do julgamento do mensalão
foi a prisão de José Dirceu. Perguntem o que aconteceu com o idealizador do
mensalão, o ex-presidente do PSDB Eduardo Azeredo.
Ou
perguntem sobre o que acontecerá a outro presidente do mesmo partido, aquele
senhor que foi pego em gravação telefônica dizendo que deveria procurar um
interceptador para propina que pudesse ser assassinado.
Ou o
ex-presidente FHC, citado nos mesmos escândalos que agora condenam Lula. Muitos
reclamam da parcialidade da Justiça brasileira: há algo de comédia nessa
reclamação.
Que esta
semana seja um sinal claro de que uma forma de fazer política no Brasil se
esgotou, seus fracassos são evidentes, suas fraquezas também. Continuar no
mesmo lugar é apenas uma forma autoinduzida de suicídio.
DCM, 15/07/17
100 juristas escreverão livro sobre os erros da sentença de Moro
Por Joaquim de Carvalho
Quando
condenou Lula sem provas, o juiz Sérgio Moro fez uma escolha: ele preferiu
ficar bem com seus fãs e a imprensa corporativa a observar a lei.
Toda
escolha tem seu preço e o de Sérgio Moro será a execração nos meios jurídicos
mais sérios.
Os primeiros passos nessa direção já foram dados com
artigos publicados aqui e ali que mostram a farsa da sentença.
Os
repórteres da Globo repetem um texto padrão ao falar sobre os fundamentos da
sentença. Repare que todos dizem:
O juiz
Sérgio Moro baseou a decisão em provas documentais, periciais e testemunhais.
A
pergunta que todo jornalista deveria fazer é: Quais?
As
reportagens não esclarecem, mas o professor de direito penal Fernando Hideo
Lacerda procurou na sentença e o que encontrou foi:
“Um monte
de documentos sobre tratativas para compra de um apartamento no condomínio do
Guarujá (nenhum registro de propriedade, nada que indique que o casal tenha
obtido sequer a posse do tal triplex) e uma matéria do jornal O Globo (sim,
acreditem se quiser: há NOVE passagens na sentença que fazem remissão a uma
matéria do jornal O Globo como se prova documental fosse).”
A
professora de direito Elo Machado, da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo,
reparou que Moro não tratou propriamente da acusação em sua sentença. E fez
troça:
“A
sentença gasta 218 páginas para dizer muito pouco. Moro se defende na maior
parte, lançando sua candidatura ao Nobel da Paz cumulado com Santo Padroeiro
dos Patos Amarelos (mas, cá entre nós, tá mais pra prêmio Jabuti).”
São tiros
desconcertantes para quem vive no meio acadêmico, mas os petardos mortais estão
reservados para um livro que será lançado já em agosto, com artigos de 100
advogados e juristas sobre a farsa do julgamento de Sérgio Moro.
A ideia
do livro surgiu na quarta-feira à noite, logo depois que os advogados e
juristas leram a sentença do juiz e começaram a trocar suas impressões.
Se entre
eles ainda havia alguma dúvida sobre a parcialidade de Sérgio Moro, ela caiu
por terra.
Os
professores Juarez Tavares, da UERJ, e Carol Proner, da UFRJ, assumiram a
organização e contataram outros juristas. A aceitação foi imediata.
O livro
terá artigo de Marcelo Nobre, Marco Aurélio de Carvalho, Eugênio Aragão, Pedro
Serrano e Lênio Streck, entre outros.
Um dos
temas abordados será a da ilegalidade que cimentou o alicerce de toda a
operação: a falta de competência de Moro para atuar no processo.
Moro
plantou a semente do que viria a ser a Lava Jato em 2006, quando foi informado
pela Polícia Federal da investigação do crime de lavagem de dinheiro.
Era um
caso relacionado a recursos do mensalão e o personagem central era José Janene,
então deputado federal.
O
inquérito teria que ser remetido para o Supremo Tribunal Federal, mas Moro, por
razão nunca esclarecida, vinculou-se ao inquérito.
No
despacho em que se assume como juiz do inquérito, Moro faz referência ao
processo em que homologou a colaboração do doleiro Alberto Yousseff, no
processo do Banestado, a megalavanderia de dinheiro sujo que funcionou
principalmente nos anos em que Fernando Henrique Cardoso foi presidente.
Segundo a
PF informou Moro, Yousseff estava de volta ao mundo do crime.
O procedimento
correto teria sido Moro anular o acordo que fez com Yousseff e mandá-lo de
volta para a cadeia.
Mas Moro
o manteve solto, como uma isca para buscar outros alvos. Mas que alvo? Não está
claro.
Em 2009,
a Polícia Federal mostra que Yousseff está mais ativo do que nunca, só que,
como em 2006, longe do Paraná, na cidade de São Paulo.
Moro
prossegue na investigação, quando deveria ter encaminhado tudo para a Justiça
federal da capital paulista.
Justiça
não é um instrumento de ação pessoal.
A lei
está acima de todos e, pela lei, se o crime estava sendo cometido em São Paulo,
era para lá que Moro deveria ter enviado o inquérito.
Como se
tivesse interesse pessoal na investigação, Moro retém o inquérito e esconde
essa decisão do Ministério Público Federal, à época representado por uma
procuradora – Dallagnol ainda não estava lá.
Moro
continuou num trabalho que parecia firmado em parceria com a Polícia Federal, e
mantém o processo aberto, sem julgar ninguém, investigando tudo e todos, até
chegar a Petrobras.
Na
democracia, a lei define limite para a atuação do juiz, o que garante o
exercício da cidadania.
Só na
ditadura é que o Estado mantém-se permanente vasculhando a vida das pessoas.
A análise
da investigação mostra que Moro e a Polícia Federal permitiram que Yousseff
prosseguisse no crime de lavagem de dinheiro durante quase oito anos, de 2006 a
2014, quando ele voltou a ser preso.
Por quê?
Mais
escandaloso ainda é que, depois de todo esse tempo, o que restou em relação ao
ex-presidente Lula, que parece ser um alvo definido, é um power point que
mostra o ex-presidente no centro do que seria uma quadrilha.
Um power
point e nenhuma prova.
Nenhuma
prova.
No livro que os juristas lançarão em agosto, Moro deve sair como uma figura da estatura do médico-legista Harry Shibata, que teve um papel vergonhoso durante a ditadura militar.
Ele foi
acusado de assinar laudos necroscópicos falsos de presos políticos assassinados
pela ditadura.
