Domingo, 23 de Dezembro de 2012
Por Tarso GenroNa introdução ao seu “Berlim Alexanderplatz” (1929) o
grande escritor Alfred Döblin, da mesma estatura intelectual - artística
e moral - de Thomas Mann, disse que escrevia um livro sobre o
personagem Franz Biberkopf, que representava os que habitam uma pele
humana e com os quais acontece “querer mais da vida do que pão e
manteiga”.
Lembro esta passagem lapidar da introdução de Döblin,
porque sendo parte do grupo de dirigentes históricos minoritários no PT -
desde a época que ocorreram os fatos que originaram a Ação Penal 470 - e
tendo assumido a presidência do Partido num momento difícil da sua
existência afirmei, em diversas oportunidades, que
nenhum partido era
uma comunidade de anjos. O que era afirmar o óbvio num momento em que
dizer o óbvio parecia uma agressividade contra o meu próprio Partido.
Passados
vários anos daquele fato e quase terminado o julgamento daquela Ação
Penal, é bom retomar o fio da história presente para refletir, no
período que se convenciona planejar o “ano novo”, sobre o futuro da
esquerda e do PT. Pensar também sobre o futuro do nosso país, que nos
últimos dez anos vem sofrendo grandes transformações econômico-sociais.
Brasil
novo sujeito político no cenário mundial; Brasil tirando da miséria 40
milhões de pessoas; Brasil com os sindicalistas, os “sem-terra”, “sem
teto”, “sem emprego”, sentados na grande mesa da concertação e da
democracia; Brasil do Prouni, do Fundeb, da reestruturação das funções
públicas do Estado; Brasil do baixo desemprego, inflação baixa e juros
baixos; Brasil da nova Política de Defesa; Brasil da classe média
ampliada e de melhores salários no setor público e privado; Brasil da
Polícia Federal que age -em regra- segundo a Lei e a Constituição.
Brasil em que todas as instituições do Estado cometem seus erros e
acertos dentro das regras do jogo constitucional.
É ingenuidade
perguntar qual o Brasil que transita no debate político: este, descrito
acima, ou o Brasil da Ação Penal 470? Ou melhor,
porque o Brasil que se
debate é predominantemente o da Ação Penal 470 e não o Brasil legado,
até agora, pelo centro progressista e pela esquerda, sob a hegemonia do
Partido dos Trabalhadores?
Quem compôs esta agenda e por que ela é
agenda hegemônica? As respostas a estas perguntas serão a base da
compreensão dos partidos sobre o que ocorrerá bem além de 2018.
Aponto
dois motivos básicos, que são fortes para manter a Ação Penal 470 -e a
manterão por muito tempo - como o centro de todas as estratégias
políticas da direita, em geral, e da oposição midiática, em particular. O
primeiro motivo é que, através da
judicialização do processo político,
poder-se-á criar a ilusão que é possível escrever um novo Brasil - mais
decente e mais democrático - por fora da política, logo, principalmente
através de decisões do Poder Judiciário, que é pouco influenciável pelos
movimentos sociais populares e muito influenciável pela “opinião
pública” da mídia conservadora.O segundo motivo, ligado ao
primeiro, é que
este “deslocamento” da luta política para o âmbito do
Judiciário poderá funcionar como uma alternativa à hegemonia do PT e da
esquerda no âmbito eleitoral,
já que a oposição conservadora, que
sucateou o Brasil quando esteve no poder (representada pelo
demo-tucanato) não ofereceu, até agora, nenhuma esperança de poder nos
próximos anos. Assim,
o Poder Judiciário, erigido -como está sendo
proposto- à condição de grande menestrel da moral pública e da ética
política, poderá transformar-se no centro político da vida política
nacional, esvaziando a luta ideológica, programática e política, entre
os partidos, nos movimentos e no Parlamento.É construída, desta
forma, a substituição dos Partidos, do Parlamento e dos movimentos
sociais, pelo Poder Judiciário, através deste processo de
“judicialização da política”. Sobre esta judicialização, o voto popular
não pode exercer nenhuma influência direta ou visível, pois sobre o
Poder Judiciário os jogos de influência são absolutamente restritos,
totalmente elitizados e manipuláveis por poucos grupos sociais, o que,
aliás, é normal em todas as democracias do mundo, como sempre analisava e
reconhecia o mestre Norberto Bobbio.
