terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O bandido bom e as selfies com Eike Batista

https://canalcienciascriminais.com.br/bandido-bom/





Canal Ciências Criminais, 31/01/17
 



O bandido bom e as selfies com Eike Batista




Por Daniel Kessler de Oliveira





Recebo do amigo e brilhante professor Cássio Benvenutti uma reportagem que mostra brasileiros tirando selfies com Eike Batista no aeroporto de Nova York.

Bom, creio que todos sabem, pelo tanto que fora divulgado que o empresário brasileiro teve sua prisão preventiva decretada e embarca para o Brasil com rumo certo para um estabelecimento prisional.

Mas e por que razão brasileiros tietam um indivíduo com uma prisão preventiva decretada e que está se entregando para a polícia?

A mesma reportagem destaca provocações, xingamentos por parte de outras pessoas, mas revela, também, muitos que elogiavam o empreendedorismo do milionário brasileiro.

Pois bem, não adentrarei aqui na seara das acusações que pesam sobre ele, tampouco da decisão que decretou a sua preventiva, por não ser este o foco que pretendo trabalhar.

O que quero refletir, para tentar alcançar alguma possibilidade de compreensão, é o porquê da existência de um filtro de seletividade na definição do bandido para grande parcela de nossa sociedade.

Por que uma sociedade repleta de cidadãos de bem, que enchem a boca e estufam o peito para bradar frases como: bandido bom é bandido morto ou a clássica: direitos humanos para humanos direitos, chegando a mais nova e vergonhosa: menos corrupção e mais chacina não sente a mesma ojeriza quando se trata de um bandido do naipe de Eike Batista?

Simples. Vivemos em uma sociedade doente, por diversos fatores, mas uma sociedade extremamente dependente e escrava do capital, onde o dinheiro tudo compra, inclusive o respeito.

O mesmo cidadão capaz de enaltecer as virtudes de Eike Batista e cumprimentá-lo pelos seus feitos é capaz de vibrar com o linchamento público de um jovem que tenha sido pego furtando algum objeto ou com os números de mortos nas chacinas em prisões.

Não se trata de defender nenhuma das condutas, as pessoas que cometeram crimes devem sofrer o devido processo e receber a justa punição, independente de quem sejam.

Mas é comum vermos como o ódio ao bandido na maioria das vezes se projeta como mais uma das faces do ódio aos pobres, aos menos favorecidos.

Os ditos cidadãos de bem não se projetam no jovem da favela, mas deliram na possibilidade de se projetar em um indivíduo como Eike Batista.

Um indivíduo como Eike é o que eles querem ser. É o que sonham em representar, pelo que ele fez? Não, mas pelo que ele tem (ou teve).

Uma sociedade em que trata bem as pessoas pelo que elas têm, sendo irrelevante se o caminho percorrido fora lícito ou ilícito.

Quantas vezes ao questionarmos o ganho de alguém, não somos taxados de invejosos ou ao duvidar do ganho lícito de alguma pessoa não somos surpreendidos com frases do tipo: Mas ele tá rico e tu?

Isto são faces de mais uma dentre tantas doenças sociais que as redes sociais não criam, mas escancaram, os fins justificam os meios e tudo é válido nesta corrida insana em busca do dinheiro e do poder.

Obviamente que aqui não tem nenhum discurso hipócrita de ódio ao dinheiro, todos queremos conquistas em nossas profissões e não é feio almejar uma boa ou ótima condição financeira, mas como nos ensinou Frejat: é preciso dizer, ao menos uma vez, quem é mesmo o dono de quem.

Ou seja, nesta sociedade submissa ao dinheiro, o bandido pobre merece a morte, o ódio, a prisão apodrecida, enquanto o bandido rico, no fundo recebe minha inveja, minha ira por não ter sido eu a viver aqueles momentos e obter aqueles ganhos.

Um vizinho traficante, corrupto, sonegador, que me convidar para passear no seu iate e me proporcionar alguns momentos de pura felicidade ganhará o meu respeito e tudo o que ele tenha feito de errado será secundário e aqueles que tentarem me alertar, serão recalcados que não tiveram os méritos deles.

E, infelizmente, assim segue a vida em terrae brasilis, com argumentos e jargões carregados de doses cavalares de hipocrisia e contradição entre eles próprios.

Esta reflexão não tenta bradar a pena de morte ao Eike Batista, como não a defende em nenhuma outra hipótese, também não acho que ele deve ser recolhido ao presídio nas condições dos nossos estabelecimentos e sofrer com uma chacina, apenas não aceito o seu trato como herói, justamente pelas pessoas que tanto querem matar os bandidos.

Esta reflexão serve mais uma vez para que não nos deixemos cair na sedução do discurso pronto e falacioso do cidadão de bem. 

Primeiro, quem define quem é o cidadão de bem? O bandido bom é o bandido morto, mas quantos cidadãos de bem também não são bandidos. Ah, mas o meu crime é diferente, dirão eles. Sim, sempre é diferente, sempre há uma justificativa.

O problema, que precisamos enxergar, é que tudo não passa de uma forma de punir e de esconder através de uma política encarceradora: o pobre.

Uma leitura atenta do Código Penal e das leis dos crimes tributários nos permite ver qual o bem jurídico que recebe maior tutela, porque um furto recebe um tratamento mais severo do que uma enorme sonegação, dentre tantas outras passagens que evidenciam isto.

O Direito Penal foi feito para punir o pobre e esta grande parcela da sociedade ou não enxerga isso ou, pior, enxerga e concorda, mas por falta de coragem de defender em voz alta, finge que não vê.

E, assim seguimos, bradando o horror à criminalidade e tirando selfies com acusados de crimes, enaltecendo a seletividade social de nosso ódio.

Trump poupou de veto pessoas de países em que ele fez negócios


https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-times/2017/01/31/trump-poupou-de-veto-pessoas-de-paises-em-que-ele-fez-negocios.htm




UOL, 31/01/17



Trump poupou de veto pessoas de países em que ele fez negócios


Richard W. Painter e Norman L. Eisen*





A ordem executiva do presidente Donald Trump para proibir a entrada nos Estados Unidos de cidadãos de sete países predominantemente muçulmanos está sendo devidamente questionada nos tribunais por, entre outras coisas, sua interferência inconstitucional no livre exercício da religião e negação ao devido processo legal.

Em meio ao furor, acabou sendo ignorado outro perturbador aspecto da situação: o presidente Trump omitiu de sua proibição algumas outras nações predominantemente muçulmanas onde sua empresa fez negócios. Isso agrega ainda mais ilegitimidade a uma das ações executivas mais arbitrárias de nossa história recente, e levanta questões constitucionais significativas.

Os sete países cujos cidadãos estão sujeitos à proibição são relativamente pobres. Alguns, como a Síria, estão sendo devastados pela guerra civil; outros estão só agora saindo da guerra. Uma coisa que esses países têm em comum é o fato de que são lugares onde a organização Trump não tem ou praticamente não tem negócios.

Em compensação, outros países muçulmanos vizinhos não estão na lista, ainda que alguns de seus cidadãos representem um risco tão grande — se não maior — de exportar terrorismo para os Estados Unidos.