Seu nome
aparece diversas vezes no 'Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a
partir de 1964', da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Entre os
laudos assinados por ele, estão o de Carlos Marighella, dado como morto em
tiroteio, mas, na verdade, executado com diversos tiros; Vladimir Herzog, que,
segundo o regime teria cometido suicídio, versão já desmentida oficialmente
pelo Estado brasileiro; e Sônia Maria Angel Jones, cuja tortura e estupro teria
sido transformada por Shibata em morte por tiroteio.
No ambiente
do golpe de 2016, Moro foi promovido a herói pela imprensa corporativa – os
efeitos dessa ação ainda devem durar algum tempo, pouco tempo –, mas ele tem,
certamente, um encontro marcado com a história, e vai pagar o preço de quem
escolheu ser parte num processo em que teria que ser juiz.
The Intercept, 16/07/17
A condenação de Lula e a imparcialidade de Moro
Por João Filho
A sentença se debruçou longamente sobre as provas frágeis apresentadas pelo Ministério Público, mas ignorou completamente as provas da defesa. A imparcialidade de Moro vem sendo questionada durante o processo por parte significativa da opinião pública e o conteúdo da sentença contribui para reforçar essa percepção. Não é para menos. Desde o início do processo, o juiz foi visto em eventos públicos organizados por tucanos, pela Globo, pela Isto É, pelo Lide de Doria.
Enfim, talvez seja mera coincidência, mas Moro só confraterniza com inimigos declarados de Lula.
Recheada de “poréns” e “entretantos”, a sentença
mostra um Moro inseguro, vacilante, preocupado em justificar a ausência de
provas materiais e em se defender das acusações de parcialidade — como se isso
coubesse a um magistrado. No quesito surrealismo, alguns trechos deixam o
powerpoint do Dallagnol no chinelo e demonstram o papel de acusador que o juiz
assumiu para si:
Aqui temos um juiz explicando que não está levantando indícios, algo que seria absolutamente desnecessário, já que é algo que foge às suas atribuições. Há algo de errado quando um julgador precisa explicar na sentença que não está cumprindo o papel de promotor.
“Em síntese e tratando a questão de maneira muito objetiva, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não está sendo julgado por sua opinião política e também não se encontra em avaliação as políticas por ele adotadas durante o período de seu Governo (…)Também não tem qualquer relevância suas eventuais pretensões futuras de participar de novas eleições ou assumir cargos públicos.”
A necessidade hercúlea de Moro em se defender das acusações de que pretende tirar Lula das próximas eleições é reveladora. Desde quando um juiz deve esse tipo de satisfação? Por que não se ater unicamente aos fatos que envolvem o processo? Se Lula faz política em cima do processo, Moro jamais poderia fazer. Os motivos são óbvios.
“Essas condutas são inapropriadas e revelam tentativa de intimidação da Justiça, dos agentes da lei e até da imprensa para que não cumpram o seu dever. Aliando esse comportamento com os episódios de orientação a terceiros para destruição de provas, até caberia cogitar a decretação da prisão preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entretanto, considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação. Assim, poderá o ex-Presidente Luiz apresentar a sua apelação em liberdade.”
Moro considera “tentativa de intimidação” o fato dos advogados de Lula recorrerem à Justiça contra ele por abuso de autoridade, uma ação absolutamente legítima. Não cabe a um juiz desqualificá-la dessa forma em uma sentença.
Moro ainda afirma que poderia cogitar a prisão de Lula tendo como base uma declaração de Léo Pinheiro em delação premiada em que afirma que teria sido orientado pelo ex-presidente a destruir provas. Essa declaração não foi sustentada com provas — fato fundamental para validação de uma delação premiada — e, sozinha, jamais poderia justificar a prisão por obstrução de justiça. Mas Moro escreveu na sentença que pretendeu evitar “certos traumas” que a prisão de um ex-presidente da República poderia causar. Eu pensei que todos fossem iguais perante a lei e que o juiz julgasse com base unicamente com base nas provas do processo, mas Moro confessa, ainda que indiretamente, que norteia seu trabalho a partir de cálculos políticos. Não podemos nos dizer surpresos.
“Por fim, registre-se que a presente condenação não traz a este julgador qualquer satisfação pessoal, pelo contrário. É de todo lamentável que um ex-Presidente da República seja condenado criminalmente, mas a causa disso são os crimes por ele praticados e a culpa não é da regular aplicação da lei. Prevalece, enfim, o ditado “não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você” (uma adaptação livre de “be you never so high the law is above you”).”
Agora esqueçamos a cafonice anglo-saxã entre parêntesis e nos concentremos na satisfação pessoal de Moro, que ele próprio considerou adequado trazer para a sentença. Quando um juiz precisa explicar que não está julgando com base na sua satisfação pessoal é porque está julgando com base na sua satisfação pessoal. Claro, eu não tenho provas materiais para afirmar isso, porém, entretanto, pelo conjunto de indícios dessa sentença e pelas manchetes e capas de revistas, acredito que a satisfação pessoal de Moro já não cabe dentro dele. Quando um juiz vê sua imparcialidade sendo questionada publicamente, ele deveria se considerar impedido de julgar para que dúvidas dessa natureza não prejudicassem o processo, e não ficar se explicando infantilmente em sentença.
Houvesse provas substanciais para a condenação de Lula, Moro mataria a cobra e mostraria, orgulhoso, o pau. Mas elas não aparecem na sentença. O interminável titubeio e a necessidade de se justificar revelam um juiz preocupado em se defender politicamente e provar sua imparcialidade. Bom, faltou combinar com a materialidade dos fatos.
Depois de ter uma presidenta eleita arrancada do poder, os brasileiros agora veem o candidato favorito para 2018 sendo expulso da disputa eleitoral após uma condenação sem nenhuma prova material. Por outro lado, grandes nomes governistas como Aécio e Temer gozam de liberdade e continuam ocupando seus cargos mesmo diante de uma pororoca de provas.
Obviamente, as circunstâncias são diferentes, mas, na prática, é essa a aberração que o país vive.
Numa época em que se vive a judicialização da política, o que vemos é a balança da Justiça pendendo a favor da turma do Grande Acordo Nacional — aquela que pretendia tirar Dilma do poder e fazer um pacto com Supremo, com tudo. Políticos comprovadamente corruptos seguem no comando da nação, sendo julgados por aliados políticos, enquanto um ex-presidente sem cargo público há quase 8 anos pode ir para a cadeia com base num roteiro traçado por um juiz que claramente rivaliza com o réu e que baseou sua decisão apenas em delações e indícios.
