sábado, 27 de novembro de 2010

O xadrez é um jogo

Antes de entregar para publicação o texto que vai a seguir confesso que fiquei preocupado, pois nele falo de coisas que dizem respeito à filosofia, a psicologia e à pedagogia e eu não sou especialista em nenhum desses três campos. Em todo o caso, mesmo sendo adepto do lema Ne sutor ultra crepidam, resolvi arriscar. E o fiz na esperança de que alguém se dignasse de criticar o que eu escrevi, se descobrisse incongruências, equívocos, erros, etc.

O texto apresenta algumas experiências minhas com o ensino do xadrez (coisa que comecei a fazer em 1969, na AABB-RIO) e uma tentativa de explicar por que certas coisas acontecem como acontecem.

O xadrez é um jogo

Alfredo Pereira dos Santos

Ninguém nasce pensando. A capacidade de pensar é coisa que vem com o tempo. O raciocínio vem depois. Então, trata-se de um processo.

Raciocinar significa pensar logicamente. Dito de outra forma, o raciocínio é uma forma de pensamento onde entram as regras da lógica.

Alguém já disse que as palavras são os “tijolos do pensamento”. Isto quer dizer que os pensamentos são construídos com palavras. Eu olho pela janela e penso: “O dia está nublado”. Nesse pensamento temos artigo, substantivo, verbo e adjetivo. Obviamente, ninguém precisa saber dessas coisas para pensar. Mas a pessoa tem que ter o conceito, a idéia do que seja “dia” e a do que seja “nublado”. Embora possa não ter a menor idéia do que seja “conceito”.

Conceito (do latim conceptu) é aquilo que o espírito concebe ou entende, idéia, noção.

Uma criança muito pequena sente dor e manifesta pelo choro o desconforto que a dor lhe causa. Mas ela não elabora discurso sobre a dor, não faz reflexões sobre a dor porque lhe faltam palavras para isso. Com o tempo ela aprende a associar a sensação desagradável da dor à uma palavra, que pode ser a própria palavra “dor” ou outra que lhe seja sinônima ou correlata, como “sofrimento”. Desse modo, o que antes era apenas sensação passa a ser um conceito, uma idéia.

Com o tempo a criança começa a separar em categorias as coisas do seu mundo sensorial e do mundo dos objetos. Dor é coisa má. Carícia é coisa boa. Comer também. Praia em dia ensolarado é legal, mas queimadura de pele não. Então, o que vem depois das sensações (Piaget definia a fase da vida da criança que vai dos zero aos dezoito meses, de “fase sensório-motora”) é o conceito, a idéia. Posteriormente essas idéias são associadas a algum tipo de julgamento, do tipo “isso é bom” ou “isso é mau”. De posse desses elementos entra em cena o “juízo”.

Locke dizia que “Não há nada no domínio da razão que não tenha passado antes pelos sentidos”.

Juízo (do latim judiciu) é a faculdade intelectual que compara e julga. É apreciação, opinião, voto, parecer.

Existindo o conceito e o juízo, estão colocadas as condições para que o raciocínio se apresente.

Por exemplo, temos o conceito de dor, de Sol, de pele e de queimadura. Nesse momento eu não estou sentindo dor, mas sei o que é a dor. Não estou vendo o Sol, mas sei o que é o Sol. Não preciso sentir uma coisa nem ver a outra para saber o que são, pois são conceitos na minha mente.

O Sol queima a pele, o que provoca dor. Dor é coisa desagradável, que eu quero evitar. Desse modo eu concluo (raciocino) que, para aproveitar um belo dia de Sol sem ter o desprazer da dor eu não devo ficar por muito tempo exposto ao Sol.

Então, há essa hierarquia: conceito, juízo, raciocínio. Filosoficamente falando, raciocínio é a operação pela qual o espírito tira a conclusão das premissas.

Nesse ponto quero esclarecer que quando falo em “espírito” não emprego a palavra com qualquer conotação mística ou religiosa. Refiro-me tão somente ao lado intelectual do homem.

Com o tempo aprendemos também que juízos distintos podem ser atribuídos a um mesmo conceito. Existem homens bons e existem homens maus. E um mesmo homem pode ser bom um dia e mau no outro. Ou bom numa circunstância e mau em outra. Eu bendigo a brisa agradável que ameniza as agruras do calor, mas reclamo quando ela espalha os meus papeis pela sala. A brisa é “boa” ou é “má”? Nem uma coisa nem outra. A brisa é a brisa. A “bondade” ou a “maldade” dela está no juízo que dela fazemos, de acordo com as circunstâncias.

