Nunca se elucidou completamente o que aconteceu naquela madrugada de
13 de maio de 1988, em Amsterdam, Holanda. Então morador da cidade,
o americano Chet Baker, um dos mais marcantes trompetistas e vocalistas do jazz, faleceu ao despencar da janela do segundo andar do Prins Hendrik Hotel, pouco antes de um show agendado.
Tinha 58 anos e aparência de mais de 80, por culpa dos maus-tratos das drogas no seu corpo. A hipótese mais plausível é a de acidente, até porque
a autópsia detectou heroína em seu organismo. Mas há quem acredite em suicídio (do segundo andar?), ou até em vingança de algum traficante a quem ele devia dinheiro.
Não nos atenhamos, porém, ao que não é fato. Fato é que a música de Chet era muito, muito boa, e o melhor modo de homenageá-lo nestes 25 anos de sua morte é, naturalmente, constatar tal excelência ouvindo-o. Valem como reforço a esse convite os tópicos abaixo, sobre vida e obra do músico. Cada um está representado pelo título de um tema instrumental ou canção do repertório dele.
A mais conhecida, “My Funny Valentine” (Rodgers/Hart), não consta justamente por sua obviedade. Continua, contudo, 59 anos depois de lançada em disco na voz de Chet, a ser fonte de grande prazer aos ouvintes, como todas as outras aqui citadas:
“Alone Together”: Para reconhecer a alta qualidade da música de Chet, não é necessário entender de jazz. Se entender, melhor, porque se captam as sutilezas. Mas basta um pouco de sensibilidade musical para perceber que sua voz e seu trompete parecem o mesmo instrumento, só com sonoridades diferentes. Chet, no que tange à técnica, trabalhava os recursos do sopro em seus vocais, sem emprego de vibratos e com emissão do chamado “ruído branco” no intervalo da aspiração do ar. Dominar o trompete ajudou-o muito a ser um cantor de total controle da respiração e notável senso melódico. Essa técnica, é claro, estava a serviço da emoção, como se nota no finalzinho de “There Will Never Be Another You” (Warren/Gordon) – do disco “Chet Baker Sings”, de 1954, o mesmo com “My Funny Valentine” –, quando ele canta “there will never, ever, be another you-u-u…”, com cada “u” descendo uma nota da escala e nos fazendo fechar os olhos para ouvir.
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“Let’s Get Lost”:
O dramático envolvimento de Chet com drogas é bastante conhecido. O músico foi preso várias vezes em função do vício e,
em 1966, perdeu dentes numa suposta briga de rua com traficantes. O abuso de heroína pioraria a situação, ao deteriorar os restantes. De dentadura, Chet, é claro, por ser instrumentista de sopro,
teve de sair de cena por uns anos para reaprender a usar a embocadura. Sua vida, no geral, foi nômade e desorganizada. Sempre precisando de dinheiro, aceitou propostas duvidosas de gravadoras precárias, nas quais não ficava muito tempo. O resultado disso tudo foi uma discografia extensa e de alguns itens descartáveis.
“Serenity”: Se foi excessivo com drogas, Chet jamais o foi na música. Nos anos 1950, ajudou, depois de Miles Davis abrir caminho com as gravações que dariam no disco “Birth of the Cool” (1956), a estabelecer o que viria a ser identificado como
“cool jazz”: uma música econômica, de poucas notas, mais “tranquila” e fria, oposta ao bebop incendiário de Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Bud Powell, cujos temas tinham ritmo veloz e fraseados cheios de notas. Chet, no entanto, admirava Dizzy e, entre 1951 e 1952, tocou com Parker, numa série de apresentações que o fizeram despontar no cenário jazzístico.
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“When I Fall In Love”: Como uma decorrência desse estilo, sua música é capaz de desenvolver uma atmosfera intimista e romântica feito poucas. Cantando ou tocando, Chet soa sempre límpido e suave. Suas versões para “I Fall In Love Too Easily”, “Time After Time” (ambas de Sammy Cahn/Jule Styne), “September song” (Kurt Weill) e “Alone Together” (Arthur Schwartz), por exemplo, são um convite à introspecção – e a uma taça de vinho.
