Carta Capital, 28/03/2013
Jovens brasileiros disseminam apoio à Coreia do Norte
Por Piero Locatelli
Kim Il-Sung
“Arqueólogos do Instituto de história da Academia de Ciências Sociais da Coreia do Norte recentemente confirmaram o covil do unicórnio usado pelo Rei Tongmyong.” A nota da agência de notícias oficial da Coreia do Norte, publicada em 30 de novembro de 2012, circulou pelo mundo. Veículos de comunicação repercutiram com uma interpretação literal: o governo do país dizia ter achado o lugar onde morava um ser mitológico.
A interpretação da notícia gerou revolta em alguns brasileiros. Justificavam que aquele era o nome de um local e não tinha relação direta com a existência de unicórnios. “É como falar que a Garganta do Diabo, aqui no Brasil, é a prova da existência do diabo. Não tem sentido”, argumenta o estudante de sociologia André Ortega, de 19 anos.
Ortega faz parte de um grupo dedicado ao estudo do juche, o marxismo adaptado à realidade coreana concebido por Kim Il-sung, fundador do país. Desde 2010, eles mantêm o “Blog de Solidariedade a Coreia Popular”. Na descrição, dizem fazer um “contraponto às mentiras e deturpações promovidas pela imprensa ocidental”. Há mensagens elogiosas de líderes norte-coreanos sobre Stalin, textos sobre música revolucionária e muitas críticas à imprensa.
Em uma das postagens, rebatem uma reportagem de Marcus Uchôa, da TV Globo, após um jogo entre a seleção da norte-coreana e a brasileira na Copa do Mundo de 2010. Eles justificam por que os jogadores não queriam falar com o jornalista. “É claro que os coreanos, como genuínos patriotas e amantes da causa socialista e da paz mundial, jamais gostariam de perder tempo ouvindo a provocações e comentários inúteis com o intuito de ridicularizar a Coreia Popular e seu grande líder Kim Jong-il.”
O grupo é atualmente formado por dez homens. A reportagem conversou com cinco deles que têm algo em comum: entraram em contato com o marxismo no começo da adolescência e buscaram exemplos de socialismo real por conta própria.
“Eu tinha um contato muito forte com a figura do Stalin, que eu admirava bastante. Estudando a história do desenvolvimento do comunismo internacional, eu acabei me deparando com a questão da Coreia, que era sempre um país muito demonizado, atacado. Aí eu tentei buscar uma visão diferente dos fatos, do que falavam sobre o país,” diz o estudante de engenharia Alexandre Roseno, 18.
Apoio de Kim Jong-un
A mesma agência responsável pela notícia da caverna do unicórnio fala esporadicamente dos trabalhos do grupo. A primeira vez foi em 12 de junho de 2011, quando aconteceu a reunião inaugural, em uma sala da Universidade de São Paulo. Na notícia, constava que os jovens haviam prometido “disseminar amplamente” a experiência do governo norte-coreano.
Antes de contar com o aval dos norte-coreanos, Roseno mantinha um blog sobre o país com seu amigo Gabriel Martinez, estudante de filosofia, hoje com 23 anos. Militantes do PCdoB naquela época, eles abordaram funcionários da embaixada norte-coreana em um evento. A partir deste dia, criaram laços com o governo e o grupo de estudos tomou forma. Foi então que chamaram André Ortega, autor de outro site de apoio ao país.
Desde então, os três viajaram duas vezes para a Coreia do Norte, convidados pela Academia Norte Coreana de Ciências Sociais para participar de encontros mundiais sobre a ideia Juche. Lá, foram levados a fábricas e fazendas, privilégios não concedidos aos poucos turistas que frequentam o país.
Eles dizem ter gostado do que viram. “O problema de muitas pessoas que vão para lá e voltam com essa posição (ruim sobre o país), é que eles vão justamente para isso, com o intuito de ver a pobreza,” diz Martinez. “E os guias percebem isso. Sabem que o turista vai como se estivesse num zoológico. Eles sabem o que as pessoas estão fazendo e dão uma cortada.”
A pobreza na Coreia do Norte teve seu ápice na década de 1990, quando algo entre 240 mil e um milhão de coreanos morreram devido à fome. Na visão do grupo, isso não ocorreu por um erro dos líderes do país, mas por causa das sanções sofridas pelos norte-coreanos. “A principal razão foi com certeza a questão do ambiente hostil que se criou com a queda da União Soviética e do leste europeu. Mas o imperialismo tenta colocar que foi uma política equivocada do governo.”
