Jornal da AEPET, 30/08/16
Os sujos e os mal-lavados
Por Roberto Amaral
Por que a gritaria de hoje?
Festa acabada, músicos a pé, diz
conhecido provérbio português. Vencida a quinzena olímpica e amortecido
por horas o complexo de vira-lata, o país, mal refeito da ressaca
cívica, se reencontra com seu drama cotidiano: a degradação da política,
magnificando todos os nossos problemas, expondo nossas misérias sob
lente de aumento.
E não sem razão – mais uma ironia da
história? – seu epicentro se encontra em Brasília e se instala no Senado
Federal onde ínclitos pais-da-pátria como Cristovam Buarque e Romero
Jucá (antigos colegas de Luiz Estevão, Demóstenes Torres e Delcídio do
Amaral) se aprestam a consagrar o defenestramento da presidente Dilma
Rousseff, que, dentre muitas incompatibilidades com o trato parlamentar,
tem a de ser, ou haver sido, pouco indulgente com as vaidades e os
pleitos grandes e pequenos e quase sempre pouco republicanos de nossos
Brutus.
A Câmara Alta está atenta ao clamor dos
interesses dos rentistas da avenida Paulista e suas adjacências; assim,
dos capitães do agronegócio voltados para a renovação anual das anistias
de débitos com os bancos oficiais. Seus nervos sensíveis captam as
apreensões das multinacionais ante o risco de o Brasil persistir em ter
para si e seu povo os recursos do pré-sal. Suas antenas auscultam os
sempre atendidos interesses do atraso tão bem representados pela
conjunção formada pelas bancadas da bala, do boi, da bíblia (leia-se
neopentecostais) e dos bancos, afinal vencedores e governantes, após
haverem sido rejeitados, quatro vezes, pela manifestação eleitoral, a
única legítima nas democracias.
Mas essa tragédia é, tão-só, uma das
muitas manifestações da degradação geral que pervade, como erva daninha,
como cupim que lavra madeira de má qualidade, as instituições que
sustentam nossa República sereníssima e nossa jovem e injusta
democracia. Não se trata, pois, de simples acaso o encontro da
decomposição ética, política e representativa do Poder Legislativo (de
que é simbólico o fato de o presidente da Câmara Federal haver sido, até
bem pouco tempo, o ainda deputado Eduardo Cunha), com a degradação do
Poder Executivo, chefiado por um político sem voto e sem honra de que se
despedem todos os perjuros.
Grita em manchete de primeira página a
Folha de S. Paulo do dia 25 deste agosto, data de instalação do
justiçamento da presidente Dilma: “Temer diz ter votos para o
impeachment” e o novo presidente da Câmara dos Deputados, áulico do
titular afastado por corrupção, anuncia o adiamento do julgamento do
correntista suíço, que assim vai fugindo do processo que visa à cassação
de seu mandato.
Os poderes degradados se abraçam ao
Poder Judiciário, de cuja decadência (que a todos deve assustar) fala
alto a lamentável circunstância de seu mais notório e destacado membro
(ministro do STF e presidente do TSE) ser useiro e vezeiro em agredir o
Código de Ética da Magistratura, pertinaz na antecipação de julgamento
de processos, notório serviçal de uma sigla partidária, empresário
conhecido do ensino privado-comercial. É o mesmo Mendes que reteve por
quase dois anos decisão do STF sobre a proibição do financiamento
empresarial das campanhas eleitorais, que defende com unhas e dentes. É o
mesmo que condena a chamada ‘lei da ficha limpa’ que o Tribunal que em
má hora preside terá de fazer respeitada.
Trata-se, o Judiciário, de poder que não
julga, que abriu mão da isenção e da imparcialidade, amante dos altos
salários, dos convescotes e das vilegiaturas. Esse poder Judiciário,
desde os Moros ao ministro Mendes, está assumidamente a serviço da
sociedade de classe e nela é instrumento de uma fração da classe
dominante, esta que, à margem da soberania popular, está prestes a
consolidar-se como senhora da República.
Entre os poderes, como se fosse um
deles, planeta solitário em seu próprio e imaginário sistema,
circunavega o Ministério Público, esse exótico ‘quarto poder’ (como a
mídia monopolizada), reinante numa ordem constitucional que só conhece
três.
Talvez seja este o momento mais crucial
dessa crise que vem de longe, pois não há esperança de boa saúde para
uma sociedade sem Poder Judiciário confiável.