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“Almost Blue”: Uns dizem que a música de Chet é “triste”, mas, como o título dessa canção de Elvis Costello, uma das últimas gravadas por Chet, ela é quase triste. Não chega a sê-lo.
Chet tem certa melancolia, mas não tristeza (o conceito de melancolia é diferente do de tristeza, como sabem). Ele, porém, sabia ser triste quando necessário. A letra de “Almost Blue” contém versos como “Quase triste/ Flertando com este desastre em que me tornei/ Ele me nomeou como o bobo que queria ser” e entrelaça-se com uma melodia de notas graves, sobre uma harmonia de lá menor… Chet a emite com sua voz cansada dos últimos anos, o que até faz a interpretação ficar mais comovida.
“My Buddy”: Parcerias marcaram a trajetória de Chet, pela frequência ou, melhor, pelo resultado alcançado. O pianista Russ Freeman foi presença constante na sua melhor fase, a dos anos 1950. Outro, o brasileiro Rique Pantoja, gravou com ele, nos anos 1980, os álbuns “Chet Baker and The Boto Brazilian Quartet” (Pantoja integrava o quarteto) e “Rique Pantoja and Chet Baker” (também conhecido por “Cinema 1”), recebidos sem entusiasmo pela crítica. Chet ainda gravou com outros grandes instrumentistas de sopro, como Art Pepper e Stan Getz, além do já mencionado início com Charlie Parker. Mas imperdível mesmo é seu disco de 1974 com Gerry Mulligan, saxofonista com quem tocara na década de 1950, antes de formar seu próprio combo. Registro de um concerto no Carnegie Hall, de Nova York, inclui cinco composições de Mulligan e uma versão arrepiante, totalmente instrumental, de “My Funny Valentine”.
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“You’re Driving Me Crazy”: Nas parcerias com outros músicos, no entanto, nem sempre havia harmonia (a pessoal, não a musical).
O trabalho com Getz, por exemplo, não rendeu porque os dois, na verdade, não se gostavam. Desentendimentos também eram comuns com o grupo de Mulligan, lá no começo da carreira. Mesmo nos anos 80, mais velho, Chet perdia a paciência – num caso, pelo menos, com razão: durante apresentação em Stuttgart, na Alemanha, em abril de 1988, o violonista da banda insistia em “florear” ao acompanhá-lo em “Almost Blue”. Ao que Chet, sem cerimônia, reagiu: “
Por favor, não brinque enquanto estou cantando esta canção!”.
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“It’s Always You”: Chet exerce influência sobre jazzistas atuais. É o caso dos também trompetistas e cantores Nate Birkey, americano, e Till Brönner, alemão, seus admiradores. A sonoridade deles evoca a de Chet. Brönner, inclusive, tem no currículo um CD intitulado “Chattin’ with Chet”, de 2000. E duas intérpretes brasileiras, radicadas nos Estados Unidos, prestaram recentemente tributo ao músico: Luciana Souza, com “The Book of Chet”, de 2012, e Eliane Elias, com “I Thought About You: A Tribute to Chet Baker”, de lançamento previsto para o final de maio de 2013. Ainda na seara dos brasileiros, Caetano Veloso e Gal Costa são também cantores influenciados pelo americano. Há a ideia feita de que o maior seguidor do canto sussurrado de Chet seria um sujeito chamado João Gilberto. Mas o próprio João, em entrevista a Ruy Castro, teria dito que, embora gostasse de Chet, sua maior referência era Matt Dennis, um quase obscuro intérprete que, já na década de 1940, cantava baixinho ao microfone. Nem Chet, portanto, teria sido o ‘introdutor’ desse jeito de cantar, no jazz (outro clichê que se ouve). Mas o levou a outro patamar de sensibilidade, e acabou ele se tornando “a” referência no estilo.