Assim, a Ação Penal 470
continuará sendo - se o Parlamento e os Partidos não reagirem com
reformas sérias que deem mais dignidade ao fazer político democrático - o
centro do d
ebate pautado pela mídia e pela direita anti-Lula. A
oposição partidária não conseguiu - ao longo destes oito anos -
configurar um projeto alternativo convincente em torno da hegemonia do
capital financeiro, pois os interesses empresariais que lhes davam
sustentação plena -tanto locais como internacionais- não estão mais
unificados pela pauta neoliberal. O surto de crescimento e
desenvolvimento das forças produtivas no país, durante os governos Lula,
e a crise aguda do modelo neoliberal na Europa, que prosseguiram com o
governo da Presidenta Dilma, abalaram esta unidade.
A unidade foi
possível até a situação de crise que levou o país ao Plano Real, cujo
resultado no desenvolvimento econômico, foi marcar regras mais claras
para que os agentes econômicos pudessem planejar o futuro em torno de
uma moeda estável, também retirando do Estado as condições de manipular o
seu planejamento financeiro, utilizando a inflação. Como o PT e a
esquerda foram protagonistas essenciais do período pós-real, no qual
ocorreram formidáveis mudanças sociais e econômicas, é natural que tanto
o Partido como os seus dirigentes sejam alvos de uma forte tentativa de
neutralização dos seus méritos, através da exacerbação de seus defeitos
ou limitações.
Mas estes, como se sabe, não são somente
originários de condutas individuais estimuladas pelo sistema político
atual e pela história pouco republicana do Estado brasileiro, mas também
fazem parte, em maior ou menor grau, das “regras do jogo” de qualquer
democracia. Refiro-me, aqui, às condutas que são formas não
transparentes de promoção de políticas de estado, não aos delitos que
sejam cometidos em qualquer época. Estes, os delitos, são normalmente de
conta de Poder Judiciário, mas é costumeiramente depois do seu
julgamento que passam a integrar, com maior ou menor intensidade, os
debates eleitorais e as críticas que os partidos assacam, uns contra os
outros, para ressaltar a sua própria autenticidade.
Os partidos
democráticos e republicanos, independentemente da sua ideologia
específica, devem compartilhar da luta para reduzir ao máximo estes
aspectos perversos de qualquer democracia, sem criar a ilusão cínica que
um processo judicial -seja ele qual for e contra quem for- terá a
capacidade de iniciar uma “era de fim da impunidade”.
Criar a ilusão de
que iniciaremos, com qualquer processo judicial, uma era de “fim da
impunidade”, é criar condições políticas para que, se a oposição atual
chegar ao poder, por exemplo, ela não seja punida pelos seus erros e
delitos, porque a Ação Penal 470, afinal, já fez “a limpeza necessária
no país”, o que é uma supina fraude informativa.Vou mencionar
dois fatos midiáticos típicos, que simbolizam todo um período de luta
política no país, que certamente serão arrolados aos milhares em teses
acadêmicas futuramente apresentadas a bancas especializadas, o que
ocorrerá certamente nos próximos dez anos. O primeiro, apoia-se numa
entrevista concedida pelo meu especial amigo, ministro Ayres Britto -
diga-se de passagem, ministro honrado e qualificado intelectualmente -
que diz (Zero Hora 23.12.12 pg. 8): “O que estamos aqui julgando é um
modo espúrio, delituoso, de fazer política.
A política é mais importante
atividade humana no plano coletivo.”
A afirmativa constante nas
declarações do ministro Britto, que sintetiza muito bem a posição do
Supremo na Ação Penal 470, elege um ponto de partida perigoso para
orientar julgamentos numa Corte Suprema que é sim, também, uma Corte
política.
É uma Corte, porém, que não tem poderes para julgar “o modo de
fazer política”, logo a própria política -que é feita de diferentes
modos em distintos contextos históricos- e que é uma “atividade humana
coletiva”, como bem diz o ministro Ayres Britto.
