UOL, 22/07/17
Dona de bordel vira tema de estudo em universidade
federal: "Caridosa e odiada"
Por Mário
Bittencourt, em Vitória da Conquista (BA)
Habitualmente, as quartas-feiras são tímidas no bordel de Cabeluda, em Cachoeira,
cidade do Recôncavo Baiano situada a 110 km de Salvador. Mas, no dia 5 de
julho, o movimento foi fora do normal. Enquanto um homem saía de um dos
quartos, ainda se arrumando, muitas outras pessoas iam entrando, até não caber
mais ninguém no local. A maioria carregava um smartphone na mão, registrando o
que podia.
Cabeluda, que é a dona e dá nome ao estabelecimento, estava toda
produzida, com roupas novas e de cabelos grisalhos bem penteados, cercada de
pessoas queridas. Afinal, para a cafetina
de 73 anos, era um momento especial:
ela e o mais famoso bordel da região, há mais de 40 anos em atividade,
entrariam na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano).
Não como aluna nem como funcionária, mas como tema da dissertação de mestrado em ciências sociais da historiadora e pesquisadora baiana Gleysa Teixeira Siqueira. O local, onde doutores da academia avaliavam o projeto de mestrado, foi por décadas alvo do amor e da cólera da sociedade de Cachoeira, cujo início do povoamento remonta a 1531.
A
dissertação "Uma História de Cabeluda: Mulher,
Mãe e Cafetina" foi a primeira defendida fora dos muros da
universidade, criada em 2005 pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT).
Alheia às
fragilidades da idade, Cabeluda ficou o tempo todo em pé, ao lado de Teixeira,
observando o que falavam sobre ela e sua casa, frequentada não só por quem
deseja sexo, mas também amizades.
Mulher de pouca leitura, a cafetina demonstra satisfação no que vê e
ouve por meio de expressões faciais, de onde brota um sorriso sincero. Durante
a pesquisa, baseada no método de história oral, a futura mestra coletou
depoimentos de parentes, amigos, amigos, vizinhos, autoridades, clientes,
atuais e ex-profissionais do sexo e da própria Cabeluda, cujo apelido decorre dos pelos que ela tem no corpo.
Aos parentes, Cabeluda diz que não esperava tanta gente nem repercussão na
mídia e se preocupa em como seus irmãos, que reviu recentemente, após 50 anos
separados, vão absorver a notícia sobre o que fez durante todo esse tempo no
"brega".
Brega é um
termo regional no Nordeste que significa boate, casa noturna ou de
prostituição. Também é como Cabeluda e suas moças reconhecem o
local onde habitam, trabalham, trocam experiências de vida e possuem laços
sociais em comum, fazendo daquele espaço um território.
Casa de tolerância, prostíbulo, puteiro e cabaré são sinônimos que
muitas vezes carregam em si a carga do preconceito e da marginalização de
pessoas que escolheram explorar o próprio corpo como forma de ganhar a vida.
Usar o
termo negativo para torná-lo motivo de orgulho
"Apesar de não ser considerado assunto de interesse da política e
da cultura, o brega faz parte da cultura local. O termo local é brega. Na
antropologia, a gente valoriza como as pessoas chamam o modo como se
reconhecem", disse o antropólogo e
doutor em ciências sociais Osmundo Santos de Araújo
Pinho, orientador da pesquisa sobre Cabeluda.
"Ativistas,
como Gabriela
Leite, falam delas como putas.
Grupos estigmatizados buscam assumir o termo usado como ofensa para
positivá-los. É como o negro, que hoje tem motivo de orgulho em ser chamado
assim", completou.
O professor, que teve a ideia de a dissertação ser
defendida no brega de Cabeluda, observou que o trabalho serviu para mostrar a ambiguidade reinante ainda na sociedade
quando se fala em sexualidade.
"É
visto como algo marginal, obsceno, mas ao mesmo tempo tem um reconhecimento e
respeitabilidade, algo muito típico do Brasil. Ao mesmo tempo em que as putas são odiadas
pelas mães de famílias, elas têm a sua importância social reconhecida",
disse.
Diversas
pessoas de Cachoeira, por exemplo, direcionam elogios a Cabeluda por ela ser
uma pessoa generosa, que nunca negou aos outros um
prato de comida ou pedido de ajuda financeira em momentos de dificuldade.