Entre eles estão a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Egito. A grande maioria das pessoas que vivem nesses países, assim como as pessoas que vivem nos sete países que estão sujeitas à proibição de imigração, é pacífica e obediente à lei. Mas esses três países exportaram terror para os Estados Unidos no passado. Foi de lá que saíram 18 dos 19 terroristas que perpetraram os atentados de 11 de setembro em solo americano (um ataque que foi idealizado pelo saudita Osama Bin Laden com a ajuda de um egípcio, Ayman al-Zawahri).

Esses países, diferentemente daqueles sujeitos à proibição, são aqueles onde Trump fez negócios. Na Arábia Saudita, a sua mais recente declaração financeira ao governo revelou diversas sociedades limitadas de Trump. No Egito, ele tinha duas empresas do grupo Trump registradas.

Nos Emirados Árabes Unidos, ele havia licenciado seu nome para um campo de golfe e um empreendimento residencial de luxo com spa em Dubai. Algumas dessas empresas fecharam desde então, e outras permanecem ativas.

Olhar para outras nações com grandes populações muçulmanas só reforça esse padrão perturbador. A Turquia, a Índia e as Filipinas poderiam todas representar riscos similares aos dos países banidos que preocupam o presidente. No entanto, Trump fez negócios em todos esses três lugares. Eles também foram omitidos da lista.

É claro que não estamos querendo dizer que qualquer um desses outros países deveria ser acrescentado à lista. Um veto específico por país, que segundo especialistas seria uma forma ineficaz de combater o terrorismo, não deveria existir.

Em vez disso, nosso governo deveria examinar todos os imigrantes em busca de ligações em potencial com crimes ou terrorismo, como vem sido feito há muito tempo. Uma discriminação baseada na nacionalidade da pessoa é uma tentativa mal disfarçada de discriminar com base na religião. E, de fato, o presidente Trump admitiu que ele quer priorizar o assentamento de refugiados cristãos.

A natureza arbitrária e discriminatória dessa ordem é ruim o suficiente; mas, se o presidente também está considerando recompensas para a organização Trump, é muito pior.

Como apontamos em uma ação judicial que iniciamos em caráter oficial contra o presidente, pagamentos para o presidente não somente são antiéticos, como também inconstitucionais se vindos de governos estrangeiros ou entidades controladas por governos estrangeiros, tais como fundos soberanos e bancos estatais.

A Cláusula dos Emolumentos da Constituição proíbe que qualquer um que detenha uma posição de confiança dentro do governo americano, incluindo o próprio presidente, receba benefícios econômicos de acordos de negócios com governos estrangeiros.

Sem a declaração de renda do presidente Trump e outras informações sobre seus negócios particulares, não sabemos a extensão dos benefícios econômicos que ele recebe de governos de países que representam um risco de terrorismo mas não estão em sua lista de países vetados.

O que sabemos é que o presidente Trump em geral se recusou a se desfazer de seus negócios, a revelar quais são os benefícios de governos estrangeiros que estão entrando nesses negócios e a divulgar sua declaração de renda, e insistiu que simplesmente por ser presidente, ao contrário de algum outro funcionário de baixo escalão, ele "não tem conflito de interesses".

E agora, com somente uma semana de mandato do presidente Trump, estamos vendo as consequências devastadoras desse conflito de interesses. Aparentemente, os imigrantes de países que podem fazer negócios com a organização Trump são livres para entrar e sair dos Estados Unidos.

Imigrantes de países que não podem fazer tais transações podem ficar retidos no aeroporto e serem enviados de volta para casa, alguns deles com o risco de morrer.

Depois das eleições muitas vezes ouvimos a frase "ao vitorioso pertencem os espólios". Mas existem limites éticos e constitucionais para essa máxima. Nesse caso, um já suspeito veto à imigração está sujeito a ainda mais dúvidas porque o presidente Trump pode estar olhando para seus interesses como empresário, ao mesmo tempo em que toma decisões sobre seres humanos que querem vir para os Estados Unidos para estudar, ganhar a vida, fugir de perseguições e, em alguns casos, sobreviver.


*Richard W. Painter, professor na Escola de Direito da Universidade de Minnesota, vice-presidente da Cidadãos pela Responsabilidade e pela Ética em Washington, onde Norman L. Eisen é o presidente. Eles foram os advogados-chefe de ética da Casa Branca para os presidentes George W. Bush e Barack Obama, respectivamente

João Doria contra a arte







CartaCapital, 31/01/17



João Doria contra a arte



Por Raisa Pina




“Quem decide o que é arte?”, ouvi uma mulher perguntar em tom de retórica, sem dar tempo de alguém argumentar.

Ela mesma respondeu: “É o dono do muro. E se o muro é público – se é meu, se é seu e se é de outra pessoa, e cada um tem um gosto diferente por arte –, então eu concordo com o Doria: tem que ser cinza.”

A polêmica suscitada a partir da decisão do prefeito de São Paulo acalora o debate do que é ou não é arte, mas vai além: transborda para a disputa política e a defesa dos princípios capitalistas.

Entender que o dono do muro é quem decide o que é arte é eleger o detentor da propriedade privada como o rei de todas as regras: “Se eu paguei, é meu e eu mando” – simples, arrogante e equivocado assim.

Vivemos em circunstâncias onde manda quem tem dinheiro para pagar e a discussão sobre o grafite coloca estética e política num plano comum que explicita a ganância capitalista.
Se o dono do muro é quem decide o que é arte, o que fazer quando o dono é o Estado e a rua é pública?

Apesar de a palavra “pública” envolver diversas acepções, neste caso específico, podemos entender o público como aquilo que pertence a todos. Público é aquilo que é meu, é seu e é de outra pessoa, como bem disse a mulher equivocada do início do texto.

O curioso que se faz presente aqui é uma distorção do público enquanto “de todos” para um público que é “de ninguém”, numa arrogância bastante autoritária, do tipo “Se eu não faço, então ninguém mais deve fazer” ou “Se eu não gosto, então não pode existir”.

Esse é o neoliberalismo direitista distorcendo a noção de democracia como tem feito nos últimos tempos: é assim no Palácio do Planalto, é assim na 23 de Maio.

Enquanto o caminho do progressismo tende à valorização da arte urbana muito pela acessibilidade cultural que ela cria à população, pela aproximação que se faz entre arte e público sem distinção de classe e cor, o neoliberalismo de Dória opta por silenciar a diversidade inclusiva, por calar a voz legítima que vem das ruas e por enfatizar que vivemos em um regime onde quem manda é o dono daquele pedaço de chão.

A parede pública, do povo, essa tem que ser cinza, sem nada a ser interpretado ou questionado ou criticado ou pensado. Pensar não é bom, obediência e silêncio são melhores. Cabeça baixa, sem nada para olhar ao redor, é melhor. E assim a vida mecânica segue, do jeito que a direita gosta.

Quando ouvi aquela mulher falar com tanta força que o muro “tem que ser cinza”, perguntei-a imediatamente: “Mas por que cinza? Por que não pode ser vermelho?” A resposta veio com aquela sensatez forjada depois de um leve gaguejar: “Porque é questão de bom senso”. Não me aguentei e ri. “Bom senso de quem?”, perguntei. “Bom senso, oras”, ela disse como se fosse algo bem definido no dicionário Aurélio.