Os poderes que são
dados ao Supremo pela Constituição, em processos criminais, são para
julgar comportamentos devidamente individualizados pelo Ministério
Público, como determina a Constituição.Aceitar que o Supremo
possa julgar a “política” é promover a possibilidade de incriminações em
abstrato de toda uma comunidade partidária ou de governos, como é comum
em regimes de força.
A Suprema Corte é uma corte política, porque seus
julgamentos têm, muitas vezes, largos efeitos políticos sobre vastos
períodos históricos e porque, na análise e na aplicação das normas,
sempre pendem coordenadas políticas e convicções ideológicas.O
Supremo não é uma Corte política porque seja o julgador da esfera da
política, pois
esse tipo de julgamento, no Estado Democrático de
Direito, é prerrogativa do povo, em eleições periódicas.
E do Parlamento
em procedimentos regulados. A conveniência política, por exemplo, em
liberar uma emenda parlamentar (destinada a promover um investimento
público numa região do país) visando uma votação da Câmara Federal, é
uma política encravada na formação da nossa República. É hábito
(negativo) do nosso sistema político, mas não constitui qualquer delito,
se a liberação for feita dentro das regras vigentes.
Fisiologismo
parlamentar não é da órbita do Supremo: isso é política, em sentido
negativo, é má política; mas é política, usada por todos os governantes
para governar dentro da democracia.
Isso só pode ser desmontado por uma
reforma política, não por decisões judiciais.O Ministro afirmou,
portanto, que “estamos julgando um modo de fazer política”, o que
implica em dizer que os fatos eventualmente delituosos passam pelo juízo
preliminar sobre o “modo de fazer política”. Isso é um rotundo
equívoco.
Quem julga o “modo de fazer política” é o parlamento e o povo:
o parlamento em procedimentos regrados pela Constituição e pelo
Regimento Interno das Casas Legislativas e o povo em eleições
periódicas. Ou seja,
posicionar-se o Juiz, no caso concreto, sobre a
“política que está sendo feita” - já tida pelo Magistrado como “espúria”
e “delituosa” - é restringir a ampla defesa. A partir daquela
convicção, o exame do comportamento individualizado dos réus passa a ser
secundário, pois eles são agentes “de um modo espúrio e delituoso” de
proceder: criminosos previamente identificados.
Assim, o
indivíduo, como réu, subsome-se na criminalização da política
presumidamente feita pelo governo e não tem saída nem defesa.
O
julgamento passa a ser principalmente o julgamento de um “modo de fazer
política”, que tanto envolve os réus –integrantes do coletivo político
considerado como espúrio e delituoso- como também todos os que estiveram
ligados, direta ou indiretamente, às políticas de governo. Todos são
culpados: inculpação em abstrato, que foi obrigada a buscar algum tipo
de sentido na interpretação ampliada do “domínio funcional dos fatos”,
para tentar justificar racionalmente as condenações.
O adequado
às funções de uma Corte Superior em julgamentos desta natureza é apanhar
os fatos e atos (individualizados na denúncia do Ministério Público) e
contrastá-los com as normas que regulam as funções dos agentes públicos.
Este contraste é que possibilita a criminalização, ou não, das condutas
políticas dos indivíduos, através do sistema de direito. Este é o
sistema que dá ordem, materialidade e previsibilidade ao sistema
político e que pode promover tanto julgamentos políticos nas esferas
pertinentes, como consolidar juízos públicos sobre partidos e
indivíduos, com influência nos processos eleitorais.
A partir
deste percurso, da quantidade das pessoas envolvidas nos delitos, da
gravidade das violações legais e dos efeitos destas, sobre as funções
públicas do estado, é que uma política de governo, no seu conjunto, pode
ser taxada como “espúria” e “delituosa” e daí julgada pela soberania
popular.
O que se constata, em contradição com os fundamentos da
sentença da Ação Penal 470, é que o “modo de fazer política” do
governo
Lula (que na verdade não estava formalmente em julgamento na ação
referida) levou o Brasil a um formidável progresso social e econômico, a
um avanço democrático extraordinário, a um prestígio internacional
inédito, que coloca o cidadão comum na velha disjuntiva: é melhor ter um
governo que tenha um modo “espúrio” e “delituoso” de fazer política,
que nos consiga tudo isso, ou um governo inepto, mas sério, no qual nós
continuamos na marginalidade histórica e social?
