Brasil 247, 17 de agosto de 2016
Lula, Dilma e a boa fé de Moro
Por Paulo Moreira Leite
Dias depois de o juiz
Sérgio Moro ter dito no Congresso que provas ilícitas poderiam ser válidas numa
investigação caso tivessem sido obtidas "de boa fé", o país tem uma
boa oportunidade de passar a limpo a aplicação prática de um conceito tão subjetivo.
Autorizada
ontem pelo ministro Teori Zavaski, do STF, a investigação sobre a denuncia de
que Lula e Dilma agiram em conjunto para obstruir uma investigação da Lava Jato
tem como base uma questão de fé.
Se é boa
fé, má fé, ou zero fé, não é difícil responder.
Como os
brasileiros devem se recordar, a base dessa investigação reside numa prova
ilícita - um diálogo gravado em março entre a presidente da República e o
próprio Lula, quando os dois acertavam detalhes burocráticos para a posse do
ex-presidente como ministro chefe da Casa Civil. A Polícia Federal não
tinha autorização para gravar a president
a
da República, o que só poderia
ocorrer com autorização do Supremo. Mesmo que o grampo tivesse sido
autorizado em algum momento da investigação, aquela a gravação Lula x
Dilma não poderia ter sido feita - pois o diálogo ocorreu quando a
autorização já havia expirado. Pior. Em nenhum dos casos, o teor dos diálogos
poderia ter sido divulgado, obviamente. Comprovada sua ilegalidade, o grampo
deveria ter sido destruído, manda o regulamento da Polícia Federal.
Há muitos
tipos de fé envolvidos nesta questão, não é mesmo?
Uma pessoa
de boa fé dificilmente deixaria de admitir que, ao atrair para seu
governo o mais popular presidente da história republicana, responsável
inclusive por suas duas eleições, Dilma nada mais pretendia do que reforçar a
equipe que, nas semanas seguintes, iria enfrentar a prova decisiva de sua
sobrevivência: a caça de votos no processo do impeachment.
Você pode
pensar o que quiser de Lula. Mas apenas uma pessoa de má fé não consegue
enxergar suas qualidades extraordinárias para desempenhar o papel. Na dúvida,
consulte a maioria dos brasileiros. Ou Abílio Diniz, Henrique Meirelles, Barack
Obama. Pergunte a sindicalistas que, naqueles dias, foram à porta das fábricas
para saber o que ela achava da presença de Lula no governo.
Cabe
reconhecer, ainda, um ponto essencial. A leitura do diálogo nunca foi uma
demonstração de conluio. Ao contrário do que se sugeriu, em reportagens que
copiavam o estilo de radionovelas, ao assinar o termo de posse Lula não se
tornaria automaticamente ministro de Estado. O documento só teria valor oficial
depois que fosse levado de volta para Dilma e assinado por ela, a presidenta da
República, o que só ocorreu na cerimônia de posse no Planalto, no dia seguinte,
em presença do próprio Lula.
A melhor
prova de que Dilma agiu de boa fé, neste caso, foi produzida nas semanas
seguintes. Mesmo depois que a posse na Casa Civil foi impedida, num ato (de boa
fé?) do ministro Gilmar Mendes, do STF, Lula continuou em atividade permanente
para tentar ampliar a base de apoio da presidente. Fez exatamente aquilo que se
dizia que não iria fazer, como demonstram as dezenas de reuniões e encontros
realizados na época nos aposentos de um hotel em Brasília, descritas em tom de
atividade suspeita pelos jornalistas que tentavam montar um cirquinho
para o golpe. Mesmo produzidas em clima de má fé e denúncia, as reportagens
sobre esses encontros são a prova de que Lula fazia o que sempre disse que iria
fazer - como há de concordar toda pessoa de boa fé.
Sérgio Moro
age como um magistrado convencido de que ele só foi convidado para o ministério
porque queria salvar a própria pele, ameaçada por uma denúncia - que ainda não
fora feita - do senador Delcídio Amaral - que acabara de fazer sua própria
delação premiada - que fatalmente o levaria para a prisão, recurso fácil no
Brasil da Lava Jato e das preventivas ao gosto (ou da fé) do freguês na maioria
das cadeias brasileiras.
Antes mesmo
de ter reunido fatos e provas do caso, Moro já agia como se estivesse
absolutamente convencido da culpa de um cidadão que nem réu havia se tornado.
Na prática,
o que se fez foi impedir que Lula tivesse acesso ao chamado "foro de
função," regra jurídica que permite a presidentes, ministros de Estado,
senadores e deputados federais que sejam julgados pelo STF. Você pode concordar
ou discordar dessa regra. Considerando que se trata de uma previsão
constitucional, convém que seja cumprida. A carta maior não pode ser flexibilizada
conforme a fé - religiosa? política? boa? má? - de cada momento.
Desde então
Lula passou a ser tratado como um criminoso a espera de uma prova,
situação que só é aceitável num universo político-jurídico que ignora a
presunção da inocência, princípio destinado a impedir uma selvageria bem
descrita por Eros Grau, ministro do STF entre 2004 e 2010. Sem a presunção de
inocência, argumentou o ministro, "é melhor sairmos com um porrete na mão,
a arrebentar a espinha dorsal de quem nos contrariar."
Numa
decisão correta, o ministro Teori Zavaski terminou por anular as gravações que
poderiam sustentar a denuncia. Mas Teori não determinou que, sem provas, o caso
fosse arquivado. Perguntou ao PGR Rodrigo Janot se havia motivo para
prosseguir, mesmo assim. Foi uma pergunta na fé categoria discutível, digamos
assim.
Isso porque
o PGR deixou de ser um personagem isento no caso depois que também foi atingido
pelos grampos divulgados por Sérgio Moro, num exemplo clássico de que palavras
ditas em privado tem um significado determinado, que pode alterar-se
inteiramente quando se tornam públicas. Num diálogo com o advogado Sigmaringa
Seixas, Lula se queixa do PGR. Em tom de sarcasmo, lembra que naqueles dias
Janot "tinha arquivado a quarta denúncia contra Aécio e aceito a primeira
feita por um bandido contra mim."
Na mesma
conversa, Lula comenta: "essa é a gratidão dele por ter sido
procurador". A afirmação recordava que, em busca de apoio para ser o
primeiro na lista de procuradores, e assim ter cacife para ser indicado PGR,
Janot havia se mobilizado atrás do voto de colegas próximos do Partido dos
Trabalhadores, a tal ponto que José Genoíno, já acusado na AP 470, chegou a
participar de um evento de apoio a candidatura Janot. Após a divulgação dos
grampos, o PGR disse num primeiro momento que não se opunha a nomeação de
Lula para o ministério, mesmo questionando o foro de função que poderia
exercer. Mais tarde, quando a repercussão do diálogo se tornara assunto
obrigatório nos meios jurídicos, criando uma situação obviamente
constrangedora, Janot divulgou um segundo parecer. Condenou a indicação e até
apontou para uma certa "sofreguidão" de Lula em assumir o ministério.
Assistimos,
assim, um caso em que provas ilícitas seguem sendo a base de uma denúncia. O
fato de serem anuladas não passa de uma formalidade, pois é a lembrança
permanece na mente de todos.
Se eu
tivesse o talento de Nelson Rodrigues, tudo estaria resolvido numa pergunta: um
marido traído irá esquecer fotos da mulher em cena de adultério depois que elas
foram rasgadas e picotadas? Irá pensar o casamento a partir do zero, só porque
lhe disseram que as imagens não poderiam ter sido feitas?
Era, como se pode
perceber, uma questão de fé. Boa fé? Má fé? A favor de quem?
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