Bom senso: s.m.; parede cinza. A gota d’água para mim é ter que, além de tudo, engolir em seco o nome do projeto: “Cidade Linda”.

Não há nada de lindo em um muro cinza fúnebre que aniquilou obras de arte tão importantes seja pela estética, seja pela contribuição à história da arte no Brasil e no mundo, seja pela apropriação dos espaços públicos urbanos que devem sim ser cada vez mais ocupados, seja por colocar arte no cotidiano de pessoas que não se identificam com as instituições culturais ou que não tem tempo para a arte devido a exploração capitalista da mão de obra.

O que Doria cometeu foi um crime ainda não previsto no Código Penal, um desrespeito imensurável à arte como prática, como poética, como política e como instituição.

Quem decide o que é arte passa longe de ser o dono do muro, assim como quem decide uma sentença judicial não é o dono da ação, mas uma instituição especializada.

Quem decide o que é arte é também uma instituição própria, formada por artistas, pesquisadores, curadores, museólogos, teóricos, críticos e historiadores, profissionais sérios e dedicados à arte, todos eles ignorados pelo dono da cidade de São Paulo e seus apoiadores, que decidiram que o cinza é melhor que um painel urbano.

Está na hora de a arte ser levada a sério, como deve ser; está na hora de a instituição artística ser respeitada enquanto tal. Porque para além da mera subjetividade individual do gosto, existe uma objetividade científica muito clara que Doria assassinou.

São Paulo era um acervo a céu aberto. Agora só ficaram as cinzas e o luto.

Ainda bem que luto é verbo (frase pichada nas paredes da Universidade de Brasília. Genial e perigosa, como a arte sempre é).


*Jornalista e mestranda em Teoria e História da Arte

Cala a boca já morreu, Cármen Lúcia!





Brasil 247, 31/01/17



Cala a boca já morreu, Cármen Lúcia!




Por Paulo Moreira Leite





Dezoito meses depois de usar uma expressão da infância de tantos brasileiros ("Cala a boca já morreu"), para justificar a liberação de obras biográficas sem prévia autorização dos envolvidos, Cármen Lúcia decidiu fazer segredo sobre as 77 delações premiadas da Odebrecht. É lamentável para o país e para a democracia.

Não só porque envolve o direito da população ser informada sobre o teor de documentos oficiais, que têm fé pública.

A experiência ensina que proibições jamais foram motivo para impedir que informações de dezenas de delações da Lava Jato viessem a público, através de vazamentos que, sem serem formalmente autorizados, jamais foram punidos com o rigor necessário para evitar novos deslizes. Em abril de  2016, no caso do grampo contra Dilma e Lula, o próprio juiz Sérgio Moro encarregou-se de divulgar um diálogo que fora gravado sem autorização legal, que deveria ter sido destruído antes de vir a público. 

 A prática brasileira e internacional permite compreender o seguinte. Se tivesse liberado o conjunto dos documentos, Carmen Lúcia teria assegurado aos 206 milhões de brasileiros o acesso a denúncias que envolvem a alta cúpula do Estado, com o selo de uma homologação da presidente da mais alta corte do país. Os fatos poderiam ser gravíssimos, como muitos imaginam, mas poderiam ser mastigados e digeridos num ambiente de transparência e conhecimento de causa.  Com a proibição, o próximo passo da crise pode ser decisivo mas torna-se um assunto para poucos, a ser resolvido em salas fechadas, na presença sabe-se lá de quem. Movimentos de ataque e contra-ataque, que podem se modificar de acordo com as investigações em curso, e resolver em prazo curto o futuro do governo Michel Temer, ou de alguns ministros, ou da campanha presidencial de 2018, ficarão entre amigos, que têm acesso aos segredos e poderão agir e reagir. Os demais serão mantidos na posição de marionetes - fazendo força para entender o que se passa.

Para o grande público, serão oferecidos de relatos parciais e depoimentos escolhidos a dedo, pelas partes interessadas, seja para atingir adversários, seja para proteger amigos. Em vez de permitir que a sociedade possa tomar conhecimento dos depoimentos, raciocinar e agir de acordo, exercitando a condição constitucional de homens e mulheres livres, coloca-se um país inteiro ao sabor das conveniências dos setores do judiciário e do Ministério Público que puderam ter conhecimento de denúncias. Em vez de liberdade, estamos falando de controle e de manipulação - situação estranha aos regimes democráticos e típica dos estados de exceção.
      
Sem jamais ter sido uma ministra de votos com grande repercussão, Carmen Lúcia foi improvisada como campeã da liberdade de expressão a partir de junho de 2015, graças aquele voto. Utilizando uma expressão conhecida do grande público, a frase foi republicada por manchetes e artigos favoráveis. Ela já era presidenta do STF em outubro de 2016, quando compareceu a uma cerimônia da Associação Nacional das Editoras de Revistas, em São Paulo. Não só repetiu a frase como citou Fernando Sabino para dizer: "Deixa o povo falar."

Procurando esclarecer seu ponto de vista, Carmen Lúcia acrescentou: "não há democracia sem uma imprensa livre. Não há democracia sem liberdade. Ninguém é livre sem acesso às informações". Para explicar a origem dos capítulos da Constituição que tratam destes assuntos, ela foi além. Reforçou a noção de que se tratavam de valores soberanos, que o Supremo tinha o dever de proteger "não como poder, mas como uma exigência constitucional para se garantir a liberdade de informar e do cidadão ser informado para exercer livremente a sua cidadania". Lembrando como as Constituições são feitas, Carmen Lúcia disse que na Carta de 1988 se definem objetivos que estão acima dos chefes de poder. "Os governantes não escolhem esses objetivos. Foi o deputado constituinte, eleito pela sociedade, que fez com que se estabelecessem esses objetivos, que são do Estado, não de governo."

Naquela época, a postura de Carmen Lúcia inspirou tanta empolgação que o jornalista Alberto Dines, veterano observador da imprensa brasileira chegou a falar de "tendências libertárias" no STF. Ontem, o melhor elogio partiu de Michel Temer. Para ele, a presidenta do Supremo "fez o que devia fazer e o fez corretamente."

Governante do país desde maio de 2016, Temer também foi Constituinte em 1986. Não recebeu votos suficientes em urna para conquistar uma cadeira de titular e terminou como suplente. Mas acabou assumindo uma vaga porque o titular foi para uma secretaria do governo de São Paulo.

Pelos argumentos que expôs nos pronunciamentos anteriores, ontem Carmen Lúcia agiu fora dos parâmetros que ela mesma definiu. Como ela disse, não cabe às autoridades escolherem os objetivos fixados na Constituição, mas apenas obedecer a vontade deixada pelo "deputado constituinte, eleito pela sociedade."






Jornalistas Livres, 30/01/17




Editorial

Contra os vazamentos seletivos, por uma inundação de informações!



Por Jornalistas Livres



A ministra Cármen Lúcia, presidenta do STF (Supremo Tribunal Federal), homologou hoje (30/01) pela manhã as delações de 77 executivos e ex-executivos da Odebrecht. Isso quer dizer que, a partir de agora, as delações adquirem peso jurídico e poderão ser usadas pela Procuradoria-Geral da República para aprofundar as investigações. Os procuradores poderão, por exemplo, pedir abertura de inquérito ou mandado de busca e apreensão.

