Saídas da crise: projeto de nação ou 'país-mercadoria'?
Por Saul Leblon
Quando foi eleito presidente do Chile, em janeiro de 2010, o bilionário Sebástian Piñera reacendeu a esperança conservadora na América Latina.
Sua vitória reluzia como a revanche diante de um colar de governos progressistas que asfixiavam o horizonte da direita regional.
Enfim, um presidente para chamar de seu. Um porta-voz moderno do dinheiro grosso.
Alguém talhado para fazer a ponte entre a inconclusa redemocratização chilena e o necessário arejamento das agendas apuradas no calabouço escuro da ditadura Pinochet.
Antes mesmo de Thatcher, o Chile foi militarmente capturado para ser a cozinha experimental do neoliberalismo.
Talvez fosse mais apropriada a metáfora 'açougue'.
Ali se sangrou, retalhou, picou e moeu uma nação até reduzi-la a uma massa disforme e vegetativa.
Dessa matéria-prima nasceu a primeira receita mundial bem sucedida do cardápio que decretaria o fim do capitalismo regulado, a partir dos anos 70.
O quitute indigesto foi enfiado goela abaixo de uma das sociedades mais democráticas do continente latino-americano.
Por isso mesmo exemplarmente esgoelada na sua tentativa de construir o socialismo pela via eleitoral.
O recado foi escrito com sangue na pele da esquerda latino-americana: 'a democracia promete mais do que os mercados estão dispostos a conceder'.
Mestres-cucas da direita regional e global aderiram em massa ao mutirão corretivo.
Piñera não serviu diretamente à ditadura mais sanguinária da AL.
Justamente por isso sua vitória em 2010 acendeu o entusiasmo conservador.
Porque pensava a economia como Pinochet, sem ter vestido diretamente o capuz negro.
Era a ponte palatável entre dois mundos, no caminho de volta a uma democracia bem comportada.
"É provável que se fortaleça na América do Sul uma "frente antichavista", integrada por Álvaro Uribe (Colômbia), Alan García (Peru) e o próprio Piñera".
O augúrio do editorial da Folha, de 22 de janeiro de 2010, externava essa aposta ansiosa.
O dote de mandatário-ponte servia ademais para espicaçar a viabilidade da jejuna e também recém-eleita presidenta brasileira, Dilma Rousseff.
Transcorridos três anos, Piñera rasteja a caminho de uma derrota sucessória antevista como inevitável, em novembro próximo.
O 'poste de Lula', como dizia Serra, ostenta mais de 70% de aprovação.
O que se passa?
O jornalismo que apostou na ressurgência neoliberal mostra-se estupefato. O Chile fez tudo como deve ser.
É a economia mais aberta da América Latina. O Estado é mínimo: a dívida do setor público é de apenas 11,5% do PIB (36% no Brasil).
A previdência foi privatizada. A proteção trabalhista é pífia.
A linha da desigualdade parece o eletrocardiograma de um morto: o índice de Gini chileno oscilou de 0,55 para 0,52 entre 1990 e 2009 (o do Brasil melhorou de 0,61 para 0,54).
Segundo a Cepal (dados citados pelo jornal Valor Econômico), entre 1990 e 2009, o investimento público na área social oscilou mediocremente no país: de 15,2% para 15,6% do PIB.
Até o México deu um passo maior no mesmo período: passou de 5,5% para 11,3% do PIB.
Na direitista Colômbia, o salto foi de 6,1% para 11,5%.
No Brasil, a ' gastança' avançou de 17,6% para 27,1% do PIB; na Argentina, de 18,6% para 27,8%.
O jornalismo conservador atribui à falta de 'traquejo' político do empresário-presidente, o paradoxo entre uma economia 'saudável' e a rejeição política esmagadora.
O raciocínio condescendente desdenha de uma lacuna-chave.
Piñera não foi programado para transformar a maçaroca econômica em uma Nação.
Por que teria apoio dos seus órfãos?
O Chile é uma equação de números enxutos.
Uma população de 17 milhões de pessoas, menor que a da cidade de São Paulo; um PIB em torno de US$ 250 bi (o paulistano fica em torno de US$ 220 bi).
Porém, mais que isso.
É um país simplificado por uma ditadura que decidiu exterminar fisicamente o estorvo ideológico e social no seu caminho: a classe trabalhadora organizada.
Uma parte foi sangrada nas baionetas de Pinochet.
