Folha de São Paulo, 21/08/16
Cegueira e linchamento
Por Raduan Nassar
O inglês Robert Fisk, em artigo no jornal londrino 'The Independent', afirma que, segundo as duras conclusões do relatório Chilcot sobre a invasão do Iraque, o ex-primeiro ministro Tony Blair e seu comparsa George W. Bush deveriam ser julgados por crimes de guerra, a exemplo de Nuremberg, que se ocupou dos remanescentes nazistas.
O poodle Blair se deslocava a Washington para conspirar com seu colega norte-americano a tomada do Iraque, a pretexto
de este país ser detentor de armas de destruição em massa, comprovado
depois como mentira, mas invasão levada a cabo com a morte de meio
milhão de iraquianos.
Antes, durante
o mesmo governo Bush, o brutal regime de sanções causou a morte de 1,7
milhão de civis iraquianos, metade crianças, segundo dados da ONU.
Ao consulado que representava um criminoso de guerra, Bush, o então deputado federal Michel Temer (como de resto nomes expressivos do tucanato) fornecia informações sobre o cenário político brasileiro. "Premonitório", Temer acenava com um candidato de seu partido à Presidência, segundo o site WikiLeaks, de Julian Assange.
Não estranhar que o interino Temer, seu cortejo de rabo preso e sabujos afins andem de braços dados com os tucanos,
que estariam governando de fato o Brasil ou, uns e outros, fundindo-se
em um só corpo, até que o tucanato desfeche contra Temer um novo golpe e
nade de braçada com seu projeto de
poder - atrelar-se ao neoliberalismo, apesar do atual diagnóstico:
segundo publicação da BBC, levantamento da ONG britânica Oxfam, levado
ao Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro, a riqueza acumulada pelo 1% dos mais ricos do mundo equivale aos recursos dos 99% restantes. Segundo o estudo, a tendência de concentração da riqueza vem aumentando desde 2009.
O senador Aloysio Nunes
foi às pressas a Washington no dia seguinte à votação do impeachment de
Dilma Rousseff na exótica Câmara dos Deputados, como primeiro arranque
para entregar o país ao neoliberalismo norte-americano.
Foi secundado por seu comparsa tucano, o ministro das Relações Exteriores, José Serra, também interino-itinerante que, num giro mais amplo, articula "flexibilizar" Mercosul, Brics, Unasul e sabe-se lá mais o quê.
Além de comprometer a soberania brasileira, Serra atira ao lixo o protagonismo que o país tinha conseguido no plano internacional com a diplomacia ativa e altiva do chanceler Celso Amorim, retomando uma política exterior de vira-lata (que me perdoem os cães dessa espécie; reconheço que, na escala animal, estão acima de certos similares humanos).
A propósito,
o tucano, com imenso bico devorador, é ave predadora, atacando filhotes
indefesos em seus ninhos. Estamos bem providos em nossa fauna: tucano,
vira-lata, gato angorá e ratazanas a dar com pau...
Episódio
exemplar do mencionado protagonismo alcançado pelo Brasil aconteceu em
Berlim (2009), quando, em tribunas lado a lado, a então poderosa Angela Merkel, depois de criticar duramente o programa nuclear do Irã, recebeu a resposta de Lula: os detentores de armas nucleares, ao não desativá-las, não têm autoridade moral para impor condições àquele país. Lula silenciou literalmente a chanceler alemã.
Vale também lembrar o pronunciamento de Lula
de quase uma hora em Hamburgo (2009), em linguagem precisa, quando,
interrompido várias vezes por aplausos de empresários alemães e
brasileiros, foi ovacionado no final.
Que se passe à Lava Jato e a seus méritos, embora supostos, por se conduzirem em mão única, quando não na contramão, o que beira a obsessão. Espera-se que o juiz Sergio Moro venha a se ocupar também de certos políticos "limpinhos e cheirosos", apesar da mão grande do inefável ministro do STF Gilmar Mendes.