Pelo exposto, podemos concluir que pode ser arriscado atribuir rótulos definitivos às coisas, sem levar em conta as circunstâncias.
A essa altura, já falamos um bocado e alguém poderia perguntar: “mas o que tudo isso tem a ver com o jogo de xadrez?”

A resposta natural é que tem tudo a ver. E começamos a demonstrar isso lançando a seguinte questão: “COMO APRENDEMOS A FALAR?
Observem que nenhuma criança aprende a falar indo para a escola (embora não se possa excluir tal possibilidade. Mas o fato é que essa não é a regra geral). Quando a criança vai para a escola já sabe falar, se expressar, se comunicar.

A criança aprende a falar no mundo e com o mundo. Elas repetem o que ouvem, imitam, seguem os modelos que lhes são apresentados. Se no seu mundo se diz “a gente vamos” ou “para mim fazer” ela vai usar essas expressões. E vai se comunicar muito bem, pois estará seguindo o padrão do seu grupo social. As dificuldades vão surgir quando, na escola, ela entrar em contato com a norma culta da língua e constatar que alguns dos seus hábitos “lingüísticos” são de difícil erradicação e lhe tiram pontos nas provas.
O xadrez é uma forma de expressão (tal como é a arte), podendo ser visto também como uma linguagem. Todavia ele é um jogo. Como tal, o seu papel na vida da criança (e mesmo do adulto) não pode ser negligenciado, ignorado ou subestimado.

Louis Meylan, em A ESCOLA SOB MEDIDA, diz que “a criança e, em grande parte, o adolescente,... tem imperiosas necessidades de crescimento. Ora, a forma de atividade, que responde à necessidade de crescimento, É O JOGO (a caixa alta foi por minha conta, para dar ênfase ao que foi dito). O ser humano tem infância e adolescência, porque é necessário que brinque, e brinque muito tempo, para tornar-se capaz de corresponder às múltiplas exigências da sua condição".

Assim, o jogo constitui a atividade normal e específica do jovem ser; aprende, brincando, a conhecer as propriedades das coisas; exercita todos os seus sentidos, classifica os objetos em série, segundo o seu tamanho ou sua cor; caça as palavras, repete-as, ensaia-as; do mesmo modo ensaia toda espécie de raciocínios; em seus brinquedos com os amigos, treina obedecer e mandar. Do nosso ponto de vista de adultos, seríamos tentados a dizer que trabalha, tal é a seriedade e, as vezes, a paixão que manifesta em seus jogos. Mas nada disso para ele é trabalho. Ele brinca: todas as atividades lhe interessam em si mesmas e por si mesmas, não tendo em vista um fim que estaria fora ou além delas. Brinca porque é preciso brincar, para fortificar em si todos os poderes específicos do homem, para vir a ser o que é. Mas não sabe coisa alguma de tudo isso; só perceberá mais tarde, e seria absurdo, no momento presente, procurar fazê-lo compreender. Ele brinca, simplesmente; e, brincando, corresponde à sua vocação”.

Que o jogo é coisa fundamental na vida da criança não se discute. Piaget falava-nos dos jogos-sensórios motores, correspondendo à fase inicial da vida da criança, dos jogos simbólicos, correspondendo a uma fase posterior e, finalmente, dos jogos de regras, que ele definiu como a “atividade lúdica do ser socializado”.

O xadrez se enquadra na categoria dos jogos de regras. Isso significa que a criança deve ter uma certa maturidade intelectual para assimilar os seus conteúdos. Em que idade essa maturidade ocorre é coisa difícil de definir. Há crianças de cinco anos que já o jogam enquanto outras, com o dobro da idade, diante do tabuleiro, ficam colocando as peças umas em cima das outras, dando-lhes mais prazer fazer isso do que jogar. Nada de novo sob o Sol. Há muito se sabe que não há correlação direta entre idade mental e idade cronológica. Mas atentem para o seguinte: ficar colocando as peças umas sobre as outras é TAMBÉM UM JOGO.

Não vamos dar muita importância a essas diferenças. O que hoje empilha as peças pode vir a ser forte jogador mais adiante enquanto que o outro, que já jogava de forma compenetrada aos cinco anos, pode permanecer nas categorias mais baixas do jogo. Exemplos não faltam. Segundo relatam, Mikhail Tahl era muito fraquinho aos nove anos de idade e, mesmo em anos posteriores, não se destacou, de modo que ninguém poderia prever que um dia chegaria a campeão mundial.