A outra, exterminada estruturalmente pelos sacerdotes do laissez-faire.
Os Chicago's boys ergueram no Chile o altar-mor de sua religião nos anos 70.
E nele reduziram a economia às suas estritas 'vantagens comparativas'.
Um pomar de pêssego. Vinícolas. Uma mina de cobre .
Um país mercado. Que como tal não precisa de projeto nacional.
Um fluxo de mercadorias não requer formulação intelectual própria.
Logo, não precisa de universidade pública autônoma.
Um aglomerado de consumo não reclama cidadania.
Piñera tentou ser o cadeado moderno entre isso e uma redemocratização intrinsecamente tensa e limitada.
Os estudantes rechaçaram esse entendimento do que seja um 'Chile moderno' .
E carregaram para as ruas o inconformismo de décadas.
Condensaram o grito de 50 anos numa bandeira ao mesmo tempo simples e ferozmente ampla: 'ensino público, gratuito e de qualidade'.
Nada mais imiscível do que um povo reduzido a uma fila de supermercado e a bandeira do ensino público de qualidade.
O fracasso de Piñera não deve ser desfrutado com precipitações simplistas.
O jogo não acabou.
Dilma não tem mais traquejo em campo do que o presidente chileno.
O que Dilma tem de diferente é o fato de representar um esforço político deliberado de construir uma sociedade ao mesmo tempo próspera e justa no Brasil.
Esse vínculo foi extirpado do conceito de economia 'saudável' no Chile.
E não só ele.
A qualidade do desenvolvimento perseguido pelo Brasil ancora-se numa usina de irradiação de riqueza repudiada estruturalmente no Chile desde Pinochet: a industrialização.
Essa singularidade brasileira não é uma conquista dada .
É um projeto de país diariamente fuzilado e ameaçado pelos interesses que contraria --e que não são poucos, nem apenas locais.
Os embates tendem a se acirrar.
Num mundo estagnado, a pressão para entregar tudo aos detentores dos mercados globais, em voraz processo de reordenação, é cada vez maior.
Não por acaso Aécio Neves cercou-se de profissionais do ramo, rumo a 2014.
Resistir passou a exigir definições mais duras e mais profundas.
E linhas de passagem mais curtas e ousadas.
Um trecho do artigo desta semana de Luiz Gonzaga Belluzzo, no jornal Valor, expressa a tensão estrutural que espreme o espaço das escolhas e acomodações.
O conjunto acelera a clivagem entre a lógica que modelou o Chile, de Pinochet a Piñera, e a que tateia o Brasil, de Lula a Dilma; a Argentina, de Nestor a Cristina; a Venezuela, de Chávez a Maduro...
Nação ou 'país-mercadoria'? A ver.
Belluzzo com a palavra:
"As vantagens da China e de seus parceiros asiáticos não estão asseguradas. Não há repouso no capitalismo.
Depois da crise de 2008 e de suas consequências, os países que perderam posição na disputa competitiva da manufatura - sobretudo os Estados Unidos - acenam com uma nova rodada de inovações, aquelas que seriam classificadas de "poupadoras de mão de obra" pelos sábios que ainda utilizam funções de produção.
O economista chefe da General Eletric, Marco Annunziata e Kenneth Rogoff preconizam a iminência de um intenso movimento de automação baseado na utilização de redes de "máquinas inteligentes".
Nanotecnologia, neurociência, biotecnologia, novas formas de energia e novos materiais formam o bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar outra vez as bases técnicas do capitalismo.
Todos os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão confirmar sua razão interna: são métodos de produção destinados a aumentar a produtividade social do trabalho em escala crescente.
Sua aplicação continuada torna o trabalho imediato cada vez mais redundante. A autonomização da estrutura técnica significa que a aplicação da ciência torna-se o critério dominante no desenvolvimento da produção.
O jogo da grande empresa é jogado no tabuleiro em que a mobilidade do capital impõe conjuntamente a liberalização do comércio, o controle da difusão do progresso técnico (leis de patentes etc..) e o enfraquecimento da capacidade de negociação dos trabalhadores.
Assim, as "novas" formas de concorrência escondem, sob o diáfano véu da liberdade, o aumento brutal da centralização do capital, a concentração do poder sobre os mercados, a enorme capacidade de ocupar e abandonar territórios e de alterar as condições de vida das populações". (Luiz Gonzaga Belluzzo; Valor , 05-02)
Quando foi eleito presidente do Chile, em janeiro de 2010, o bilionário Sebástian Piñera reacendeu a esperança conservadora na América Latina.