Casada aos 13 anos, agredida e infeliz
A
distância da família ocorreu cedo: Cabeluda
viu-se obrigada a se casar aos 13 anos com um homem mais velho e de quem
apanhava.
Um dia se cansou da vida que não tinha e resolveu fugir de Itabuna (sul
da Bahia), terra natal do escritor Jorge Amado, que imortalizou em suas obras
personagens populares como Gabriela, Tereza Batista, Dona Flor e Tieta,
marcadas pela sexualidade e pela luta contra o machismo e a repressão social. A
história dessas personagens possui traços em comum com a de Cabeluda, que deixou a cidade onde nasceu e se criou com
pouco mais de 20 anos, sem levar consigo roupas ou documentos.
Primeiro, foi para Feira de Santana e depois aportou em Cachoeira,
município de 35 mil habitantes banhado pelo rio Paraguaçu. Encontrou uma cidade cuja economia estava em decadência,
devido a construções de estradas de rodagem e de ferrovias, tirando o local da
rota de escoamento da produção agrícola. Por séculos, o porto de Cachoeira foi
o principal ponto de escoamento para a Europa de toda a produção agrícola
regional, principalmente focada em cana de açúcar e tabaco.
Durante o apogeu econômico, foram construídos os cerca de 670 prédios de tendência neoclássica, hoje
tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional),
que deram à cidade o status de "monumento nacional".
Uma das heranças coloniais de Cachoeira, que foi elevada à cidade em 13
de março de 1837, por decreto imperial, é a religiosidade: são 50 terreiros de candomblé, além de igrejas católicas
diversas.
Quando
Cabeluda chegou a Cachoeira, na zona portuária havia resquícios dos tempos
áureos, da boêmia, com diversos bares e bregas próximos ao local.
Eles eram frequentados, sobretudo por viajantes e moradores da vizinha
São Félix, que fica do outro lado do rio, sobre a qual está a ponte Dom Pedro 2º, construída na época do
Império e uma das poucas no Brasil a ter a sua estrutura apenas em ferro
(importado da Inglaterra) e madeira.
Um dos
bregas mais famosos era conhecido como Guarani e também funcionava como casa de
hospedagem. Foi onde Cabeluda buscou guarita. Outro que tinha clientela certa
era o de Nenzinha, ambos situados na "rua do brega".
Cabeluda
ficou no Guarani por pouco tempo. Com ajuda de uma amiga, foi para a rua
Tavares, próxima à zona portuária, para abrir o negócio dela - atuava como profissional do sexo e cafetina ao mesmo
tempo.
"Havia
diversos bregas na cidade, aos poucos eles foram sumindo por causa da queda no
movimento, mas o de Cabeluda sobreviveu e hoje faz concorrência com outros
bregas menos famosos", conta a pesquisadora Gleysa Teixeira.
"Menina direita não podia andar na rua do
brega"
Assim
como toda criança nascida nos últimos 40 anos em Cachoeira, Gleysa, 33, cresceu
ouvindo conselhos para nunca chegar perto da rua do brega - e ainda mais de
Cabeluda.
"Quando
eu era pequena, tinha medo de passar pela rua do brega por causa do imaginário
social, da estigmatização do lugar. Sempre houve um discurso moralista contra o local, de que menina direita não pode andar
lá", conta Gleysa.
A ideia de pesquisar sobre a vida de Cabeluda veio ainda na graduação em história pela UFRB, quando o foco era sobre gênero feminino e classe trabalhadora. Foi amadurecida na especialização e posteriormente no mestrado.
"A
possibilidade de estudar a Cabeluda veio com o professor Antonio Liberac Simões Pires,
meu primeiro orientador num projeto de pesquisa. Ele me perguntou se eu teria
coragem e encarei o desafio de frente", lembra a pesquisadora.
O brega de Cabeluda, destaca Gleysa, representa um símbolo de
prostituição de Cachoeira, sendo a única
casa existente nos moldes antigos, onde a dona do local lucra apenas com o
aluguel do quarto, sem fazer a intermediação entre o cliente e a profissional
do sexo.
O movimento intenso é entre as noites de quinta e domingo, quando moças
de outras cidades da região vão para lá. A
relação entre a clientela e as profissionais é livre. O programa varia de R$ 30
a R$ 50, por meia hora. O aluguel do quarto, independentemente do valor do
programa, custa R$ 10.