E há quem continue dizendo que as instituições estão funcionando normalmente. Funcionando pra quem?
Folha.com, 20/07/17
Insucesso na busca de prova leva Moro ao descontrole das argumentações
Por Janio de Freitas
A resposta do juiz ao primeiro recurso contra a sentença é mais do que continuidade da peça contestada. É um novo avanço: lança a inclusão do insulto. Contrariado com as críticas à condenação carente de provas, Moro argumenta que não pode prender-se à formalidade da ação julgada. Não é, de fato, um argumento desprezível. Se o fizesse, diz ele, caberia absolver Eduardo Cunha, "pois ele também afirmava que não era titular das contas no exterior" que guardavam "vantagem indevida".
A igualdade das condutas de Cunha e Lula não existe. Moro apela ao que não procede. E permite a dedução de que o faça de modo consciente: tanto diz que Eduardo Cunha negava a posse das contas, como em seguida relembra que ele se dizia "usufrutuário em vida" do dinheiro. Se podia desfrutá-lo ("em vida", não quando morto), estava dizendo ser dinheiro seu ou também seu. Simples questão de pudor, talvez, comum nos recatados em questões de vis milhões. Moro não indica, porém, uma só ocasião em que Lula tenha admitido, mesmo por tabela, o que o juiz lhe atribui e condena.
Diferença a mais, os procuradores e o juiz receberam comprovação documental de contas de Eduardo Cunha. O insucesso na busca de documento ou outra prova que contrarie Lula, apesar dos esforços legítimos ou não para obtê-la, é o que leva os procuradores e Moro ao descontrole das argumentações. E a priorizar o desejado contra a confiabilidade. Vêm as críticas, e eles redobram as ansiedades.
É o próprio Moro a escrever: "Em casos de lavagem, o que importa é a realidade dos fatos, segundo as provas e não a mera aparência". Pois é. Estamos todos de acordo com tal conceituação. Nós outros, cá de fora, em grande medida vamos ainda mais longe, aplicando a mesma regra não só a lavagens, sejam do que forem, mas a uma infinidade de coisas. E muitos pudemos concluir que, se o importante para Moro é a realidade "segundo as provas e não a mera aparência", então, lá no fundo, está absolvendo Lula. Porque o apartamento pode até ser de Lula, mas ainda não há provas. A Lava Jato e o juiz só dispõem da "mera aparência", o que Moro diz não prestar.
Já está muito repisado que delações servem para dar pistas, não como prova. Apesar disso, Moro dá valor especial a escapatório de Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, de que o apartamento saiu de uma conta-corrente da empreiteira com o PT. Convém lembrar, a propósito, que Pinheiro negou, mais de ano, a posse do apartamento por Lula. Em meado do ano passado, Pinheiro e Marcelo Odebrecht foram postos sob a ameaça, feita publicamente pela Lava Jato, de ficarem fora das delações premiadas, que em breve se encerrariam. Ambos sabiam o que era desejado. E começaram as negociações. Odebrecht apressou-se. Pinheiro resistiu até há pouco. A ameaça de passar a velhice na cadeia o vendeu.
Infundada, a igualdade de Eduardo Cunha e Lula passou de argumento a insulto. A rigor, assim era desde o início. E juiz que insulta uma das partes infringe a imparcialidade. Mostra-se parte também.
CartaMaior, 20/07/17
Do 'domínio do fato' a 'propriedade de fato'
Por Egas Moniz-Bandeira
As considerações fornecidas com exclusividade para Carta
Maior sobre a sentença condenatória do juiz Sergio Moro, de Curitiba, no
caso do ex-presidente Luis Inácio da Silva, são de autoria do advogado
brasileiro Egas Moniz-Bandeira, 31, há seis anos integrante da equipe de
um dos mais conceituados escritórios de Zurique, na Suíça, o Baumgarten
Machler, apontado como uma das bancas de maior prestígio em Direito penal e
Direito penal econômico.
Egas se encontra licenciado temporariamente da firma,
para se dedicar ao seu doutorado sobre História Chinesa, na Universidade
de Heidelberg e na Universidade de Tohoku (Japão).
Estas são as considerações do advogado brasileiro sobre
alguns pontos polêmicos da sentença do juiz Moro:
Sobre a instituição da delação
‘’Quanto à delação premiada, a sentença declara: ‘Quem, em geral, vem
criticando a colaboração premiada é, aparentemente, favorável à regra do
silêncio, a omertà das organizações criminosas, isso sim reprovável. ’ (p. 47).
Ora, de lege facta, a colaboração premiada foi permitida pela lei
12850, de 02 de agosto de 2013. Mas a frase do juiz Moro não cabe na sentença e
chega a ser ofensiva contra muitos juristas de sólida reputação que criticam a
colaboração premiada. Os sistemas jurídicos continentais, em geral, prevêem a
possibilidade de levar em consideração, em sentença penal, a conduta do réu
após cometer o crime. Mas o que é alheio aos sistemas de Direito continental é
o poder de se negociar a pena de antemão, inclusive por colaboração premiada.
Sob influência do Direito anglo-americano, negociações sobre a pena têm sido
introduzidas às leis de vários países, mas em todos eles a mudança legal é
controversa e alvo de muitas críticas. Na Alemanha, a regra existia entre
1989 e 1999. Após troca de governo, foi reintroduzida em 2009. Na Suíça,
uma norma muito limitada foi introduzida no Código Penal em 1994: de acordo com
o art. 260B, o juiz pode mitigar (mas não completamente perdoar) a pena pelo
crime de "participação em organizações criminosas" (não por outros)
se o autor do crime "buscar evitar que a organização continue a
atuar". Há dois meses, o governo suíço decidiu expandir a regra para
organizações terroristas. No Japão, negociações sobre a pena foram introduzidas
à lei em 2016 e serão permitidas a partir de 2018. Em todos os países, as
colaborações premiadas, especialmente quando permitem a absolvição de quem
cometeu a pena, sofrem severas críticas por várias razões. Entre elas, podem
facilitar falsas acusações e ferem o princípio de igualdade e/ou a pena pode se
tornar incalculável e não representar mais a culpa individual.’’