Sua vitória reluzia como a revanche diante de um colar de governos progressistas que asfixiavam o horizonte da direita regional.
Enfim, um presidente para chamar de seu. Um porta-voz moderno do dinheiro grosso.
Alguém talhado para fazer a ponte entre a inconclusa redemocratização chilena e o necessário arejamento das agendas apuradas no calabouço escuro da ditadura Pinochet.
Antes mesmo de Thatcher, o Chile foi militarmente capturado para ser a cozinha experimental do neoliberalismo.
Talvez fosse mais apropriada a metáfora 'açougue'.
Ali se sangrou, retalhou, picou e moeu uma nação até reduzi-la a uma massa disforme e vegetativa.
Dessa matéria-prima nasceu a primeira receita mundial bem sucedida do cardápio que decretaria o fim do capitalismo regulado, a partir dos anos 70.
O quitute indigesto foi enfiado goela abaixo de uma das sociedades mais democráticas do continente latino-americano.
Por isso mesmo exemplarmente esgoelada na sua tentativa de construir o socialismo pela via eleitoral.
O recado foi escrito com sangue na pele da esquerda latino-americana: 'a democracia promete mais do que os mercados estão dispostos a conceder'.
Mestres-cucas da direita regional e global aderiram em massa ao mutirão corretivo.
Piñera não serviu diretamente à ditadura mais sanguinária da AL.
Justamente por isso sua vitória em 2010 acendeu o entusiasmo conservador.
Porque pensava a economia como Pinochet, sem ter vestido diretamente o capuz negro.
Era a ponte palatável entre dois mundos, no caminho de volta a uma democracia bem comportada.
"É provável que se fortaleça na América do Sul uma "frente antichavista", integrada por Álvaro Uribe (Colômbia), Alan García (Peru) e o próprio Piñera".
O augúrio do editorial da Folha, de 22 de janeiro de 2010, externava essa aposta ansiosa.
O dote de mandatário-ponte servia ademais para espicaçar a viabilidade da jejuna e também recém-eleita presidenta brasileira, Dilma Rousseff.
Transcorridos três anos, Piñera rasteja a caminho de uma derrota sucessória antevista como inevitável, em novembro próximo.
O 'poste de Lula', como dizia Serra, ostenta mais de 70% de aprovação.
O que se passa?
O jornalismo que apostou na ressurgência neoliberal mostra-se estupefato. O Chile fez tudo como deve ser.
É a economia mais aberta da América Latina. O Estado é mínimo: a dívida do setor público é de apenas 11,5% do PIB (36% no Brasil).
A previdência foi privatizada. A proteção trabalhista é pífia.
A linha da desigualdade parece o eletrocardiograma de um morto: o índice de Gini chileno oscilou de 0,55 para 0,52 entre 1990 e 2009 (o do Brasil melhorou de 0,61 para 0,54).
Segundo a Cepal (dados citados pelo jornal Valor Econômico), entre 1990 e 2009, o investimento público na área social oscilou mediocremente no país: de 15,2% para 15,6% do PIB.
Até o México deu um passo maior no mesmo período: passou de 5,5% para 11,3% do PIB.
Na direitista Colômbia, o salto foi de 6,1% para 11,5%.
No Brasil, a ' gastança' avançou de 17,6% para 27,1% do PIB; na Argentina, de 18,6% para 27,8%.
O jornalismo conservador atribui à falta de 'traquejo' político do empresário-presidente, o paradoxo entre uma economia 'saudável' e a rejeição política esmagadora.
O raciocínio condescendente desdenha de uma lacuna-chave.
Piñera não foi programado para transformar a maçaroca econômica em uma Nação.
Por que teria apoio dos seus órfãos?
O Chile é uma equação de números enxutos.
Uma população de 17 milhões de pessoas, menor que a da cidade de São Paulo; um PIB em torno de US$ 250 bi (o paulistano fica em torno de US$ 220 bi).
Porém, mais que isso.
É um país simplificado por uma ditadura que decidiu exterminar fisicamente o estorvo ideológico e social no seu caminho: a classe trabalhadora organizada.
Uma parte foi sangrada nas baionetas de Pinochet.
A outra, exterminada estruturalmente pelos sacerdotes do laissez-faire.