Como
a
disjuntiva promovida pela decisão do STF é falsa, o cidadão comum -que é
o principal objeto da
manipulação midiática em torno do julgamento-
responde por instinto de classe e pelo princípio da aparência imediata
(“de onde vêm estes ataques?”): “
prefiro o Lula e agora a Dilma, pois
alguém está certamente me enganando nesta história toda”. E assim
começam as pessoas a
prestar atenção em quem serão os beneficiados pela
eliminação da memória popular dos governos do Presidente Lula e do seu
suposto modo de fazer política.A razão histórica de
caráter
udenista do Supremo, julgando uma política “espúria” e não os réus,
torna-se uma contribuição para uma razão cínica imediata, erguida sob
premissas falsas (“prefiro” -pensa o povo- “quem rouba, mas faz”), mas a
seguir se refaz como autoconsciência do protagonismo democrático do
povo: “vamos reeleger a nossa Dilma, porque ela é uma boa continuadora
do nosso Lula”.
Uma oposição sem rumo e sem propostas recebeu de
presente um processo de judicialização da política, feito dentro da
ordem jurídica e política atual, compartilhado pelo esquerdismo
travestido de UDN pós-moderna. Não tinha como aproveitar, pois estava
envolvida demais com o fetichismo neoliberal, com suas divisões
internas, com a sua ausência de compreensão do país e do seu povo.
O
segundo fato, ao qual quero referir, merece menos reflexão, mas não é
menos significativo. Num dia desses, às 7h34 da manhã, na Globo News, a
simpática Cristiana Lobo anunciava o seguinte, literalmente: “A CPI do
Cachoeira não termina, enquanto isso o bicheiro ganha liberdade”.
Atenção, a “culpa” do suposto delinquente ter saído da prisão não é
decorrente de uma decisão do Poder Judiciário, que já estava condenando
dirigentes petistas a pesadas penas, num processo altamente politizado. A
culpa, sugere a notícia, foi da CPI, que é dirigida por um petista, que
ainda não terminara certamente o seu trabalho “espúrio”.
A culpa é,
pois, da política e dos políticos, parece badalar o oposicionismo sem
rumo.Em todo este contexto,
a Ação Penal 470, que poderia ser um
grande marco de afirmação do Poder judiciário e de ressignificação da
política em nosso país, tornou-se predominantemente uma arena de
desgastes tentados contra Lula, a esquerda e o PT, como partido que
lidera este formidável processo de mudanças no país: a judicialização da
política despolitizou a oposição e empobreceu, ainda mais, nosso
sistema político já falido.É certo, porém, que esta ação penal
não é apenas fracasso, o que poderá ser testado com
os próximos
processos que já estão em curso, que certamente não terão o mesmo
interesse midiático que esta ação despertou. Mas ela incidiu largamente
sobre o futuro do país e reorganizou a pauta dos partidos e da mídia:
hoje a questão já é “o que faremos em 2018?” O “esquema” visivelmente
não deu certo: Dilma, Lula e o PT, vão ganhar as eleições em 2014 pelo
que já legaram ao país. Com isso, não estou dizendo que
o Poder
Judiciário entrou em algum esquema previamente concebido, mas que
foi
devidamente instrumentalizado e “aceitou” esta instrumentalização ora
falida.Trata-se, agora, nós da esquerda e do PT, de nos
prepararmos para as próximas eleições de 2014 com Dilma, mas inaugurando
uma nova estratégia. Descortinando -já a partir das próximas eleições
presidenciais- os traços largos e os largos braços de um programa
destinado a reestruturar a democracia brasileira, para mais democracia
com participação cidadã, mais transparência com as novas tecnologias
infodigitais, mais combate às desigualdades sociais e regionais.
Sobretudo partindo da compreensão que
todos “querem mais da vida do que
pão e manteiga”, como dizia Döblin do seu personagem.