O único problema é quando está cheio, pois o brega tem apenas três
cômodos e há dias em que estão na casa até 15 moças - no dia da defesa da
dissertação havia cinco delas presentes no local. O estudo de Gleysa abordou
também o empoderamento feminino e o patriarcado na sociedade cachoeirana,
marcada ainda hoje pelo pensamento colonial.
No
trabalho, a pesquisadora diz ter desconstruído a ideia que sempre ouviu na
infância, de que Cabeluda seria um problema social. "Ela é muito reconhecida pela sociedade, sobretudo pelas
obras de caridade que realiza. Ela sempre ajudou as pessoas, teve uma vida
discreta, nunca fez o mal para ninguém",
afirmou.
Preconceito,
caridade e reaproximação com a família
Cabeluda,
além das três filhas legítimas, acolheu
outros oito meninos, nascidos de mulheres que chegavam ao brega, saíam do
trabalho e apareciam com as crianças, que ficavam aos cuidados dela.
Uma das
filhas de Cabeluda é Natalícia Santana Mota. Com 43 anos, é a mais
velha. Seu depoimento foi um dos mais marcantes da pesquisa de Gleysa Teixeira.
Ao UOL, ela relatou o preconceito
sofrido na adolescência por conta de a mãe ter um brega: "Eu estudava numa
escola paroquial, tinha 16 anos. Um dia à tarde fui merendar na casa de minha
mãe com uma colega minha. Quando voltamos para a sala de aula, a professora
perguntou onde a menina estava e ela falou que tinha ido merendar comigo. A
professora, então, falou que no lugar que ela foi só tinha gente que não
prestava. Abaixei a cabeça e comecei a chorar, nunca me esqueço disso".
Em outra situação, ela estava andando na rua com uma amiga que ia fazer
primeira comunhão na Igreja Católica: "A mãe dela nos viu e disse bem alto, na frente de um monte de gente, que
não queria a filha dela andando com filha de prostituta". "Eu sofri muito, vivia só, não tinha
amizades. Quando fazia amizades e depois dizia que minha mãe era dona do brega,
se afastavam logo de mim."
Natalícia
estava na plateia no dia da defesa da dissertação, ocorrida poucos meses depois
de Cabeluda ter revisto dois irmãos deixados em Itabuna.
A
circunstância em que o encontro ocorreu foi por motivo de doença. Cabeluda havia sofrido um infarto e
precisou ser internada às pressas numa UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Só
que ela não tinha documentos de identificação.
Com ajuda
de amigos, o hospital aceitou que ela ficasse em observação até que os
documentos fossem providenciados, o que ocorreu dias depois de Natalícia ir até
Itabuna em busca de pistas dos familiares.
Conseguiu
encontrá-los após expor o problema em uma rádio local. Com os documentos,
Cabeluda passou alguns dias na UTI e foi liberada. O problema no miocárdio era
agravado pelo consumo de cigarro.
Cabeluda parou de fumar e foi ao encontro dos irmãos. As conversas que
tiveram não foram bem explicadas por Natalícia - ela preferiu não comentar nada
sem autorização de Cabeluda, que não
quis dar entrevista ao UOL. Pelo mesmo motivo, Teixeira e Natalícia preferiram
não falar o nome verdadeiro dela.
Professor defende a importância da apresentação no
brega
Sobre a escolha do brega para ser o local da defesa, o professor
justificou: "Na antropologia
contemporânea, não podemos tratar os interlocutores da pesquisa de campo como
meros objetos inertes, passivos ou apassivados". "Apresentar a dissertação no brega teve como um dos objetivos - talvez
o mais importante - demonstrar e discutir o resultado da pesquisa frente aos
interlocutores que outrora chamávamos de objetos de pesquisa."
Membros da bancada
A atitude, para o professor, "revela
a importância de aproximarmos a universidade pública da comunidade na qual ela
está inserida, e notadamente de setores excluídos, como as mulheres que
trabalham no negócio do sexo. Então, nesse sentido, essa foi a nossa proposta
despretensiosa, mas que acabou ganhando proporção maior do que
esperávamos".
A UFRB
informou que a escolha de locais de defesa de dissertação é de livre escolha
dos pesquisadores envolvidos.
Já a Polícia Civil declarou que a última
batida que fez no brega de Cabeluda foi em 2011, devido à procura por suspeitos
de tráfico de drogas que estariam frequentando o local. De lá para cá, não
houve mais registros.
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