Por sinal, seu discípulo, o senador Antonio Anastasia, reproduz a mão prestidigitadora do mestre: culpa Dilma e esconde suas exorbitantes pedaladas, quando governador de Minas Gerais.
Traços do perfil de Moro foram esboçados por Luiz Moniz Bandeira,
professor universitário, cientista político e historiador, vivendo há
anos na Alemanha. Em entrevista ao jornal argentino "Página/12", revela:
Moro esteve em duas ocasiões nos EUA, recebendo treinamento. Em uma delas, participou de cursos no Departamento de Estado; em outra, na Universidade Harvard.
Segundo
o WikiLeaks, juízes (incluindo Moro), promotores e policiais federais
receberam formação em 2009, promovida pela embaixada norte-americana no
Rio.
Em 8 de maio, Janio de Freitas, com seu habitual rigor crítico, afirmou nesta Folha que "Lula
virou denunciado nas vésperas de uma votação decisiva para o
impeachment. Assim como os grampos telefônicos, ilegais, foram
divulgados por Moro quando Lula, se ministro, com sua experiência e
talento incomum de negociador, talvez destorcesse a crise política e
desse um arranjo administrativo".
Lula
não assumiu a Casa Civil, foi rechaçado no Supremo Tribunal Federal
pelo ministro Gilmar Mendes, um goleirão sem rival na seleção e, no
álbum, figurinha assim carimbada por um de seus pares, Joaquim Barbosa, popstar da época e hoje estrela cadente: "Vossa
Excelência não está na rua, está na mídia, destruindo a credibilidade
do Judiciário brasileiro... Vossa Excelência, quando se dirige a mim,
não está falando com seus capangas do Mato Grosso, ministro Gilmar".
Sugiro a eventuais leitores, mas não aos facciosos que, nos aeroportos, torciam o nariz ao ver gente simples que embarcava calçando sandálias Havaianas, que acessem o site Instituto Lula - o Brasil da Mudança.
Poderão dar conta de espantosas e incontestes realizações. Limito-me a destacar o programa Luz para Todos,
que tirou mais de 15 milhões de brasileiros da escuridão, sobretudo nos
casebres do sertão nordestino e da região amazônica. E sugiro o amparo
do adágio popular: pior cego é aquele que não quer ver.
A não esquecer: Lula abriu as portas do Planalto aos catadores de matérias recicláveis, profissionalizando-os, sancionou a Lei Maria da Penha, fundamental à proteção das mulheres, e o Estatuto da Igualdade Racial, que tem como objetivo políticas públicas que promovam igualdade de oportunidades e combate à discriminação.
Que o PT tenha cometido erros, alguns até graves (quem não os comete?), mas menos que Fernando Henrique Cardoso, que
recorria ao "Engavetador Geral da República", à privataria e a muitos
outros expedientes, como a aventada compra de votos para sua reeleição.
A corrupção, uma enfermidade mundial, decorre no Brasil do sistema político, atingindo a quase totalidade dos partidos. Contudo, Lula
propiciou, como nunca antes, o desempenho livre dos órgãos de
investigação, como Ministério Público e Polícia Federal, ao contrário do
que faziam governos anteriores que controlavam essas instituições.
A registrar ainda, por importante: as
gestões petistas nunca falaram em "flexibilizar" a CLT, a Previdência, a
escola pública, o SUS, as estatais, o pré-sal inclusive e sabe-se lá
mais o quê, propostas engatilhadas pelos interinos (algumas levianamente
já disparadas), a causar prejuízo incalculável ao Brasil e aos
trabalhadores.
Sem vínculo com qualquer partido político, assisto
com tristeza a todo o artificioso esquema de linchamento a que Lula vem
sendo exposto, depois de ter conduzido o mais amplo processo de
inclusão social que o Brasil conheceu em toda a sua história.
RADUAN
NASSAR, escritor, autor dos livros "Lavoura Arcaica" (1975), "Um Copo
de Cólera" (1978) e "Menina a Caminho e Outros Textos" (1997). Recebeu
neste ano o Prêmio Camões, principal troféu literário da língua
portuguesa.
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