Este último traço salta à vista na série
de irregularidades que vieram à tona com o vazamento, para a mídia de
sempre, para a revisa de sempre, de uma pré-delação premiada ditada para
membros do MPF, em termos e sob condições desconhecidas, por um
empreiteiro interessado em trocar anos de prisão por denúncias contra
quem quer que seja. Desse vazamento resultou a resposta encrespada do
líder do STF e, no mesmo e lamentável tom, a resposta do chefe do MPF,
falando para seu público interno, e tomando suas dores.
Desses vazamentos, dos vazamentos
passados, são, reconhecidamente, responsáveis ora membros inominados do
MPF, ora agentes da Polícia Federal, ora mesmo juízes de direito, como o
notório Sérgio Moro, este agindo principalmente no episódio do grampo
criminoso que registrou diálogos entre a presidente Dilma e o
ex-presidente Lula e, ainda criminosamente vazados, repito, pelo juiz
Sérgio Moro.
É justificada a estranheza diante da
inesperada sensibilidade de ministro e procuradores. Ora, desde seu
primeiro dia, a Operação Lava Jato é cediça no vazamento selecionado de
delações, que violenta direitos. Até aqui sob os aplausos da mídia, o
silêncio do Conselho Nacional de Justiça (e por silente, cúmplice), a
omissão do Conselho Nacional do Ministério Público. Não há registro de
qualquer iniciativa, seja do STF, seja do MPF para apurar essas
irregularidades que alimentam os escândalos e movem a Lava Jato e seus
justiceiros que tudo se permitem porque se dizem e se julgam portadores
de uma missão divina: salvar o país da corrupção.
Essa é, porém, história passada. Pois,
não mais que de repente, o STF se viu cobrado em seus brios e o
procurador Rodrigo Janot partiu em defesa de seus colegas de
corporativismo. Foram todos para a mídia (em busca de seus minutos,
horas, dias de vedetes), a grande imprensa que deles se alimenta cevando
as vaidades de quem deveria preservar a imagem das instituições que
simbolizam, e – praz aos céus! –, trocaram mútuas e graves acusações.
Acusações com as quais, lamentavelmente, somos levados a concordar.
Qual fato novo a justificar a algaravia
dos príncipes? O vazamento atinge um membro da Suprema Corte e, pior!,
trata-se, a vítima, de querido pupilo do ministro Mendes! O
ministro-protetor, assim testado em seus brios, deu vaza à sua
reconhecida incontinência verbal, e os jornalões escancararam as portas
já abertas de suas páginas explorando o escândalo: o líder da direta no
STF dirigiu suas baterias contra o MPF e os procuradores, contra a
Lava-Jato, contra a ‘lei da ficha limpa’, contra a delação premiada e,
evidentemente, contra os vazamentos.
Há informações de acusados sendo
orientados a dirigir o depoimento contra notórios desafetos do
situacionismo de hoje como condição, para celebração de acordos, e o
advogado Antônio Carlos de Almeida Castro (FSP. 24.08.16) refere-se a
indicações de que investigadores não raro pedem para que sejam
mencionadas pessoas do Poder Judiciário em depoimentos.
O que se discute à margem da reação
naturalmente destemperada do ministro Mendes é a indignação seletiva.
Como pôr na mesma balança o silêncio conivente de ontem com a reação
emocional de hoje? Por que o silêncio conivente quando as vitimas são o
ex-presidente Lula e seus correligionários ou pessoas próximas? Por que o
silêncio diante dos vazamentos anteriores, por definição ilegais e
moralmente covardes? Por que, por exemplo, o silêncio diante dos
vazamentos das delações de Sérgio Machado e do ex-senador Delcídio do
Amaral? Por que o aplauso ao juiz Moro quando do vazamento do grampo
criminoso que atingia a presidente Dilma e o ex-presidente Lula?
O procurador Janot, pego de calça-curta
no episódio, atribui o vazamento ao próprio depoente, o que é
inverossímil, pois o vazamento pode interessar a muitos, mas
inequivocamente não interessa ao delator, e, agora, intempestivo,
resolve, suspender a delação do empresário. Na verdade, esse Léo
Pinheiro, o dono da famosa empreiteira OAS, foi defenestrado porque não
disse o que os procuradores queriam ouvir. E, silenciado, não poderá
falar sobre aqueles que os procuradores não querem que fale.
Por que, para pelo menos limpar a imagem de parcialidade, não apurar todas as delações até aqui?
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