Os Chicago's boys ergueram no Chile o altar-mor de sua religião nos anos 70.
E nele reduziram a economia às suas estritas 'vantagens comparativas'.
Um pomar de pêssego. Vinícolas. Uma mina de cobre .
Um país mercado. Que como tal não precisa de projeto nacional.
Um fluxo de mercadorias não requer formulação intelectual própria.
Logo, não precisa de universidade pública autônoma.
Um aglomerado de consumo não reclama cidadania.
Piñera tentou ser o cadeado moderno entre isso e uma redemocratização intrinsecamente tensa e limitada.
Os estudantes rechaçaram esse entendimento do que seja um 'Chile moderno' .
E carregaram para as ruas o inconformismo de décadas.
Condensaram o grito de 50 anos numa bandeira ao mesmo tempo simples e ferozmente ampla: 'ensino público, gratuito e de qualidade'.
Nada mais imiscível do que um povo reduzido a uma fila de supermercado e a bandeira do ensino público de qualidade.
O fracasso de Piñera não deve ser desfrutado com precipitações simplistas.
O jogo não acabou.
Dilma não tem mais traquejo em campo do que o presidente chileno.
O que Dilma tem de diferente é o fato de representar um esforço político deliberado de construir uma sociedade ao mesmo tempo próspera e justa no Brasil.
Esse vínculo foi extirpado do conceito de economia 'saudável' no Chile.
E não só ele.
A qualidade do desenvolvimento perseguido pelo Brasil ancora-se numa usina de irradiação de riqueza repudiada estruturalmente no Chile desde Pinochet: a industrialização.
Essa singularidade brasileira não é uma conquista dada .
É um projeto de país diariamente fuzilado e ameaçado pelos interesses que contraria --e que não são poucos, nem apenas locais.
Os embates tendem a se acirrar.
Num mundo estagnado, a pressão para entregar tudo aos detentores dos mercados globais, em voraz processo de reordenação, é cada vez maior.
Não por acaso Aécio Neves cercou-se de profissionais do ramo, rumo a 2014.
Resistir passou a exigir definições mais duras e mais profundas.
E linhas de passagem mais curtas e ousadas.
Um trecho do artigo desta semana de Luiz Gonzaga Belluzzo, no jornal Valor, expressa a tensão estrutural que espreme o espaço das escolhas e acomodações.
O conjunto acelera a clivagem entre a lógica que modelou o Chile, de Pinochet a Piñera, e a que tateia o Brasil, de Lula a Dilma; a Argentina, de Nestor a Cristina; a Venezuela, de Chávez a Maduro...
Nação ou 'país-mercadoria'? A ver.
Belluzzo com a palavra:
"As vantagens da China e de seus parceiros asiáticos não estão asseguradas. Não há repouso no capitalismo.
Depois da crise de 2008 e de suas consequências, os países que perderam posição na disputa competitiva da manufatura - sobretudo os Estados Unidos - acenam com uma nova rodada de inovações, aquelas que seriam classificadas de "poupadoras de mão de obra" pelos sábios que ainda utilizam funções de produção.
O economista chefe da General Eletric, Marco Annunziata e Kenneth Rogoff preconizam a iminência de um intenso movimento de automação baseado na utilização de redes de "máquinas inteligentes".
Nanotecnologia, neurociência, biotecnologia, novas formas de energia e novos materiais formam o bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar outra vez as bases técnicas do capitalismo.
Todos os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão confirmar sua razão interna: são métodos de produção destinados a aumentar a produtividade social do trabalho em escala crescente.
Sua aplicação continuada torna o trabalho imediato cada vez mais redundante. A autonomização da estrutura técnica significa que a aplicação da ciência torna-se o critério dominante no desenvolvimento da produção.
O jogo da grande empresa é jogado no tabuleiro em que a mobilidade do capital impõe conjuntamente a liberalização do comércio, o controle da difusão do progresso técnico (leis de patentes etc..) e o enfraquecimento da capacidade de negociação dos trabalhadores.
Assim, as "novas" formas de concorrência escondem, sob o diáfano véu da liberdade, o aumento brutal da centralização do capital, a concentração do poder sobre os mercados, a enorme capacidade de ocupar e abandonar territórios e de alterar as condições de vida das populações". (Luiz Gonzaga Belluzzo; Valor , 05-02)
Nenhum comentário:
Postar um comentário