Sobre o domínio de fato
‘’Quanto à
teoria do domínio de fato, é interessante que a sentença nem mencione Claus
Roxin. Na realidade, ela não é aplicável no caso. A teoria foi desenvolvida por
Roxin e Friedrich-Christian Schroeder para os casos do holocausto. Em 1963,
Roxin proferiu uma palestra, ‘Crimes no âmbito de aparatos de
poder’ na qual concordou com Schroeder em seu livro de 1965, ‘O autor
atrás do autor do crime’. Os dirigentes nazistas haviam planejado os crimes
do holocausto, mas não os haviam executado pessoalmente. De acordo com a teoria
de Roxin e Schroeder, não eram meros participantes, mas autores. O debate sobre
esse tipo de caso tem sido extremamente intenso e produziu uma vasta literatura
acadêmica. De qualquer modo, a teoria de Roxin não é aplicável aos casos em
pauta, e foi aplicada erroneamente nos casos do Mensalão, como o próprio
Roxin constatou quando da sua visita ao Brasil. A teoria do "domínio
de fato" não afeta a necessidade de provas. Quem está no topo de uma
organização não se torna automaticamente criminoso porque algum subordinado
tenha cometido um crime. Pelo contrário; é necessário provar o domínio sobre o
crime em questão e como os crimes foram organizados e "orquestrados"
pelo "autor atrás do autor".
Sobre grampos em telefone de escritório da
defesa do réu
“’O juiz mandou grampear o telefone da banca de
advogados de Lula como se fosse o telefone da empresa de palestras usada pelo
ex-presidente. Depois, ignorou vários ofícios da operadora de telefonia
avisando que o número não pertencia à empresa de palestras e sim ao escritório
dos seus advogados, fato pelo qual teve que se explicar ao STF. Mesmo se
aceitarmos a afirmação do juiz de que ele não agiu de má fé, o fato de ter
ignorado os documentos (não só um) no seu caso principal, levanta dúvidas sobre
os métodos de trabalho e o profissionalismo dele e da sua equipe. ’’
A autodefesa de um suposto partidarismo
político do juiz
‘’Moro incluiu esse ponto na sentença; é claro que não
acusaria a si próprio de ser partidário. Mas pouco importa essa auto-avaliação;
o que importa é o seu comportamento de fato. Eu assisti a uma palestra de
Moro na Universidade de Heidelberg onde foi questionado sobre a sua foto com
Aécio Neves. Ele se defendeu ao dizer que se tratava de um evento público
e que o senador não é réu em nenhum dos seus processos. Ora, mesmo que Aécio
Neves não seja seu réu, as fotos mostram um forte viés partidário da parte do
juiz. Se realmente não fosse partidário, ele evitaria tais contatos políticos.
E esse é só um exemplo relativamente inocente. Mais grave é o seu comportamento
jurídico, inclusive em relação às delações premiadas. ’’
Sobre reação do juiz às alegações da defesa de Lula.
‘’Para não ferir o princípio de ampla defesa, o juiz reagiu às alegações feitas
pela defesa. Mas outra questão é: se as defesas do autor são convincentes.
’’
Sobre a repercussão do caso na Europa
‘’Não percebi muita repercussão entre colegas europeus.
Os jornais noticiaram o caso, muitos sendo bastante críticos. O jornal
Spiegel, por exemplo, escreve: ‘Em seu julgamento, Moro confirma aquilo
pelo que há muito tempo é criticado: o desdobramento jurídico do maior
escândalo de corrupção da história do Brasil segue critérios políticos e não
jurídicos. ’ Os jornais, de modo geral, têm escrito mais sobre a Venezuela do
que sobre o Brasil.’’
Sobre o processo em outras cortes
‘’É possível que a defesa de Lula leve o caso para a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, que pode
examiná-lo. Ao contrário do sistema europeu de proteção dos Direitos Humanos,
pessoas naturais não podem levar o caso diretamente à Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em San José. Isso só ocorrerá se a Comissão submeter o caso à
Corte. Alternativamente, a defesa de Lula também pode levá-lo ao Comitê de
Direitos Humanos, em Genebra, como já fez no ano passado. ’’
Sobre a comparação com Eduardo Cunha
“Moro
diz o seguinte:
‘Ele [Cunha] também afirmava como álibi que não era o
titular das contas no exterior que haviam recebido depósitos de vantagem
indevida, mas somente 'usufrutuário em vida'.
Obviamente, ser ‘usufrutuário em vida’ já é uma grande
(!) vantagem. Lula, por contrário, não só nega a titularidade, mas
qualquer tipo de vantagem, até mesmo a posse.
Além disso, são duas situações juridicamente diferentes.
No caso do Lula, trata-se de um imóvel; no caso de Cunha, contas bancárias. As
regras para aquisição de imóveis diferem das regras para aquisição de contas
bancárias. A comparação realmente não procede. No caso de imóveis, a propriedade
é registrada em registro público. Não há registro com o nome de Lula. Seria, em
tese, mesmo possível que o proprietário, para disfarçar-se e não aparecer no
registro, registrasse o imóvel no nome de uma empresa por ele controlada. No
caso do Lula, não há indício para tal. A mera posse (domínio de fato) também
seria uma vantagem relevante, mas não vejo provas suficientes que comprovem a
posse. No caso de contas bancárias, como a de Cunha, não há registro público
sobre a propriedade. Há sim, formulários do banco onde aparecem as assinaturas
do próprio Cunha. A interpretação de tais formulários depende das
circunstâncias e pode ser difícil (bem mais do que a interpretação do registro
público de imóveis), mas no caso dele, as provas que temos deixam bem claro que
ele era o beneficiário efetivo da conta. Logo, se compararmos os dois casos,
temos que chegar à conclusão de que há provas no caso de Cunha e não há no caso
de Lula.
Sobre ‘’a propriedade de fato’’
“Este
ponto é muito importante: a ‘propriedade de fato’. Tal categoria jurídica não
existe no Brasil - ou alguém é proprietário ou não é. A propriedade é
uma categoria jurídica e não de fato. É o direito do dono de fazer o que bem
achar com a coisa (art. 1228 do Código Civil). Em geral, a aquisição da
propriedade se dá por registro de título (existem algumas outras formas, como a
usucapião, que não são aplicáveis aqui). Aqui, não houve registro de
título. A categoria factual correspondente é a posse, norma no art. 1196 do
Código Civil. De acordo com a norma, o possuidor ‘tem de fato o
exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.’ Quer
dizer, o possuidor é aquele que tem as chaves do apartamento e o usa de fato.