Mesmo durante esse período, a Coreia do Norte manteve o exército como sua prioridade, a chamada política Songun. Os integrantes do grupo defendem a ideia, incluindo as pesquisas nucleares que tem estremecido a relação entre a Coreia do Norte com outros países. “Quem não tem bomba atômica, principalmente um país como a Coreia, não tem independência,” diz Martinez. “Se não, iria acontecer o que aconteceu no Iraque, Líbia e vai acontecer na Síria. Esses países tiveram o mesmo destino.”
Trabalho forçado
O país é criticado duramente por organismos internacionais e organizações não governamentais ligadas aos direitos humanos. De acordo com um relatório da Anistia Internacional, divulgado em 2011, há cerca de 200 mil presos em campos de concentração. Relatos de maus-tratos, incluindo tortura e execuções arbitrárias, constam de documentos das organizações e livros com depoimentos de refugiados.
Os integrantes do grupo admitem que a política de “reeducação por trabalho” existe no país. “Existe um sistema prisional que faz uso do trabalho forçado, no mesmo estilo da China e do que existiu na União Soviética”, diz Martinez. “Mas não dá para falar que a política prisional da Coreia do Norte se baseia em campos de concentração, desrespeito aos direitos humanos e maus-tratos.”
Para os estudiosos de juche, isso não deve guiar a discussão sobre o país. “Não duvido que algumas histórias de dissidentes sejam traumas pessoais verdadeiros. Mas eu também não duvidaria que fossem forjadas. E, em termos de discussão política, isso é irrelevante por causa da base fraca dessas histórias,” diz Ortega. “Algumas histórias são mais pitorescas que o culto à personalidade. Imagine como um cara vai sair do campo de concentração do regime mais violento e militarizado do mundo, onde dizem que as pessoas tem de usar passaporte interno para sair da cidade e que nem as pessoas comuns têm como se locomover? Então, como ele conseguiu sair do país a pé? Atravessar o país e chegar à China?”
Verdadeiros ou não, os relatos não chegam aos ouvidos norte-coreanos, que só tem acesso à imprensa controlada pelo Estado. “De fato, não dá para abrir um jornal para defender o capitalismo. Nesse sentido, sim, tem uma censura,” diz Martinez. Os estudantes, porém, contestam as comparações feitas com a mídia do resto do mundo, refutando a ideia de que os norte-coreanos estão numa situação pior. “Até hoje existe uma lei de segurança nacional (na Coreia do Sul) que prende comunistas. E os livros do Kim Il-sung são proibidos lá. Isso é liberdade?”
Coreia levada à sério
Três dias depois do aniversário de Kim Jong-il, líder da Coreia do Norte morto em 2011, o grupo se reuniu para celebrar a data em uma sala no centro de São Paulo. Durante 40 minutos, leram a transcrição de uma fala do líder na década de 70, traduzindo em voz alta versões em inglês e em espanhol do texto. Depois, fizeram uma discussão de teor acadêmico: qual a influência do indivíduo na construção do socialismo segundo a ideia juche?
Na reunião, não havia nenhum dos símbolos do país que são motivos de risos ocidentais. Não há retratos dos norte-coreanos e ninguém fala termos como “líder supremo”. Para eles, o humor sobre o país não é banal e tem motivos mais profundos. “A imprensa ligada ao imperialismo se aproveita das peculiaridades para promover a desinformação, tendo isso como base,” diz Martinez.
Os integrantes do grupo lamentam que a Coreia não receba da esquerda brasileira a mesma simpatia que o regime de Cuba. Eles veem o distanciamento cultural como um dos fatores para que isso não aconteça. Para eles, Kim Il-sung é tão importante para o socialismo quanto Fidel Castro. Os estudantes ainda dizem que os dois países sofrem do mesmo mal: o embargo econômico dos Estados Unidos. “Muitas vezes o camarada apoia Cuba, fala que o imperialismo é hostil contra Cuba, que a imprensa fala mentira sobre Cuba. Mas quando é a Coreia do Norte, não,” lamenta Ortega.
Apesar da falta de apoio, eles dizem não travar grandes embates dentro da esquerda por defenderem Kim Jong-un. A discussão só se acirra, segundo eles, quando entram em pauta os assuntos brasileiros. “São trabalhos separados, mas a gente defende a questão da revolução anti-imperialista e anti-feudal”, explica Roseno.