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“We Could Make Such Beautiful Music Together”: Um dos exercícios preferidos dos apreciadores de uma determinada arte é imaginar o que resultaria do encontro de certos criadores de substratos ou estilos similares – Woody Allen e Bergman, Machado de Assis e Henry James, por exemplo. Ouvir a cantora e pianista Blossom Dearie, já chamada de “Chet de saias” por seu canto igualmente sussurrado e frágil, mas hábil e charmoso, faz pensar: o que ela e Chet fariam de bom juntos? E Chet e Shirley Horn?
Encontro de Chet com Astrud Gilberto, não precisa imaginar: o dueto aconteceu, para o álbum “That Girl From Ipanema” (1977), de Astrud, na canção “Far Away”, composição da própria cantora.
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“Portrait in Black and White”: Dirigido pelo fotógrafo americano Bruce Weber e indicado ao Oscar na sua categoria,
o documentário “Let’s Get Lost”, sobre Chet, foi produzido em 1987 e finalizado pouco depois da morte dele. Todo em preto e branco, recupera trechos de programas de TV e fotos do Chet do início da carreira, quando era um rapaz bonito, comparado a James Dean. O contraste com o homem de 57 anos, viciado, apático e de rosto enrugado, é duro. Traz também cenas de “Hell’s Horizon” (1955), filme de que, convidado por Hollywood, Chet participou como ator (ele repetiria a experiência na Itália), e de “All The Fine Young Cannibals” (1960), produção inspirada na sua vida (o personagem chama-se Chad Bixby). Mas aborda muito pouco de suas influências e formação, explorando mais sua vida pessoal. Nesse sentido, os depoimentos de amigos, colegas,
mãe (corajosa ao reconhecer que ele, embora consagrado como artista, a decepcionou como filho), ex-mulheres (que não falam nada bem dele), filhos e do próprio músico acabam sendo, no geral, chatos. Os melhores momentos são, é claro, os musicais, do jovem e do velho Chet: ele nos suspende no ar ao cantar “Forgetful” (Handy/Segal), nas imagens de um programa de TV dos anos 1960, e “Imagination” (Burke/Van Heusen), quando grava a trilha sonora do doc, no estúdio. Essa, aliás, saiu em CD e contém ainda uma bela versão instrumental para “Retrato em Branco e Preto”, de Tom Jobim (apresentada com seu título em inglês).
“Everything Happens to Me”: do mesmo problema do documentário, padecem os livros biográficos sobre Chet lançados no Brasil. “No fundo de um sonho – a longa noite de Chet Baker”, publicado pelo crítico James Gavin em 2002, concentra-se mais nos dramas pessoais do biografado do que na obra ou no talento dele. Não falta espaço para relatos minuciosos ligados à dependência de Chet, mas, por exemplo, sobre a influência dele na música brasileira – que poderia ser analisada quando o autor descreve a vinda dele ao Free Jazz Festival, em 1985 –, há apenas dois parágrafos. O que emerge da leitura é o velho retrato do “artista atormentado”. Não é uma biografia definitiva. Nas “Memórias Perdidas”, de 2001, o foco também é pessoal – obviamente, já que o livro reúne anotações feitas por Chet em seu diário, entre 1946 e 1963. O músico relembra seu relacionamento com Parker e Mulligan, mas os 13 capítulos são quase todos dedicados às barras que sua dependência o fez enfrentar. Mesmo com passagens sugestivas, como a em que Chet diz ter sido ingênuo sobre vício em heroína (“Muita gente usava a droga na Paris de 56.”), o livro é dispensável.
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Nestes 25 anos de sua morte, e neste século 21, uma boa reflexão a ser feita seria justamente nessa linha:
a ‘obsessão’ por questões particulares das pessoas – as quais nem sempre explicam suas obras – não impede, às vezes, que um artista seja devidamente valorizado? Talvez Chet não fosse considerado, como ainda é por uns, “só” mais um jazzista daquela turma dos anos 1950, sem grande contribuição, se se destacasse menos sua vida atribulada e mais seu trabalho. Quem o ouve com atenção é capaz de perceber que ele oferece muito.
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