Então, vejam bem: no universo dos jogos que vão fazer parte da vida da criança, O XADREZ É APENAS UM DELES. Desse modo não se justificam os discursos apologéticos de alguns defensores do jogo de xadrez, como se este fosse o néctar dos deuses, a oitava maravilha do mundo. Que os jogos vão fazer parte da vida da criança, não há dúvida. Quanto ao xadrez, não necessariamente.

Podemos achar que o xadrez é ótimo, mas as crianças podem preferir fazer outra coisa que não jogar xadrez. Por outro lado, pais, professores, gente do governo, etc., podem não ver no xadrez as maravilhas que muitos enxadristas vêem. A criança vive no mundo dos adultos, eles não se interessam pelo jogo e elas, por conseguinte, também não. Elas vêem TV e jogam videogame.

Como o xadrez vai entrar nos corações e nas mentes dos brasileiros eu não tenho as respostas. O que suspeito, contudo, é que os discursos laudatórios feitos por alguns defensores do xadrez, são totalmente ineficazes e, as vezes, até contraproducentes. A ênfase nas “maravilhas” do xadrez compartilhada por alguns pais e instrutores, não raro se manifestam como ansiedade. Essa ansiedade se projeta na criança que, não suportando o fardo, renuncia ao jogo. Como disse Meylan, “a criança quer brincar”. Não lhe interessa as nossas teorias sobre o jogo. Que, aliás, ela não entende.

Desse modo, nessa questão de se levar o xadrez às escolas, de se ensiná-lo às crianças e de popularizá-lo, há muita coisa a ser considerada. Deixemos, porém, de lado essas questões, de solução complicada, e vamos nos ater a uma outra, que surge quando a criança começa a entrar no “espírito do jogo” e a raciocinar (forma de pensamento) em termos de seus objetivos e das suas regras.

Se, como foi dito, as palavras são os tijolos do pensamento, então, quais são os “tijolos” do pensamento enxadrístico? Quais são as PALAVRAS ENXADRÍSTICAS?

Para começar, creio que estamos de acordo que REI, DAMA, TORRE, BISPO, CAVALO e PEÃO são “palavras enxadrísticas”, embora o sejam também do nosso vocabulário cotidiano. Só que o REI não é o da Inglaterra, nem a DAMA é a da corte, a TORRE não é aquela onde ficou preso o Ricardo Coração de Leão, o BISPO não é o de Roma, o CAVALO não é o Incitatus, preferido do imperador Calígula, nem o PEÃO é o que trabalhou na obra da esquina. São palavras claramente associadas a elementos do jogo de xadrez, com suas imagens e representações próprias. São, efetivamente, PALAVRAS ENXADRÍSTICAS. Nesse contexto, se você disser que “comeu o bispo” ninguém poderá julgá-lo um pervertido. Ou um antropófago, como os índios que comeram o bispo Sardinha.

Nesse ponto faço uma digressão. Eu prefiro a palavra “capturar” em lugar de “comer”, mas nada tenho contra esta, pois está perfeitamente de acordo com as nossas tradições antropofágicas. E o próprio mestre Machado de Assis, que era enxadrista, se referiu ao xadrez como “um jogo delicioso... onde todos comem a todos”.

Isso posto, que outras PALAVRAS ENXADRÍSTICAS seriam dignas de serem mencionadas? Creio que com um exemplo me sairei melhor na resposta.


DIAGRAMA 1


Quando eu queria saber o grau de conhecimento que um aluno novo (mas que já tinha aprendido o jogo) tinha do xadrez, eu mostrava-lhe alguma posição constante do meu repertório e perguntava: O QUE VOCÊ FARIA NESSA POSIÇÃO, JOGANDO COM AS BRANCAS?

Uma dessas posições vocês podem ver no Diagrama 1. E certamente já viram que 1. Th8 dá xeque-mate ao rei preto. Óbvio, não é?

Não obstante, com uma freqüência que talvez vocês não imaginem, eu recebia respostas do tipo:

1. Bf6
1. Th7
1. Bh8

Mais uma vez, nada de novo sob o Sol, pois conhecer palavras não significa que se saiba combiná-las bem. Não tem gente que chega à universidade, para fazer curso superior de base matemática e não sabe operar com frações? O professor Jorge de Souza, convidado para dar aulas numa faculdade particular de Brasília, descobriu que os alunos não estavam acompanhando a disciplina de Teoria das Probabilidades porque não sabiam frações. O que fez o professor? Não vituperou os alunos, pois conhecia bem a realidade brasileira. Começou o curso ensinando como se soma, subtrai, multiplica e divide frações.