Estudantes de uma filosofia de um país a 18 mil quilômetros de distância, eles dizem ter aprendido lições importantes para usar no Brasil. “A ideia Juche permite que a gente acabe com esses erros que infelizmente ainda existem, do “seguidismo”, de a gente não querer se apoiar nas próprias forças. A gente tem que fundar nosso próprio exército de operários camponeses,” completa.
A interpretação da notícia gerou revolta em alguns brasileiros. Justificavam que aquele era o nome de um local e não tinha relação direta com a existência de unicórnios. “É como falar que a Garganta do Diabo, aqui no Brasil, é a prova da existência do diabo. Não tem sentido”, argumenta o estudante de sociologia André Ortega, de 19 anos.
Ortega faz parte de um grupo dedicado ao estudo do juche, o marxismo adaptado à realidade coreana concebido por Kim Il-sung, fundador do país. Desde 2010, eles mantêm o “Blog de Solidariedade a Coreia Popular”. Na descrição, dizem fazer um “contraponto às mentiras e deturpações promovidas pela imprensa ocidental”. Há mensagens elogiosas de líderes norte-coreanos sobre Stalin, textos sobre música revolucionária e muitas críticas à imprensa.
Em uma das postagens, rebatem uma reportagem de Marcus Uchôa, da TV Globo, após um jogo entre a seleção da norte-coreana e a brasileira na Copa do Mundo de 2010. Eles justificam por que os jogadores não queriam falar com o jornalista. “É claro que os coreanos, como genuínos patriotas e amantes da causa socialista e da paz mundial, jamais gostariam de perder tempo ouvindo a provocações e comentários inúteis com o intuito de ridicularizar a Coreia Popular e seu grande líder Kim Jong-il.”
O grupo é atualmente formado por dez homens. A reportagem conversou com cinco deles que têm algo em comum: entraram em contato com o marxismo no começo da adolescência e buscaram exemplos de socialismo real por conta própria.
“Eu tinha um contato muito forte com a figura do Stalin, que eu admirava bastante. Estudando a história do desenvolvimento do comunismo internacional, eu acabei me deparando com a questão da Coreia, que era sempre um país muito demonizado, atacado. Aí eu tentei buscar uma visão diferente dos fatos, do que falavam sobre o país,” diz o estudante de engenharia Alexandre Roseno, 18.
Apoio de Kim Jong-un
A mesma agência responsável pela notícia da caverna do unicórnio fala esporadicamente dos trabalhos do grupo. A primeira vez foi em 12 de junho de 2011, quando aconteceu a reunião inaugural, em uma sala da Universidade de São Paulo. Na notícia, constava que os jovens haviam prometido “disseminar amplamente” a experiência do governo norte-coreano.
Antes de contar com o aval dos norte-coreanos, Roseno mantinha um blog sobre o país com seu amigo Gabriel Martinez, estudante de filosofia, hoje com 23 anos. Militantes do PCdoB naquela época, eles abordaram funcionários da embaixada norte-coreana em um evento. A partir deste dia, criaram laços com o governo e o grupo de estudos tomou forma. Foi então que chamaram André Ortega, autor de outro site de apoio ao país.
Desde então, os três viajaram duas vezes para a Coreia do Norte, convidados pela Academia Norte Coreana de Ciências Sociais para participar de encontros mundiais sobre a ideia Juche. Lá, foram levados a fábricas e fazendas, privilégios não concedidos aos poucos turistas que frequentam o país.
Eles dizem ter gostado do que viram. “O problema de muitas pessoas que vão para lá e voltam com essa posição (ruim sobre o país), é que eles vão justamente para isso, com o intuito de ver a pobreza,” diz Martinez. “E os guias percebem isso. Sabem que o turista vai como se estivesse num zoológico. Eles sabem o que as pessoas estão fazendo e dão uma cortada.”
A pobreza na Coreia do Norte teve seu ápice na década de 1990, quando algo entre 240 mil e um milhão de coreanos morreram devido à fome. Na visão do grupo, isso não ocorreu por um erro dos líderes do país, mas por causa das sanções sofridas pelos norte-coreanos. “A principal razão foi com certeza a questão do ambiente hostil que se criou com a queda da União Soviética e do leste europeu. Mas o imperialismo tenta colocar que foi uma política equivocada do governo.”
Mesmo durante esse período, a Coreia do Norte manteve o exército como sua prioridade, a chamada política Songun. Os integrantes do grupo defendem a ideia, incluindo as pesquisas nucleares que tem estremecido a relação entre a Coreia do Norte com outros países. “Quem não tem bomba atômica, principalmente um país como a Coreia, não tem independência,” diz Martinez. “Se não, iria acontecer o que aconteceu no Iraque, Líbia e vai acontecer na Síria. Esses países tiveram o mesmo destino.”