O proprietário pode ser o possuidor, ou pode ser outra pessoa (no caso de
aluguel, por exemplo). Não vejo provas suficientes de que o Lula tenha possuído
o apartamento em algum momento. ’’
Sobre a cronologia do caso
“O caso se
deu, realmente, após o fim do mandato de Lula. Crime de corrupção pressupõe uma
vantagem de cada lado. Como a Lava Jato não encontrou indícios de uma
contrapartida da parte de Lula, o juiz argumenta que ‘é suficiente que o agente
público entenda que dele ou dela era esperado que exercitasse alguma influência
em favor do pagador assim que as oportunidades surgissem’. Fala claramente de
uma contrapartida a ser dada no futuro. Acontece que, segundo a denúncia, Lula
recebeu a obra em 2009, três meses antes do fim do seu mandato. A obra só foi
concluída em 2013, vários anos depois de Lula deixar a presidência. Em 2013,
Lula não era mais agente público e não tinha mais poder de decisão direto. Como
é que a construtora esperava que Lula, no futuro, exercitasse alguma influência
em seu benefício? O juiz omite completamente uma discussão desse assunto.’’
Sobre parcialidade na avaliação da prova
testemunhal
''Um ítem importante que se vê nos embargos é a
parcialidade do juiz no ponto da avaliação da prova testemunhal. Segundo o
princípio da ampla defesa, o juiz teria que ter discutido todos os testemunhos
colhidos, mas escolheu ignorar aqueles que se alinhavam à posição da defesa,
somente considerando outros, aqueles que convêm à sua posição. Cabe ressaltar
que a sentença baseia-se, principalmente, no depoimento de Léo Pinheiro, que é
corréu. O corréu não é testemunha e portanto não tem obrigação de falar a
verdade.
Sobre o sequestro de bens de Lula
“Foi um
sequestro cautelar. Medidas cautelares têm como requisito que haja um ‘perigo
na demora’, ou seja, o perigo de que algum dano aconteça caso a medida não seja
tomada imediatamente. O juiz parece ter ignorado esse requisito fundamental uma
vez que não justificou a possível dilapidação do patrimônio. O juiz
simplesmente ‘reputou prudente sentenciar o caso antes’. O juiz gosta de falar
de ‘prudência’ em vez de se basear nos requisitos legais.’’
Forum, 20/07/17
Superficiais e medíocres
Por Marcos César Danhoni Neves*
Orientei mais de 250 alunos de graduação,
especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado, além de professores in-service.
Conto tudo isso, como preâmbulo, não para me gabar, mas para salientar que li
milhares de páginas de alunos brilhantes, medianos e regulares em suas
argumentações de pesquisa.
Dito isso, passo a analisar duas pessoas que compõem
o imaginário mítico-heróico de nossa contemporaneidade nacional: Sérgio Moro e
Deltan Dallagnol.
Em relação ao primeiro, Moro, trabalhei ativamente
para impedir, junto com um coletivo de outros colegas, para que não recebesse o
título de Doutor honoris causa pela Universidade Estadual de Maringá.
Moro tem um currículo péssimo: uma página no sistema
Lattes (do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico ligado ao
extinto MCT – Ministério da Ciência e Tecnologia). Lista somente 4 livros e 5
artigos publicados.
Mesmo sua formação acadêmica é estranha: mestrado e
doutorado obtidos em três anos. Isso precisaria ser investigado, pois a
formação mínima regulada pela CAPES-MEC (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Ministério da Educação) é de 24 meses para Mestrado
e 48 meses para o Doutorado.
Significa que “algo” ocorreu nessa formação
apressada.. Que “algo” é esse, é necessário apurar com rigor jurídico.
Além de analisar a vida acadêmica de Moro para
impedir que ele recebesse um título que não merecia, analisei também um
trabalho seminal que ele traduziu: “O uso de um criminoso
como testemunha: um problema especial”, de Stephen S.
Trott.
Mostrei que Moro não entendeu nada do que traduziu
sobre delação premiada e não seguiu nada das cautelas apresentadas pelos casos
daquele artigo.
Se seguirmos o texto de mais de 200 páginas da
condenação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e guiando-me pela minha
experiência em pesquisa qualitativa, análise de discurso e fenomenologia,
notamos claramente que parte significativa do texto consiste em Moro tentar
apagar suas digitais, sem sucesso, ao desdizer que agiu com imparcialidade.
Nestas páginas robustas lemos uma declaração clara
de culpa: Moro considera a parte da defesa de Lula em menos de 1% do texto
total! E dos mais de 900 parágrafos, somente nos cinco finais alinhava sua
denúncia e sentença sem provas baseada num misto frankensteiniano de
“explanacionismo” (uma “doutrina” jurídica personalíssima criada por Deltan
Dallagnol) e “teoria do domínio do fato”, ou seja, sentença exarada sobre
ilações, somente.
Aqui uso a minha experiência como professor e
pesquisador: quando um estudante escreve um texto (TCC, monografia,
dissertação, tese, capítulo de livro, livro, ensaio, artigo), considero o
trabalho muito bom quando a conclusão é robusta e costura de forma clara e
argumentativa as premissas, a metodologia e as limitações do modelo adotado de
investigação.
Dissertações e teses que finalizam com duas ou três
páginas demonstram uma análise rápida, superficial e incompetente. Estas
reprovo imediatamente. Não quero investigadores apressados, superficiais!
Se Moro fosse meu aluno, eu o teria reprovado com
esta sentença ridícula e persecutória. Mal disfarçou sua pressa em liquidar sua
vítima.
Em relação a outro personagem, o também vendedor de
palestras Deltan Dallagnol, há muito o que se dizer. Angariou um título de
doutor honoris causa numa faculdade privada cujo dono está sendo
processado por falcatruas que o MP deveria investigar.
O promotor Dallagnol não seguiu uma única oitiva das
testemunhas de defesa e acusação de Lula, além daquela do próprio
ex-presidente.
Eu trabalho em pós-graduações stricto sensu
de duas universidades públicas: uma em Maringá e outra em Ponta Grossa. Graças
a isso fui contactado por meio de um coletivo para averiguar a dúvida sobre a
compra por parte de Dallagnol de apartamentos do Programa Minha Casa Minha Vida
em condomínio próximo à UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa).