Por determinação da ministra Cármen Lúcia, porém, o sigilo das informações será mantido por enquanto pelo STF. Isso, apesar de haver, desde meados de janeiro a expectativa de que os documentos com as delações fossem tornados públicos pelo então ministro relator da Lava Jato, o finado Teori Zavascki.

Teori morreu no dia 19 de janeiro, em um acidente para lá de conveniente, quando ultimava os estudos para homologar as delações dos executivos da Odebrecht.

Reportagem do jornal ‘Valor Econômico’ de 17 de janeiro, dois dias antes da morte de Teori, afirmava que as delações deveriam “ser tornadas públicas já em fevereiro”.

Se vivêssemos em um Estado Democrático de Direito, essas delações seriam tratadas com o máximo cuidado, para que não se acusasse qualquer cidadão sem provas. Mas já se sabe que, neste preciso momento em que você, internauta, lê estas linhas, nas redações, os mesmos repórteres “de confiança do governo golpista”, os mesmos de sempre da mídia corporativa, já receberam os arquivos com as delações. E já preparam suas matérias com “vazamentos”.

Não queremos que essa mídia descomprometida com a Democracia e com a Liberdade, essa mídia misógina e antipovo, essa mídia vergonhosamente facciosa e partidarizada, escolha os “melhores trechos” para publicar.

Já que essa mídia golpista escolherá os “vazamentos” que publicará, dizemos bem alto: queremos ser inundados de informações. O povo brasileiro não pode e não deve deixar que a turma a serviço dos corruptos selecione o que devemos conhecer ou não.

Sabe-se que Temer foi citado 43 vezes em delações dos Executivos da Lava Jato. Queremos ler tudo! Queremos saber em que tramoias teria se metido Michel Temer, esse político medíocre, que nem conseguiu ser eleito presidente do centro acadêmico! Queremos conhecer todo o entulho de corrupção em que o traidor ancorou a nau sem rumo do golpismo brasileiro, tendo ele como capitão.
A ‘Folha de S.Paulo’ acaba de publicar reportagem dizendo do “alívio” do palácio do Planalto com a manutenção do sigilo sobre as delações.

Segundo o repórter Valdo Cruz, “a equipe presidencial receia que quando o conteúdo das delações se tornar público, haverá turbulências políticas.”

Temer, o PMDB e o PSDB não querem turbulências políticas porque isso pode atrapalhar seu projeto de aniquilação do país com uma política econômica desastrosa; porque pretendem aprovar a toque de caixa seu projeto de destruição da Previdência Social, que condena nossos idosos (mais os doentes e pessoas com deficiências) à terrível miséria exatamente quando mais frágeis. Porque querem aprovar a destruição dos direitos trabalhistas.

Para tudo isso, eles precisam da paz dos cemitérios.

Queremos saber tudo! Não confiamos na imprensa golpista. Que as delações sejam tornadas públicas de forma ampla e irrestrita. Que se faça a vontade de saber do povo brasileiro, que já não tolera mais mentiras, mais sujeiras e mais empulhações!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Embuste contra aposentadorias







Brasil 247, 30/01/17




Embuste contra aposentadorias




Por Paulo Moreira Leite





Toda vez que aparecer o vídeo de propaganda da reforma da Previdência em sua TV, é bom lembrar uma verdade elementar.  Queima de recursos públicos num governo que tem passado a faca em programas úteis para a maioria dos brasileiros com o argumento de que é preciso controlar gastos, a Reforma da Previdência pretende queimar verbas do Estado para alimentar uma fraude e embelezar um embuste. Tudo se resume a tentar convencer os brasileiros de que é preciso promover mudanças radicais num sistema de aposentadorias e pensões que, criado e aperfeiçoado desde a década de 1930, tornou-se um dos mais equilibrados e sustentáveis do planeta, como mostram dados que serão apresentados alguns parágrafos adiante.

O empenho publicitário do governo Temer envolve um cálculo banal. Aterrorizados com a possibilidades de serem punidos pela indignação de eleitores que serão atingidos no próprio bolso na hora de pagar as contas da velhice, os parlamentares podem ser convencidos a recusar o voto necessário para sustentar um projeto que equivale a uma traição aberta ao bem-estar da população,  em nome de premissas falsas e argumentos embelezados.

Reportagem de Lucianne Carneiro publicada no Globo, historicamente favorável à reforma da Previdência, exibe uma pequena amostra da situação no Chile e nos Estados Unidos, países que se encontram na vanguarda das mudanças privatizantes que Temer & Cia querem promover no Brasil. "Nos EUA, metade das famílias tem menos de US$ 5000 em sua reservas para garantir o futuro de suas famílias," diz a reportagem, referindo-se a uma soma equivalente a quatro - isso mesmo, 4 - salários mínimos para o cidadão gastar até o fim da vida depois que pediu aposentadoria. Já no Chile, escreve Lucianna Carneiro, "cerca de 80% recebe menos de um salário mínimo por mês e quase a metade (44%) se encontra abaixo da linha da pobreza." (Globo, 29/1/2017, página 36).
  
No Brasil, a situação mostra um quadro diferente.  A taxa de reposição, que compara àquilo que a pessoa recebe até o fim da vida ao se aposentar com o salário embolsado quando se encontrava no batente, equivale a 82,58% da renda anterior. É um número superior ao que recebem aposentados de países de perfil socio-econômico equivalente. Os mexicanos  conservam  28,4%. Os chilenos, 37,7%. Na Coréia do Sul, a reposição é de 46,9%. Em relação a outros países, os números do Brasil são inferiores a Argentina (87,5%) e Portugal (89,5%). A boa posição do país não significa que a maioria dos brasileiros tem direito a uma velhice no luxo e na riqueza. Mostra apenas que, ao longo de sua história, a Previdência foi capaz de adotar um sistema de entradas e saídas que não agrava as condições de sobrevivência da maioria - cuja base é o salário mínimo - na hora em que se aposenta.

Um fator essencial de equilíbrio é que a Previdência funciona pelo método distributivo, preservando a renda daqueles que se encontram no patamar inferior da pirâmide dos salários e reduzindo a fatia destinada às camadas mais altas, que mesmo assim se mantém em posição muito mais confortável. Enquanto trabalha, o brasileiro encontra-se num mercado onde a diferença entre o salário mais alto e o mais baixo chega a 14 vezes, em média - situação que coloca o país entre os dez mais desiguais do mundo em diferenças salariais. (Valor Econômico, 28/05/2013). Na Previdência, essa escala se reduz. A aposentadoria mais alta é de R$ 5.531,31. O piso é de R$ 937,6. Na calculadora, uma diferença de 5,9 vezes. Uma distância enorme: um apartamento de 50 metros quadrados comparado com outro de 300. Mas coerente quando se leva em conta o caráter desigual da sociedade brasileira - até porque representa um avanço na direção correta.

Lembrar a taxa de reposição é um dado essencial, num debate onde se discute o futuro de uma instituição pública que, como ensina a demografia, terá uma importância crescente na vida dos brasileiros. As aposentadorias de hoje mostram que, apesar de queixas e reprovações que todos podem fazer a partir de sua grande reforma, em 1966, quando ocorreu a unificação dos institutos de aposentadoria, a Previdência Social tornou-se um patrimônio da sociedade e uma conquista digna de ser defendida. Para tentar convencer os brasileiros a aceitar ideias estúpidas como aposentar-se após 49 anos de contribuição ou ignorar a dupla jornada de trabalho feminina para exigir a idade de 65 anos para aposentadoria de mulheres, tenta-se anunciar o apocalipse na próxima esquina.