Trabalho forçado
O país é criticado duramente por organismos internacionais e organizações não governamentais ligadas aos direitos humanos. De acordo com um relatório da Anistia Internacional, divulgado em 2011, há cerca de 200 mil presos em campos de concentração. Relatos de maus-tratos, incluindo tortura e execuções arbitrárias, constam de documentos das organizações e livros com depoimentos de refugiados.
Os integrantes do grupo admitem que a política de “reeducação por trabalho” existe no país. “Existe um sistema prisional que faz uso do trabalho forçado, no mesmo estilo da China e do que existiu na União Soviética”, diz Martinez. “Mas não dá para falar que a política prisional da Coreia do Norte se baseia em campos de concentração, desrespeito aos direitos humanos e maus-tratos.”
Para os estudiosos de juche, isso não deve guiar a discussão sobre o país. “Não duvido que algumas histórias de dissidentes sejam traumas pessoais verdadeiros. Mas eu também não duvidaria que fossem forjadas. E, em termos de discussão política, isso é irrelevante por causa da base fraca dessas histórias,” diz Ortega. “Algumas histórias são mais pitorescas que o culto à personalidade. Imagine como um cara vai sair do campo de concentração do regime mais violento e militarizado do mundo, onde dizem que as pessoas tem de usar passaporte interno para sair da cidade e que nem as pessoas comuns têm como se locomover? Então, como ele conseguiu sair do país a pé? Atravessar o país e chegar à China?”
Verdadeiros ou não, os relatos não chegam aos ouvidos norte-coreanos, que só tem acesso à imprensa controlada pelo Estado. “De fato, não dá para abrir um jornal para defender o capitalismo. Nesse sentido, sim, tem uma censura,” diz Martinez. Os estudantes, porém, contestam as comparações feitas com a mídia do resto do mundo, refutando a ideia de que os norte-coreanos estão numa situação pior. “Até hoje existe uma lei de segurança nacional (na Coreia do Sul) que prende comunistas. E os livros do Kim Il-sung são proibidos lá. Isso é liberdade?”
Coreia levada à sério
Três dias depois do aniversário de Kim Jong-il, líder da Coreia do Norte morto em 2011, o grupo se reuniu para celebrar a data em uma sala no centro de São Paulo. Durante 40 minutos, leram a transcrição de uma fala do líder na década de 70, traduzindo em voz alta versões em inglês e em espanhol do texto. Depois, fizeram uma discussão de teor acadêmico: qual a influência do indivíduo na construção do socialismo segundo a ideia juche?
Na reunião, não havia nenhum dos símbolos do país que são motivos de risos ocidentais. Não há retratos dos norte-coreanos e ninguém fala termos como “líder supremo”. Para eles, o humor sobre o país não é banal e tem motivos mais profundos. “A imprensa ligada ao imperialismo se aproveita das peculiaridades para promover a desinformação, tendo isso como base,” diz Martinez.
Os integrantes do grupo lamentam que a Coreia não receba da esquerda brasileira a mesma simpatia que o regime de Cuba. Eles veem o distanciamento cultural como um dos fatores para que isso não aconteça. Para eles, Kim Il-sung é tão importante para o socialismo quanto Fidel Castro. Os estudantes ainda dizem que os dois países sofrem do mesmo mal: o embargo econômico dos Estados Unidos. “Muitas vezes o camarada apoia Cuba, fala que o imperialismo é hostil contra Cuba, que a imprensa fala mentira sobre Cuba. Mas quando é a Coreia do Norte, não,” lamenta Ortega.
Apesar da falta de apoio, eles dizem não travar grandes embates dentro da esquerda por defenderem Kim Jong-un. A discussão só se acirra, segundo eles, quando entram em pauta os assuntos brasileiros. “São trabalhos separados, mas a gente defende a questão da revolução anti-imperialista e anti-feudal”, explica Roseno.
Estudantes de uma filosofia de um país a 18 mil quilômetros de distância, eles dizem ter aprendido lições importantes para usar no Brasil. “A ideia Juche permite que a gente acabe com esses erros que infelizmente ainda existem, do “seguidismo”, de a gente não querer se apoiar nas próprias forças. A gente tem que fundar nosso próprio exército de operários camponeses,” completa.
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