Visitei os imóveis guiado por uma corretora e me
dirigi ao Cartório de Registro de Imóveis da cidade. Após algumas semanas, a
resposta: os dois apartamentos modestíssimos, destinados a gente pobre, tinham
sido adquiridos pelo Promotor e estavam à venda com um lucro líquido em menos
de um ano de aquisição de 135 mil reais.
Reuni o material e disponibilizei para a imprensa
livre (aqui
a matéria do DCM). O promotor teve que admitir que comprou os apartamentos
para ganhar dinheiro na especulação imobiliária, sem resquícios de culpa ou de
valores morais em ter adquirido imóveis destinados a famílias com renda de até
R$ 6.500,00 (Deltan chegou a ganhar mais de R$ 80.000,00 de salários – além do
teto constitucional, de cerca de R$ 35.000,00; e mais de R$ 220.000,00 em suas
suspeitosas palestras).
Bom, analisando os discursos de Dallagnol, notamos
claramente a carga de preconceito que o fez construir uma “doutrina” de nome
exótico, o “explanacionismo”, para obter a condenação de um acusado sem prova
de crime.
Chega a usar de forma cosmética uma teoria de
probabilidade – o bayesianismo – que ele nem sequer conhece ao defender a
relativização do conceito de prova: vale seu auto-de-fé a qualquer
materialidade de prova, corrompendo os princípios basilares do Direito.
Como meu aluno, ou candidato a uma banca de defesa,
eu também o teria reprovado: apressado, superficial e sem argumentação lógica.
Resumindo: Dallagnol e Moro ainda vestem fraldas na
ciência do Direito. São guiados por preconceitos e pela cegueira da política
sobre o Jurídico.
Quando tornei-me professor titular aos 38 anos, eu o
fiz baseado numa obra maturada em dezenas e dezenas de artigos, livros,
capítulos, orientações de estudantes e coordenações de projetos de pesquisa.
Infelizmente, estes dois personagens de nossa
República contemporânea seriam reprovados em qualquer universidade séria por
apresentar teses tão esdrúxulas, pouco argumentativas e vazias de provas. Mas a
“Justiça” brasileira está arquitetada sobre o princípio da incompetência, da
vilania e do desprezo à Democracia.
Neste contexto, Moro e Dallagnol se consagram como
“heróis” de papel que ficariam muito bem sob a custódia de um Mussolini ou de Roland Freisler, que era o presidente do Volksgerichtshof, o
Tribunal Popular da Alemanha nazista. Estamos sob o domínio do medo e do
neo-integralismo brasileiro.
*Professor titular da
Universidade Estadual de Maringá e autor do livro “Do Infinito, do Mínimo e da
Inquisição em Giordano Bruno”, entre outras obras
Justificando, 22/07/17
A (in)competência do juiz Sérgio Moro no processo do triplex
Por
Rodrigo Medeiros da Silva
Todavia, há uma controvérsia que merece especial atenção: a competência do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba. Não se trata de uma manifestação com cunho de crítica sistemática ao magistrado que ocupa a titularidade daquele órgão jurisdicional, mas de um texto que analisa questões unicamente jurídicas, afastando-se de paixões políticas ou adesões meramente ideológicas.
A defesa de Lula arguiu a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba baseando-se em três pontos controvertidos: a alegação de incompetência para apuração dos crimes de corrupção passiva, a alegação de incompetência para apuração dos crimes de lavagem de dinheiro e a alegação de incompetência para julgar crimes cometidos contra sociedades de economia mista. Este texto fica com este último aspecto.
A competência dos órgãos do Poder Judiciário é abordada, originariamente, na Constituição. Quanto às Varas da Justiça Federal, tal matéria é estabelecida no artigo 109 do Constituição da República. Da leitura do artigo, pode-se concluir que a competência da Justiça Federal é definida em ratione personae, por envolver interesse da União como parte autora, ré ou terceiro interveniente.
O inciso IV, do mesmo artigo, define a competência em matéria criminal para estabelecer que aos juízes federais cabe processar e julgar as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Pode-se perceber que o constituinte buscou tutelar bens jurídicos essencialmente públicos, resguardando o patrimônio da União. Não é o caso do processo que envolve o ex-presidente. A Petrobras é uma sociedade de economia mista, possuindo capital aberto. Portanto, é uma pessoa jurídica de direito privado na qual o Estado exerce uma atividade econômica como se particular fosse. É o que estabelece o artigo 5º, inciso III, do Decreto-Lei nº 200/67. A sociedade de economia mista é uma sociedade anônima, com títulos negociados em bolsa de valores.
Portanto, não se pode falar de competência da Justiça Federal já que a Constituição não contempla a proteção de bens jurídicos de titularidade das sociedades de economia mista. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já assentou entendimento nesse viés:
A presença de sociedade de economia mista em procedimento investigatório não acarreta, por si só, na presunção de violação de interesse, econômico ou jurídico, da União. Para adequada definição de atribuições entre o MPF e o Ministério Público estadual impõe-se, em conformidade com o art. 109, I e IV, da CF, a adequada delimitação da natureza cível ou criminal da matéria envolvida. (ACO 979, rel. min. Ellen Gracie, j. 4‑8‑2011, P, DJE de 23‑8‑2011.) [1]
Contudo, a decisão do magistrado afastou a alegação da incompetência, assim fundamentando:
- A competência é da Justiça Federal.
- Segundo a denúncia, vantagens indevidas acertadas em contratos da Petrobrás com o Grupo OAS teriam sido direcionadas ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em razão de seu cargo.
- Não importa que a Petrobrás seja sociedade de economia mista quando as propinas, segundo a acusação, eram direcionadas a agente público federal.
- Fosse ainda Luiz Inácio Lula da Silva Presidente da República a competência seria do Egrégio Supremo Tribunal Federal.
- Não mais ele exercendo o mandato, a competência passa a ser da Justiça Federal, pois, como objeto da denúncia, tem-se corrupção de agente público federal. (sem grifo no original) [2]
Além disso, menciona o juiz que se Lula estivesse exercendo o cargo de Presidente da República, a competência seria do Supremo Tribunal Federal. Ora, nesta hipótese a Constituição não deixa dúvida quanto ao foro por prerrogativa de função – artigo 102, inciso I, alínea “b”, da Constituição. Mas como não mais exerce o cargo, a competência seria, então, da Justiça Federal de primeira instância. Assim, a 13ª Vara Federal de Curitiba passou a analisar todos os casos que envolvem a Petrobrás. Um absurdo!