O fim da
miséria, que já está no horizonte, é impulso para exigências mais
complexas por parte de todo o povo e isso exige, também, um partido
dirigente que supere os velhos métodos de direção tradicionais, que
normalmente são apenas reativos às conjunturas às vezes difíceis, que
atravessam os seus líderes: um partido que trate o cotidiano como tal,
mas pense no processo e na História. Pensar em 14 pensando em 18. Neste
ano de 2018, independentemente da qualidade dos nossos governos, o
sentimento de renovação já estará em pauta no Brasil, face às próprias
transformações que engendramos nos quatro governos seguidos, que
provavelmente já teremos protagonizado no país.
Pensar assim é
tarefa do Partido, não é tarefa de governo. A menos que abdiquemos da
nossa função de sujeito político e passemos a ser um escritório de
explicações sobre o passado. Se o nome “refundação” ainda fere, por
equívoco, ouvidos mais sensíveis, falemos em renovação de fundo e de
forma. Não para fugir das nossas raízes, mas para ancorá-las no presente
das novas classes trabalhadoras, das novas classes médias, das novas
formas de produzir, prestar serviços e distribuir riqueza, dos novos
mundos da economia criativa, das novas formas de produção da
inteligência, dos novos estatutos de relacionamento global, das novas
demandas que não são necessariamente de classe, mas ingredientes básicos
de uma sociedade justa e, sobretudo, mais e mais feliz. O nome disso é
“novo socialismo” ou “nova social-democracia”: isso quem decide não é o
partido.
(*) Governador do Estado do Rio Grande do Sul
Os
autoritários de hoje
Por Marcos Coimbra, Presidente do Instituto Vox Populi
O pensamento autoritário já viveu dias melhores no
Brasil. Sua credibilidade já foi maior, e suas ideias, mais consistentes. Seus formuladores,
mais respeitados e maior sua influência na vida nacional.
Se compararmos Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Alberto Torres e Francisco
Campos, seus principais expoentes na República Velha e durante o Estado Novo,
aos autoritários de hoje, a distância é abissal.
Seus sucessores contemporâneos são de dar pena. Salvo as exceções de praxe,
faltam-lhes educação e estilo. Substituíram a disposição para o debate pela
ofensa e a repetição de lugares-comuns. São ignorantes. O que os une aos
antigos são as convicções que compartilham. A começar pelo que mais distingue o
autoritarismo ideológico: a certeza de que a democracia pode ser boa no plano
ideal, mas é irrealizável na prática. No mundo real, o povo seria incapaz
de se governar e precisaria das elites para orientá-lo. Sem sua proteção
paternal, se perderia.
Diferentemente do passado, muitos dos autoritários da atualidade se abrigam
na mídia conservadora. Sem a proteção que recebem de seus veículos para
falar alto e se exibir como valentes, não existiriam.
Mas há autoritários hoje no mesmo lugar em que, no passado, militaram
vários: no Judiciário e cargos afins. Alberto Torres foi ministro do
Supremo Tribunal Federal, Oliveira Vianna, do Tribunal de Contas da União, e
Francisco Campos foi consultor-geral da República.
O julgamento do “mensalão” tem sido um momento privilegiado para conhecer o
pensamento autoritário atual em maior detalhe. Seus representantes na mídia
estão esfuziantes. O andamento do processo no Supremo Tribunal Federal foi
melhor que a encomenda. No fundo, todos sabiam quão frágil era a denúncia
montada pela Procuradoria-Geral da República.
A alegria de ver expoentes do “lulopetismo” condenados os enche de entusiasmo.
Querem revidar em compensação a tudo que os entristeceu nos últimos anos. Quantas
vezes foram forçados a se desdizer? Quantas projeções furadas fizeram? Quantos
amigos na oposição tiveram de consolar?
Não tínhamos tido, até recentemente, a oportunidade de ver, com clareza, o
autoritarismo existente no STF. Era um tribunal predominantemente discreto,
que trabalhava longe dos holofotes. Vez por outra aparecia, mas para se
pronunciar a respeito de questões específicas, ainda que nem sempre de maneira
apropriada.