Outro ponto é o próprio apocalipse - no caso, em função direta da reforma. Diz respeito aos 6,5 milhões de aposentados rurais. Num ambiente onde a informalidade, o trabalho familiar e outras particulares constroem um universo à parte, a Constituição de 1988 lhes assegurou um sistema próprio, que permite o pagamento de um salário mínimo a partir dos 65 anos para homens, 55 para mulheres. Foi uma decisão política, mais do que aceitável num país onde a agricultura já era responsável por uma imensa parcela do PIB, condição que se acentuou ainda mais nos últimos anos. Embora tenham sido criadas regras especiais de financiamento, como uma parcela de 2% sobre a comercialização de produtos rurais, as despesas, aqui, seguem maiores que as despesas, o que se explica tanto por alíquotas suaves demais como por uma tolerância imensa com a sonegação. Como era de se imaginar, a reforma Temer & Meirelles planeja resolver o problema à força, pelo sacrifício dos mais pobres: cobrar contribuições individuais pelos mesmos prazos que são exigidos dos trabalhadores urbanos. Em qualquer caso, a conta rural é menor do que os custos imensos dos programas de desoneração oferecidos as empresas a título de estimulo a investimentos que nunca se realizaram. Ou seja: sempre há uma opção política a ser feita. No caso específico, a ideia é passar a cobrar por aquilo que milhões de brasileiros recebiam de graça. Não fazia parte do orçamento. Qual o nome disso?

Diante da dificuldade incontornável de ter de mudar um sistema que está dando certo, o truque é criar medo do futuro.

Essa é a origem da teoria de que a Previdência tem um déficit enorme e incontrolável, que só pode ser coberto com mudanças de inspiração chilena, norte-americanas, mexicanas - você escolhe.
   
Entre os grandes grupos de previdência privada, ninguém está preocupado com o bem-estar das pessoas mas apenas com oportunidades de negócio, mesmo que o preço seja elevar a pobreza e ampliar a desigualdade. A política de redistribuição não faz sentido, aqui, pois o horizonte é favorecer investimentos individuais, como uma poupança ou aplicações em fundos de pensão.

No Planalto, a preocupação é política, naquele sentido pequeno de defender a própria sobrevivência. Isso explica a preservação dos privilégios do judiciário, que, em tempos de Lava jato, preserva suas pensões e vencimentos integrais. Também ajuda a entender a postura diante dos militares, beneficiados por um regime especial, o mais caro do Estado brasileiro, que garante uma permanência mais curta e o pagamento de uma promoção de patente após a saída. Permanece intocável. Ao multiplicar gestos de gentileza em direção às togas e aos tanques, o Planalto de Temer sinaliza aonde enxerga aliados que podem ajudá-lo a enfrentar tempestades que se avizinham.

A discussão sobre a sustentação da Previdência deve começar por uma constatação importante. Sua receita é muito mais ampla do que se costuma admitir. Mesmo cobrindo despesas que não dizem respeito à aposentadoria mas estão previstas na Constituição, como Saúde e Assistência Social, benefícios assistenciais importantes para o cotidiano da sociedade brasileira, num total que supera a marca dos R$ 100 bilhões, em 2014 correu uma sobra de caixa de R$ 35,5 bilhões -- contra receitas de R$ 658,4 e despesas de R$ 622,8. Em 2015, quando a economia desabou num dos piores momentos da história da República, em números redondos a despesa foi de R$ 683 bilhões bi contra receitas de R$ 694. Saldo positivo de R$ 11 bilhões, num ano em que as desonerações passaram de R$ 100 bilhões. Os números de 2016 não estão fechados. Não terão o mesmo aspecto risonho, o que não surpreende. No terceiro ano consecutivo de recessão, as demissões atingiram 1,5 milhão de empregos em carteira, o que cortou o principal alimento financeiro da instituição, responsável por mais de 85% do dinheiro recebido. Outras contribuições, que são um reflexo direto da economia, também encolheram.
  
Nenhuma surpresa aqui. Num aprendizado elementar sobre agruras e limites do desenvolvimento brasileiro, a experiência histórica ensina que não há saída fora do crescimento econômico e da distribuição de renda. A recessão que chegou a menos 6 na década de 1980 derrubou a ditadura de 64. O colapso cambial do segundo mandato esvaziou o cofre de Fernando Henrique e jogou o país num apagão de luzes, ideias e desemprego selvagem.

Numa opção consciente de assegurar uma política de austeridade prolongada, transformada em cláusula constitucional pela Emenda sobre o teto de gastos, o desempenho ruinoso do governo Temer & Meirelles pode conduzir o país a um resultado especialmente terrível para vovós e vovôs. Quebrar a Previdência antes de fazer a reforma, como a via mais rápida de abrir a exploração de um dos principais mercados de aposentados do planeta a grupos financeiros privados.

Seria trágico, mas é coerente, vamos combinar.

sábado, 28 de janeiro de 2017

MP brasileiro: elitista e o mais caro do mundo






CartaCapital, 28/01/17




MP brasileiro: elitista e o mais caro do mundo




Por André Barrocal 




O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, conseguiu uma façanha. Em tempos de crise fiscal e congelamentos das verbas sociais por duas décadas, o Ministério Público da União, conglomerado comandado por ele, terá neste ano 1 bilhão de reais a mais do que em 2016. Um orçamento total de 6,6 bilhões, alta de 18%. 

O reforço financeiro contribui para manter o MP brasileiro, incluídos aí as repartições estaduais, que não se vinculam a Janot, na folgada posição de mais caro do planeta. Um órgão a pagar, com dinheiro público, altos salários e mordomias e composto por um “segmento fortemente elitizado” da sociedade. 

O gigantismo do MP foi identificado pelo cientista jurídico e social Luciano da Ros, autor de um estudo na Universidade Federal do Paraná intitulado O custo da Justiça no Brasil. O órgão consome 0,3% das riquezas geradas em um ano (PIB). Na Itália, 0,09%. Em Portugal, 0,06%. Na Alemanha e Espanha, 0,02% do PIB. 

No percentual de 0,3% do PIB entram não somente os recursos gerenciados por Janot na qualidade de chefe do MP da União (6 bilhões de reais anuais), como também os gastos do Ministério Público nos estados (mais uns 11 bilhões por ano).

Em termos relativos, o órgão custa sozinho mais do que o Judiciário de vários países (0,28% do PIB em Portugal, 0,22% no Chile, 0,14% na Inglaterra e nos EUA, 0,13% na Argentina). Leva tanta grana, afirma da Ros, que merecia ser mais debatido pela sociedade. Seria o MP uma prioridade?

Uma das explicações para o MP ser dispendioso é o Judiciário ser também. Para dar conta de tantos processos, as duas instituições empregam muita gente. E estabeleceram uma espécie de competição por verbas. Para se sentirem encorajados a atuar nos tribunais, os promotores querem ser tão bem recompensados quanto juízes, e estes ganham fortunas.