O juiz alega que “Há todo um contexto e que já foi reconhecido pelo Tribunal de Apelação e pelos Tribunais Superiores de que esses casos são conexos e demandam análise conjunta, por um mesmo Juízo, sob risco de dispersão da prova.” [3] O que seria esse contexto que levaria ao estabelecimento da competência pela conexão? Não se pode alegar a ocorrência de conexão já que a competência da Justiça Federal é constitucionalmente definida e não admite aplicação do Código de Processo Penal. Não há conexão entre os crimes mencionados na sentença.
O juiz Sérgio Moro considerou que o juízo da 13ª Vara Federal “tornou-se prevento para estes casos, pois a investigação iniciou-se a partir de crime de lavagem de dinheiro consumado em Londrina/PR e que, supervenientemente, foi objeto da ação penal 5047229-77.2014.404.7000”. É salutar lembrar que a prevenção ocorre quando há concorrência de dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo. Absolutamente descabida, portanto, a alegação de prevenção, diante da leitura do artigo 83 do Código de Processo Penal.
Neste rumo, a sentença que condenou Luiz Inácio Lula da Silva à reprimenda de 9 anos e seis meses de reclusão é pródiga em heresias jurídicas.
Abordou-se somente o ponto relativo à incompetência do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba. Ressalta-se que após a decisão de Moro ser divulgada pela mídia, os comentaristas políticos eram uníssonos ao abordar uma possível inelegibilidade de Lula, chegando até a entrevistar o Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região a respeito do tempo de tramitação da apelação a ser interposta naquela Corte.
Portanto, há uma verdadeira guerra jurídica (lawfare) contra Luiz Inácio Lula da Silva. Infelizmente o Direito está sendo utilizado como instrumento de disputa política. Pratica-se, assim, o Direito Penal do autor. Não interessa o fato imputado, mas a quem é imputado.
O alvo não é a lavagem de dinheiro e a corrupção passiva. O alvo tem um só nome: Luiz Inácio Lula da Silva.
*Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas.
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. 5. ed. atual. até a EC 90/2015. — Brasília: STF, Secretaria de Documentação, 2016, p. 1061-1062.
[2] Disponível em http://media.folha.uol.com.br/
[3] Disponível em http://media.folha.uol.com.br/
http://justificando.cartacapit
Justificando, 22/07/17
Os crimes de Moro contra Lula
Por Márcio Sotero Felippe
Concluído em primeira instância o “processo do tríplex”, de fato constata-se que crimes foram cometidos. Os do juiz. Sobre os imputados ao réu nada se pode dizer.
Trata-se de lawfare. A aniquilação de um personagem político pela via de mecanismos judiciais. A série de episódios grotescos que caracterizou a jurisdição nesse caso não deixa qualquer dúvida a respeito. Só o fato de o processo entrar para o imaginário social como um combate “Moro vs. Lula” evidencia o caráter teratológico da atuação do magistrado. Moro cometeu crimes, violou deveres funcionais triviais, atingiu direitos e garantias constitucionais do réu, feriu o sigilo de suas comunicações, quis expô-lo e humilhá-lo publicamente, manteve-o detido sem causa por horas, revelou conversas íntimas de seus familiares.
Vejamos, nessa perspectiva, algumas das arbitrariedades cometidas pelo juiz e aspectos da decisão. O reconhecimento da validade dessa sentença pelos Tribunais superiores será a mais contundente evidência de que vivemos um estado de exceção e a Constituição é hoje um inútil pedaço de papel.
Violação do sigilo telefônico
A Constituição de 1988 estabelece o sigilo das comunicações como direito e garantia fundamental no artigo 5º., inciso XII: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. ”
Há duas condições para que se possa violar uma comunicação telefônica: (i) ordem judicial; (ii) para investigação criminal ou instrução criminal penal. A ressalva está regulamentada na Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, que, em seu artigo 10, dispõe que “constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. A pena prevista é de dois a quatro anos de reclusão e multa.
Moro havia determinado escutas telefônicas de linhas utilizadas pelo ex-presidente Lula. No dia 16 de março de 2016, às 11h13, suspendeu a medida e comunicou à Polícia Federal. O diálogo entre Lula e Dilma foi captado às 13:32hs, quando já não estava em vigor a medida. Moro recebeu a gravação e às 16:21hs é registrado o despacho em que levantou o sigilo e tornou pública a conversa entre a presidenta e o ex-presidente, em seguida divulgada pela Rede Globo.
A conduta enquadra-se rigorosamente no que prevê como crime a Lei 9.296/96. A gravação já não estava mais coberta pela autorização judicial e não havia objetivo autorizado por lei. O dolo foi específico e completamente impregnado de interesse político. Lula havia sido nomeado ministro e tomaria posse no dia seguinte. A divulgação do áudio, naquele dia, por intermédio da Rede Globo, visou criar clima político para inviabilizar a investidura do ex-presidente. Moro utilizou-se criminosa e indignamente da toga para impor a Lula um revés político, tumultuar o país e criar clima para o impeachment da presidenta.
O ministro Teori Zavaski considerou patente a ilegalidade da divulgação da escuta. Neste caso a ilegalidade era evidentemente crime. O ministro, no entanto, absteve-se da conclusão, não só nesse momento, mas também, como seus pares, quando o assunto foi ao plenário do STF.
Abuso de autoridade
As hipóteses de condução coercitiva são taxativas no Código de Processo Penal. Pode ser determinada em dois casos, previstos nos artigos 218 e 260. Neste, quando o acusado não atender à intimação para o interrogatório. Naquele, quando a testemunha não atender à intimação.
Lula foi arrancado de sua casa ao alvorecer e levado ao aeroporto de Congonhas. O ex-presidente não era naquele momento (4 de março de 2016) réu e não havia sido intimado. Nunca houve uma explicação aceitável para ser conduzido ao aeroporto, dada a existência de múltiplas instalações da União na cidade de São Paulo em que poderia ser tomado o seu depoimento “sem tumulto” (explicação dada por Moro).