Agora, não. Fez parte do pacto da mídia conservadora com a Corte a mudança
radical desse padrão. As luzes foram acesas, os microfones ligados e os
repórteres postos a serviço. Tudo o que os ministros dissessem seria
ouvido, registrado e divulgado, com pompa e fanfarras.
E eles se puseram a falar.
Ao longo do julgamento, à medida que liam seus votos, vimos quão parecidas
são as ideias de quase todos com aquelas dos autoritários de cem anos atrás.
No mês passado, Luiz Fux aproveitou a visibilidade de orador na posse de
Joaquim Barbosa na presidência do tribunal para apresentar algumas das suas.
Tomemo-las como ilustração do que pensam por lá.
O discurso de Fux foi extraordinário. Até no que revelou da cumplicidade que
se estabeleceu entre a mídia e o tribunal. É pouco provável que fosse
tão assumidamente autoritário se não se sentisse amparado pelos
correligionários na mídia.
Ficou famosa sua tortuosa formulação de que seria natural que o Judiciário se
tornasse mais ativo, para intervir na “solução de questões socialmente
controversas, como reflexo de uma nova configuração da democracia, que já não
se baseia apenas no primado da maioria e do jogo político desenfreado”.
Parece que Fux imagina ter feito uma descoberta. Que haveria uma “nova
configuração da democracia”, sabe-se lá o que isso seja, que exigiria deixar
de lado o “primado da maioria” e o tal “jogo político desenfreado”.
Nada há, entretanto, de original no diagnóstico e no receituário. Antes
dele, outros autoritários haviam chegado ao mesmo lugar. Todos, de antes ou
recentes, têm a mesma aversão à vontade das maiorias. No fundo, acreditam
que o povo não está “preparado para a democracia”. Que exige “homens de bem”
para guiá-lo, livrando-o dos “demagogos”.
Todo autoritário é antidemocrático, quer frear o “jogo desenfreado”. E
se imagina ungido da missão de fazê-lo, pela sua autoatribuída superioridade
em relação ao cidadão comum.
Talvez por desconhecer de onde vêm as ideias que professa, Fux – e os que se
parecem com ele – acredita estar sendo “novo”.
É tão velho quanto a Sé de Braga.
Quarta-Feira, 19 de Dezembro de 2012
O STF. Por que não?
Por Flávio AguiarLeio, compartilhando, a indignação dos companheiros com
a
decisão do STF invadindo prerrogativas do Congresso Nacional e
cassando os mandatos dos deputados considerados culpados no processo
470.
Mais um desmando, eivado de contradições, sobretudo a do voto
decisivo do ministro Celso de Mello: cassou aqui e agora onde não
cassara lá e antes. A argumentação de que no meio do caminho foi
votada a Lei da Ficha Limpa e outras leis não cola. O assunto é matéria
constitucional, no fim de contas.
Porém no fim de contas, esse acontecido, bem como o comportamento no Supremo e da mídia em torno não surpreende muito.
Afinal, segue
tendência internacional.
Desde
o golpe que levou Bush Filho ao poder contra Al Gore, há uma tendência
de forças de direita se aglutinarem em torno do Judiciário para, sempre
que possível, derrogar ou ameaçar a soberania do voto popular.
Foi assim
em Honduras. Por que não no Brasil?Na falta de outros
argumentos, caminhos ou votos, a direita brasileira encastelou-se no
Supremo. A batalha judicial também é o último esteio da direita
argentina, no que diz respeito à lei contrária à indevida concentração
da mídia.
O difícil de assimilar é que neste caminho envereda-se
por confrontos institucionais inusitados, como este agora provocado com o
Congresso que, no momento (quarta-feira 18) quer votar mais de 3000
vetos em bloco para votar um único, o dos royalties do petróleo. Sim,
houve a liminar acolhida pelo ministro Fux no meio do caminho, mas a
pedra já estava bloqueando o bom entendimento e abrindo espaço para a
bílis mal-humorada.
Há uma coisa que chama a atenção nisso tudo. É
o despropositado poder da vaidade humana. Pode-se ler isto tanto na
arrogância dos comentários que pedem o linchamento dos réus, quanto no
comportamento desavisado de juízes que ameaçam a validade de nossa
Constituição tão dificilmente conquistada.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.