O salário do procurador-geral da República é de 33,7 mil reais mensais, o mesmo de um ministro do Supremo Tribunal Federal, teto máximo que deveria ser pago no setor público – deveria mas não é. Equivale a 30 vezes a renda per capita nacional, de 1,1 mil por mês, conforme o IBGE.

No último concurso aberto para procurador da República, no ano passado, a remuneração inicial oferecida era de 28,9 mil reais. Quem já está na carreira embolsa daí pra cima.

Uma série de mordomias ajuda a engordar holerites. No orçamento de 2017, o Ministério Público da União tem 284 milhões para arcar com plano de saúde, auxílios alimentação, moradia e funeral e com assistência pré-escolar para filhos. 

Penduricalhos absurdos, na opinião do advogado Luiz Moreira, integrante de 2011 a 2015 do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão encarregado de vigiar o MP e seus membros. “A instituição hoje só pensa em rendimentos e poder”, afirma.

Razões corporativas, como altos salários, prestígio/poder e estabilidade no cargo estão entre as principais para o ingresso na carreira de procurador ou promotor de Justiça, segundo uma pesquisa sobre o perfil do Ministério Público divulgada em dezembro pela Universidade Cândido Mendes.

Dos 12,3 mil procuradores e promotores existentes entre fevereiro de 2015 e de 2016, 899 atenderam à pesquisa. Resultado: 77% são brancos, 70% são homens, 60% de seus pais e 47% de suas mães possuem ensino superior completo. Um “segmento fortemente elitizado” da sociedade, diz o documento.

Uma vaga de procurador ou promotor tem “forte barreira” aos mais pobres, como a exigência de três anos de experiência com atuação em Direito, diz a coordenadora da pesquisa, a socióloga Julita Lemgruber.

Se ele vem da classe média, ele tem maior dificuldade de entender o anseio de minorias. Não vou dizer que seja uma regra básica. Mas hoje nós temos (...) um promotor muito bem preparado intelectualmente. Mas ele não tem esse preparo de entender a sociedade com as suas mazelas”, conta um dos entrevistados, citado sem ter o nome revelado na pesquisa Ministério Público: guardião da democracia brasileira?

Os membros do MP conduzem seus trabalhos conforme características pessoais, como trajetória de vida e preferência política. Usam sua independência como “cheque em branco, que tende a ser preenchido de acordo com inclinações e posicionamentos ideológicos ou idiossincráticos”. Estão cada vez mais fechados em gabinetes e distante das ruas, um modus operandi “conservador”.

São elementos que ajudam a explicar a predileção por atuar no combate à corrupção, área campeã de interesse hoje no MP, se comparado a temas como o controle de abusos policiais e a defesa dos direitos do cidadão.

Um cenário, conclui a pesquisa, “nada alvissareiro”.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Marisa e Lula







Carta Maior, 27/01/17




Marisa e Lula



Por Saul Leblon




Chegará o dia em que o enredo pronto que existe dentro da legenda ‘Marisa e Lula’ merecerá o olhar de um cineasta brasileiro.

Um diretor atento a um Brasil contra o qual a mídia sempre manteve, e intensificou, uma relação depreciativa, mais belicosa e obsessiva que a dispensada agora aos veículos de comunicação  por Trump, enxergará neles a personificação de um dos períodos mais generosos e vitais da vida nacional.

O improvável revestirá os passos iniciais na trajetória deste casal de trabalhadores no maior polo industrial do Brasil.

Um homem e uma mulher de origem simples, jovens mas viúvos, apetrechados no máximo de um cristianismo ingênuo a revestir a luta pela sobrevivência, um dia abriram a porta de sua casa a uma visitante ilustre, para nunca mais fechá-la.
Era a história.

E ela os arrebatou.

Surpreendentemente, porém, e nisso reside o magnetismo da trama há léguas de ser uma fábula de seres perfeitos, também foi arrebatada por eles, com todos os riscos inerentes a uma coisa e outra num dos períodos mais turbulento da vida nacional.

Estamos no Brasil de 1974, em plena ditadura militar.

Nesse enredo de carne e osso as cenas se desenrolam quase prontas aos olhos de quem quiser enxerga-las.

É uma história de resistência e luta, de coragem e medo, curtida em derrotas e superação, temperada de doses  de grandezas e fraquezas, cuja soma conflituosa afronta a prateleira do previsível e do edulcorado para arrombar a fronteira que dividia o passo seguinte do país.

Contra todas as probabilidades eles não foram derrotados pela avalanche que recobriria seu destino pelo resto da vida.

Marisa e Lula afrontaram a hierarquia inoxidável do mundo burguês, patronal e conservador e também do universo pequeno burguês no qual poderiam ter se acomodado na ampla sala de estar reservada aos mansos.

Para a surpresa de uns – deles mesmos, talvez -  e horror de outros, lograram tomar as rédeas do cavalo xucro da histórica que passou na sua frente, mudando a direção dele e o enredo de suas vidas

Estão juntos há 43 anos assim. Sem parar o trote agalopado.

Um ano depois de se casarem, em 1975, Lula seria eleito presidente do mais estratégico sindicato de trabalhadores do país, inserido  no maior polo automobilístico da América Latina.

Lula assumiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo quando o general Geisel era o ditador do Brasil.

O país ingressava num ciclo vertiginoso de luta por democracia e de levantes operários contra o arrocho econômico e sindical.

O ABC era o coração da impaciência operária. Mas a opressão patronal assegurada pelos militares empurrava velozmente a reivindicação salarial para a confrontação política.

Não era o que eles preconcebiam. Longe disso. Mas era o que se impunha como um efeito dominó a cada passo do embate.

Pois bem, Marisa e Lula não se deixaram encurralar pelos repetidos chamados do toque de recolher que dispara na vida de um casal nas situações de perigo que ameaçam o teto e a prole.

Logo, muito logo, nas mãos de Lula, o sindicato dos metalúrgicos ficaria nacionalmente conhecido como uma das principais fortalezas da frente ampla de luta por liberdades democráticas que se esparramava pelo país irradiando a audiência da voz rouca do mar ao sertão.

As ruas eram uma extensão dessa consciência que se adensava contra o que não era mais tolerável, a censura, a tortura, a repressão, o arrocho, enfim, a interdição do futuro na vida de uma nação.

O lar de Marisa, 25 anos, e Lula, 30 anos, foi arrebatado por esse turbilhão da história que entrou pela sala, logo estava na cozinha tomando sopa de madrugada, esparramou colchonetes e fez dali um acampamento de prontidão permanente por democracia e justiça social.

Era assim a casa de Marisa recém-casada.

Ou melhor, a casa da senhora hoje com  66 anos e uma hemorragia cerebral  - que respira por aparelhos na UTI de um hospital, em cuja entrada o ódio escarnece de seu drama e ergue cartazes em que pede a prisão de seu marido.

Sua casa tornou-se uma arriscada trincheira da luta por democracia e justiça social, num tempo em erguer cartazes por democracia e justiça social dava cadeia, não raro, pancada e tortura.

O lar dessa senhora em coma induzido era um gigantesco cartaz de audácia operária na noite do Brasil.