Pesa a suspeita de que a ideia era conduzi-lo a Curitiba. Pretendia-se um espetáculo midiático (a imprensa fora avisada) com o perverso conteúdo de uma humilhação pública do ex-presidente. Lula foi privado por seis horas de sua liberdade. Tanto se tratou de violação à garantia constitucional da liberdade individual quanto de abuso de autoridade, como previsto no art. 4º, letra “a”, da Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965: ‘constitui também abuso de autoridade (…) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder. ”
Grampo no escritório dos advogados de Lula
Todos os telefones do escritório de Advocacia Teixeira Martins foram grampeados. Roberto Teixeira, notório advogado de Lula, é o titular do escritório. A operadora Telefônica comunicou a Moro que se tratava de escritório de advocacia. A prerrogativa de sigilo na comunicação advogado – cliente é inerente ao direito de defesa. Moro escusou-se de forma que beirou a zombaria: não havia atentado para os ofícios da operadora em face do volume de serviços de sua Vara, dos inúmeros processos que lá correm. Ocorre que Moro tem designação exclusiva e cuida apenas dos processos da Lava Jato. Desse modo, ou confessou grave negligência ou mentiu. Negligência que nunca se viu quando se tratava de matéria da acusação.
A corrupção passiva
O fato pelo qual Lula foi condenado pode ser assim sintetizado. Segundo a acusação, a OAS, responsável por obras em duas refinarias da Petrobrás, distribuía propinas a diretores da estatal e agentes políticos. Teria cabido a Lula vantagem auferida basicamente por meio da diferença de preço entre um apartamento simples e um tríplex em um edifício situado no Guarujá, diferença que somaria R$ 2.429.921,00. Por isso Lula teria incorrido no crime de corrupção passiva, que consiste, de acordo com o artigo 317 do Código Penal, em “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.
A condenação somente se justificaria se demonstrado que Lula tinha o domínio do que ocorria na Petrobrás. Que consentiu, aderiu, participou e que houve prática de ato de ofício recompensado pelo apartamento do Guarujá. Recorde-se que Collor foi absolvido exatamente porque não demonstrada a prática do ato de ofício no crime de corrupção passiva.
Nada foi provado. Não há o mais remoto indício de prática de ato de ofício ou do domínio do que acontecia no âmbito da estatal. Essa fragilidade Moro tentou, em vão, compensar com confissões informais (não houve o acordo formal de delação premiada) dos corréus da OAS, particularmente Leo Pinheiro. Após negar, em uma primeira delação, a participação de Lula no esquema das propinas, Pinheiro mudou seu depoimento quando foi preso por Moro. Viu a oportunidade de conseguir benefícios dizendo para Moro o que todo mundo sabia que Moro queria ouvir. Embora condenado a mais de trinta anos também em outro processo, teve suas penas unificadas para dois anos e seis meses de reclusão.
Lavagem de dinheiro
Está tipificada no artigo 1º. da Lei 9.613/98: “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. O fato de o apartamento constar em nome da OAS, sendo supostamente Lula o “proprietário de fato” – a alegada vantagem pelo ato de ofício jamais praticado – ensejou a condenação por lavagem de dinheiro.
O entendimento de que o próprio autor do crime antecedente pode ser sujeito ativo da lavagem de dinheiro, embora tenha adeptos, é insustentável. É parte da sanha punitivista que nos assola. Destaca-se parte do “iter criminis” para torná-lo outro crime.
Os verbos que são o núcleo do tipo, ocultar ou dissimular, são inerentes ao crime antecedente. Ninguém comete algum crime sem cuidar de não expor o seu produto para que possa obter a vantagem que o moveu. Ninguém furta, por exemplo, um automóvel para desfilar ostensivamente com ele pelas ruas da cidade. A ocultação ou dissimulação é meio para o exaurimento do crime, apropriação final da vantagem. Portanto, punir o próprio autor do crime por meramente ocultar ou dissimular é punir duas vezes pelo mesmo fato, o chamado “bis in idem”.
Mesmo que se admita que o próprio sujeito ativo do crime antecedente possa ser sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro, seria necessária uma segunda conduta para tornar aproveitável o fruto do crime. No julgamento da AP 470, o mensalão, vários ministros se pronunciaram nesse sentido. Pela síntese e clareza tomo uma passagem do ministro Barroso:
“O recebimento por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma da lavagem de dinheiro. Para caracterizar esse crime autônomo seria necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida” [1]
Indeterminação da data dos fatos e prescrição
Moro em nenhum momento estabelece em que data exata teriam se dado os fatos. Isso é indispensável para verificar a consumação e a consumação é o marco inicial da prescrição. Lula tem hoje mais de 70 anos, o que reduz à metade os prazos prescricionais. Como aferir a prescrição?
Tudo isto é típico lawfare. A destruição do inimigo político por meio de um processo aparentemente legal.
Moro não é um juiz solitário e temerário perseguindo um personagem político. O lawfare somente chegou a esse ponto porque ele tem endosso, cobertura e cumplicidade por parte dos Tribunais superiores, inclusive do STF, que, entre outras coisas, se omitiu diante do crime de violação do sigilo da comunicação telefônica (Teori não se deteve sobre o assunto quando o tema foi a plenário, assim como seus pares). Com isso recebeu “licença para matar”.
No TRF-4, o relator da representação contra Moro pela violação do sigilo telefônico socorreu-se de Carl Schmitt, o príncipe dos juristas nazistas, para abrigar o fundamento de que se tratava de uma situação excepcional, negando assim eficácia aos direitos e garantias constitucionais do ex-presidente.
Moro tem a cobertura favorável da grande mídia, que fez dele no imaginário popular o santo guerreiro combatendo o dragão da maldade.
Moro participou, consciente, deliberadamente, do golpe do impeachment. A divulgação do áudio da conversa entre Lula e Dilma ilegalmente, entregue para a Rede Globo no dia imediatamente anterior à posse de Lula como ministro, não podia ter outro objetivo.
Importa, sobretudo, concluir que não estamos mais em uma democracia. O que temos, com os preparativos e a consumação do impeachment, é uma ditadura de novo tipo, que preserva enganosamente as instituições políticas e jurídicas clássicas do Estado liberal e democrático, mas esvazia-as do real conteúdo democrático (o que o jurista e magistrado Rubens Casara vem denominando pós-democracia). Nesta ditadura de novo tipo, o que antes se fazia pela força das armas e pela violência para destruir o adversário político agora se faz pelo lawfare. Nisto, o Judiciário, que nas antigas ditaduras tinha um papel acessório, de coadjuvante, torna-se o protagonista da violência estatal ilegítima. Antes era um soldado ou policial que na calada da noite destruía o cidadão. Agora é uma sentença à luz do dia.
*Pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
[1] Apud Bottini, Pierpaolo, em http://www.conjur.com.br/2015-
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