Então é a mesma coisa. Se o aluno não sabe dar MATE EM UM LANCE, há que se lhe ensinar o “MATE EM ZERO”.



DIAGRAMA 2


MATE EM ZERO eu chamo (e não devo estar sendo original) uma posição em que o mate já está sendo dado. Um exemplo é o do Diagrama 2. Vamos agora fazer a seguinte afirmação:

TODAS AS POSIÇÔES DE MATE EM ZERO SÃO PALAVRAS ENXADRÍSTICAS.

Elas resultam de combinações das “palavras” mais simples que denotam os nomes das peças. Essas combinações resultam nas diversas configurações possíveis do mate.

Então, é imprescindível que o aluno seja apresentado a essa situação do Diagrama 2, antes que se lhe ensine a técnica do Mate de Rei e Dama contra Rei. Pode-se até lhe dizer coisas como “o mate só é dado na margem do tabuleiro”, mas isso não é suficiente. O aluno tem que ver a posição. Em outras palavras, tem que ter a IMAGEM DO MATE na sua mente. A imagem e as suas variações. Como existem 364 posições de Mate de Rei e Dama contra Rei (segundo os que gostam de fazer essas contas) não faltarão exemplos a serem mostrados. O professor mostra uma outra posição do mate, obtida por rotação ou translação, e pergunta ao aluno: HÁ MATE NESSA POSIÇÃO? JUSTIFIQUE A SUA RESPOSTA.

Naturalmente que estou me antecipando e isso porque queria falar no MATE EM ZERO. Mas antes há que se falar nas posições onde as únicas peças existentes são os Reis. E explicar que os REIS JAMAIS SE TOCAM. Essa circunstância é que determina o porque do Rei preto não poder fugir do ataque da Dama branca: porque um Rei não pode encostar no outro. Então, há que haver um encadeamento lógico na apresentação dos temas. Naturalmente que o movimento da Dama teria que ser abordado antes.

Se as palavras são os “tijolos do pensamento” então salta aos olhos que quanto mais palavras (tijolos) tivermos maiores serão as possibilidades de combinações dessas palavras. Maiores serão as possibilidades de expressão.
Bertrand Russell (matemático, filósofo, prêmio Nobel de literatura em 1950) disse que “Quem só conhece 1500 palavras não consegue se expressar nem com elegância nem com precisão, a não ser em poucos assuntos e, assim mesmo, pelo mais mero acaso”.

Uma pessoa com um vocabulário de 800 palavras consegue se comunicar. Pode dizer que está com fome, com sede, que procura emprego. Mas não vai fazer discurso requintado nem pode entender algumas manifestações mais elaboradas do mundo cultural. Uma coisa é a frase “Maria foi à feira comprar verduras”, que qualquer um entende. Outra coisa é uma frase como “A crítica nietzschiana à metafísica tem um sentido ontológico e um sentido moral”.

Algumas posições do xadrez são como a frase sobre a mulher que vai à feira. Fáceis de entender. Outras posições são como a frase que fala do filósofo alemão Nietzsche. Exige-se um certo background para o seu entendimento.
A crianças que não viram o mate em um não puderam fazer o “discurso do mate” porque lhes faltou a palavra (enxadrística) essencial.

Existem várias situações temáticas (peões atrasados, colunas abertas, etc.) que podem ser consideradas PALAVRAS ENXADRÍSTICAS. Como as palavras do nosso cotidiano, algumas são simples, como CASA, outras mais cheias de significado, como EPISTEMOLOGIA. De qualquer forma, são com essas palavras que construímos as nossas orações, os nossos discursos.

Nem sempre se adquire vocabulário conversando. Tem gente que conversa há 60 anos e conserva o mesmo vocabulários limitado. Um bom método de melhorar o vocabulário é pegar bons livros e ler. Sem excluir, é claro, a hipótese de manter contato e conversações com pessoas mais cultas, como o Machado de Assis gostava de fazer.

Da mesma forma nem sempre se aumenta o vocabulário enxadrístico jogando partidas. Há que se ir, aos poucos, conhecendo, através de bons livros e de bons professores, palavras mais complexas, com significados mais abrangentes. Em suma, adquirir cultura enxadrística. E avaliar o próprio progresso no confronto com os mais fortes.



DIAGRAMA 3


De posse desses elementos o aluno, diante de uma posição como a do Diagrama 3 não vai errar o “discurso”, porque já terá todas as “palavras” apropriadas para fazê-lo.

O tema é vasto e penso que alguns pontos deveriam ser mais detalhados. Mas não quis que esse texto ficasse muito longo.

Rio de Janeiro, 15 de março de 2009

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