O filme à espera de um diretor abriria com a leitura vagarosa dos estandartes de ódio, solitários, mas exclamativos de um sentimento incontido das elites e do seu entorno contra tudo o que se refira àquela casa, à mulher e ao homem que a partir dela os desafiou e venceu.

No ambiente frio da UTI desta São Paulo cinzenta de janeiro de 2017, o silêncio só é entrecortado pelos equipamentos que monitoram o metabolismo fragilizado pelo aneurisma rompido.

O boletim médico informa que o quadro da paciente Marisa Letícia é estável.

O que se luta para preservar ali, porém, é justamente algo que se mexe como a história e que por se mexer opõe-se ao cerco que pretende afogá-lo numa grande hemorragia de demonização e esquecimento.

O alvo é certeiro.

A memória é um pedaço do futuro.

A daquele período, sobretudo preciosa para o presente.

Não apenas para entender o Brasil atual, a partir dos protagonistas  ora capturados pela máquina avassaladora de picar e reconstruir reputações e legados deformando-os.

Não só para repor o que está sendo lixiviado, sangrado diariamente na mídia.

Mas ela, a memória, também é crucial para repor o orgulho, a credibilidade, a confiança e, sobretudo, a faísca  capaz de religar a esperança que respirava naquela casa onde brotariam as sementes do país que trinta anos depois vicejaria.

Esse que está sendo ceifado agora com rancor inaudito, um Brasil que ainda não somos, mas que poderemos ser no século XXI.

A metamorfose do improvável nas ruas do país naqueles primórdios contradiz o impossível hoje elevado à condição de permanente.

Não é hagiografia filmada.

É uma história real, de gente de carne e osso.

Que se entregou sem se perguntar onde era a porta de saída de volta à rotina, e o fez de peito aberto, pondo na mesa empregos, filhos, o presente e o futuro, numa aposta contra o estabelecido, com os riscos e a violência sabidos.

Gente comum se agiganta em circunstancias incomuns, ao não recuar diante delas.

Esse resgate feito de carne e osso é indispensável para repor a grandeza e as fraquezas da carne e do osso humano na fricção da história brasileira hoje sufocada pela mentira e o ódio.

Carta Maior recuperou uma das raras entrevistas em que a personagem que hoje luta pela vida em uma UTI, assim como lutou pela sua e a de milhões nesses 43 anos, rememora o seu olhar sobre os acontecimentos desse início, cujo epílogo persiste em disputa.

A resistência ao esquecimento é um pedaço dessa disputa.

A entrevista é de 2002, feita durante a campanha que levaria o PT pela primeira vez ao governo.

É atual porque devolve a Marisa o direito de se proteger daquilo que os indígenas mais temem diante de uma câmera:  o roubo de alma.

Da alma da mulher que ia visitar o marido preso pela polícia política da ditadura sem fraquejar nem lhe pedir que fraquejasse; da esposa e mãe, sozinha, que, ao contrário de todos os prognósticos, quando o sensato era recuar e sumir, abriu a casa para ser o sindicato quando os três sindicatos de metalúrgicos do ABC sofreram intervenção na grande greve de 1979, coroada pelas lendárias assembleias de 60 mil pessoas no estádio da Vila Euclides; a alma da mulher que organizou com outras mães e esposas uma audaciosa passeata  de mulheres e filhos em uma São Bernardo tomada por tropas da repressão, em defesa dos maridos, dos operários e sindicalistas presos; a alma da Marisa que costurou a primeira bandeira do PT; e que se politizou assim, como protagonista de uma história feita com as próprias mãos, sobre a qual nem ela, nem ele, Lula, jamais seriam convidados a opinar se ficassem esperando o convite dos que agora tomaram se assalto a engrenagem e a reescrevem com fel, ferro e fogo.

Repita-se, não é uma elegia à pureza dos oprimidos.

É um enredo de luta entre opressores e oprimidos.

Nessa fricção, virtudes e defeitos se misturaram na implacável máquina de mastigação que é a experiência da política e do poder no capitalismo que eles encararam sem se despir da única armadura que sempre os acompanhou: a consciência de que viver é lutar.  

A memória da senhora de 66 anos que hoje trava a batalha pela vida não vale pelo saldo de pureza que ela até possa externar.

Vale pelo legado desse percurso inconcluso.

Feito de instituições e direitos que ajudou a demarcar.

E de possibilidades que contribuiu para esboçar na vida brasileira.

É nesse legado que repousa a possibilidade deste país de presos degolados se tornar um dia uma sociedade virtuosa.

Pautada em pedra e cal por direitos entre iguais e por democracia entre diferentes, que só pode ser democracia se for levada às últimas consequências na repartição do bem comum.

Inclusive para garantir a expressão de quem hoje se posta diante do hospital onde Marisa e Lula travam a batalha de vida e morte para persistirem nessa busca.

E ali destilar a represália dos que rugem contra o enredo de filme à procura de um diretor que se desata aos nossos olhos à simples menção da legenda indivisa: ‘Marisa e Lula’.

Abaixo,a entrevista de Marisa Letícia ao site da campanha do PT de 2002.

(...)
Para Marisa Letícia Lula da Silva, 52 anos, esposa de Luiz Inácio Lula da Silva, 57, o candidato a presidente pela Coligação PT-PL-PCdoB-PC -PMN, a casa nunca foi apenas o refúgio familiar, mas também um ponto de intersecção de alguns dos fatos políticos mais importantes que mudariam a face do Brasil nas últimas três décadas.

As greves do ABC, a repressão do regime militar, a luta pelas Diretas, a fundação do PT e as campanhas presidenciais do marido ganharam as ruas e viraram História, mas antes atravessaram a soleira da porta e transitaram pela sala e a cozinha de Marisa. Em 1975, com um ano de casamento, Lula chegou à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP). Três anos depois, começaria o ciclo histórico de greves no ABC paulista.

A política incorporou-se assim a sua vida como algo natural, quase uma extensão da rotina doméstica frequentemente adaptada para abrir novos espaços à mesa do almoço, ou receber visitantes que desde os anos 70 passaram a ter na casa do líder metalúrgico um ponto de referência nacional.

Lá estiveram senadores, deputados, vereadores, personalidades de todos os matizes. Alguns se incorporaram à família definitivamente. Frei Betto, por exemplo, cansou de dormir no chão da sala durante as greves metalúrgicas dos anos 78/80, designado especialmente pelo então Bispo de Santo André, Dom Cláudio Hummes, hoje arcebispo de São Paulo, para ajudar na segurança de Lula.

Tornar-se a primeira-dama, a partir de 1 de janeiro, portanto, é uma hipótese que não chega a sobressaltar essa neta de italianos, mãe de quatro filhos, avó de dois netos, que começou a ganhar a vida muito cedo.

Aos nove anos Marisa já trabalhava como pajem; aos 13, ainda sem carteira regular de trabalho, empregou-se na fábrica de chocolates Dulcora, em São Bernardo, onde ficou até os 21 anos.

Casada, tornou-se funcionária da rede municipal de ensino, que deixou para cuidar dos filhos.

Nem sempre, porém, o trânsito do país para dentro da casa foi tranquilo. Na greve de abril de 1980, Marisa e Lula acordaram sobressaltados pelos gritos dos agentes do DOPS -Departamento de Ordem Política e Social.

Eram cinco e meia da manhã, ainda estava escuro. A residência cercada por homens de metralhadoras em punho foi despertada por berros no portão: -Cadê o Lula? Viemos buscar o Lula, viemos buscar o Lula.

“Foi terrível, mas mantivemos a tranquilidade. Lembro-me que ele ainda disse - calma, vou tomar um café antes de sair, enquanto eu arrumava a mala”. Lula ficou preso 31 dias, saiu duas vezes nesse intervalo. Uma para visitar a mãe agonizante; outra, para o funeral de dona Lindu.

Diante da crescente exposição pública do marido, Marisa preferiu a discrição aos holofotes. Mas por trás deles ajudou a organizar passeatas de mães e filhos de metalúrgicos, em 1980, quando os líderes estavam presos e o sindicato sob intervenção. Foi ela também que de forma pioneira inaugurou o hábito da participação feminina na vida sindical do ABC. Foi Marisa, ainda, quem cortou e costurou a primeira bandeira do PT - feita em sua casa, claro -, quando da fundação do partido, em fevereiro de 1980.

Hoje, ela tenta preservar um pouco mais a fronteira familiar, pelo menos nos raros fins de semana em que o marido está no apartamento onde residem, em São Bernardo. “Proíbo conversa política e filtro as ligações telefônicas. Notícia ruim, à noite, fica para o dia seguinte”, sentencia com a voz firme mas serena. Mais que simplicidade, seu jeito reflete a maturidade de quem aprendeu na prática que tudo tem um tempo e nada vinga sem esforço. “As coisas foram acontecendo aos poucos na nossa vida, ao longo de anos de luta. A projeção do Lula foi a evolução natural de uma pessoa de muita persistência. Quando quer algo, ele consegue”, diz com conhecimento de causa.

Em 1973, viúva, mãe de um filho do primeiro casamento, ela conheceu de perto a tenacidade do galante diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

Foi um namoro rápido. Um cerco telefônico e uma manobra ousada de ocupação do terreno do rival definiram as núpcias, sete meses depois do primeiro encontro.

Lula chegou em casa um dia e avisou meu namorado que precisava tratar um assunto muito sério comigo. Mandou o sujeito embora - pode?”, balança a cabeça ainda perplexa com a lembrança. Perseverança equivalente ela identifica na sua trajetória política. “Em 1980, quando fui a Brasília pela primeira vez, disse a Lula: eles não vão abandonar o poder nunca. Hoje tenho certeza de que ele vai chegar lá. E espero que faça algo pela juventude - tenho certeza que o fará. A violência me assusta. Quando leio os jornais já nem presto atenção nos nomes, fixo apenas a idade das vítimas. É terrível o que está acontecendo com os jovens no Brasil”, desabafa.

Aqui os principais trechos da sua entrevista:


Qual a origem da sua família?

Meus pais são descendentes de italianos. O sobrenome do meu pai é Casa; o da minha mãe, Rocco. Meus avós, tanto do lado paterno, como os do lado materno, conheceram-se no navio vindo da Itália. Conheceram-se no mar, casaram-se em São Bernardo e tiveram vários filhos. Foram posseiros e para não dividir as terras faziam casamentos entre eles, algo que naquele tempo era normal. Tenho várias primas-irmãs: os irmãos de meu pai casavam-se com as irmãs de minha mãe e vice-versa.


Em que bairro eles moravam?

Atualmente chama-se bairro dos Casa, em São Bernardo do Campo, antigo sítio dos Casa, onde meu avô fez a capela de Santo Antônio, que está lá até hoje. A maioria dos irmãos do meu pai chama-se Antônio; os de minha mãe também; o meu avô, idem.


Eles plantavam o quê?

De tudo um pouco. Batata doce, batatinha, milho. Tinha gado, tinha galinha, pato. Saí do sítio com cinco anos de idade.


Vocês são em quantos irmãos?

Minha mãe teve quinze filhos. Três morreram ao nascer. Vivos, hoje, somos em nove. Mamãe trabalhava na lavoura, os maiores ajudavam e os menores ficavam num chiqueirinho cavado na terra. Minha mãe deixava a gente ali dentro, para não fugir. Eu tinha uns dois ou três anos. Sou a penúltima dos irmãos. Tenho irmã que poderia ser minha mãe, pela diferença de idade.


Qual é o nome dos seus pais?

Regina Rocco Casa e Antonio João Casa.


Foi uma infância difícil?

Não, em casa tinha fartura. Como minha mãe plantava e colhia e também tinha criação, nunca ninguém passou fome. Ela fazia aquela galinhada, galinha com polenta para o jantar ou a minnestra, um caldo de feijão com muito legume, arroz, carne...


Vocês frequentavam a cidade?

A gente só saía para ir a capela. A cidade era longe. Só por volta de 1955, quando minhas irmãs mais velhas começaram a trabalhar nas tecelagens a gente saiu do sítio, aí em definitivo. Meus irmãos também estavam buscando emprego nas fábricas de móveis. Mudamos para o bairro Assunção. Meu pai comprou uma casa muito grande, com quintal onde ele continuou criando seu porquinho, galinha, horta. Ficou sempre nessa vida. Mas ainda não tínhamos luz, a água era de poço. Minha mãe cozinhava no fogão à lenha. Foi nessa época que comecei a estudar, numa escolinha de madeira. Só na terceira série é que fui para um colégio no centro, o Grupo Escolar Maria Iracema Munhoz.


Qual era teu sonho de vida?

Eu queria dar aula, gostava muito de criança. Meu pai achava que mulher tinha que aprender a lavar, cozinhar e costurar. Educação rígida, à antiga. Aos nove anos as meninas começavam a ajudar dentro de casa. Eu não gostava muito dessas coisas, mas fiz cursinhos de corte e costura, culinária...


Você começou a trabalhar com que idade?


Aos nove anos. Fui ser pajem dos filhos do sobrinho do Cândido Portinari, um dentista muito famoso em São Bernardo, o Jaime Portinari. Ele tinha três filhas. Eu tomava conta dessas meninas porque a mãe dava aula. Ela trabalhava à tarde e eu estudava de manhã, as duas no mesmo colégio. Depois nasceu mais uma menina e eu com nove anos tomava conta de uma recém-nascida. Morava nesse emprego, dormia lá.


Ficou muito tempo?


Saí mocinha para trabalhar em fábrica, na Fábrica de Chocolates Dulcora. Tinha 13 anos. Foi necessário tirar uma carteira especial de menor, com autorização do pai. Tenho essa carteira até hoje. Depois, com 14 anos, você já tirava a carteira normalmente. Eu comecei como embaladora de bombom alpino.


Como era para você trabalhar assim tão criança?


Sempre gostei de ser útil, adorava isso. Era um sonho trabalhar fora, ter o próprio dinheirinho. Fazia com prazer, mas hoje tenho consciência de que lugar de criança é mesmo na escola, com tempo para brincar e aprender. Trabalhei na Dulcora oito anos. Saí para casar.


Seus pais eram bravos?


Meu pai era muito enérgico, minha mãe contornava as coisas. Mas namorar não podia, imagine! Minha mãe inventava historinhas para a gente poder sair, mas era difícil. Das irmãs eu era a mais rebelde. Gostava de participar de tudo, reuniões, centro cívico, festinhas de igreja, meu pai não deixava...


E para namorar?


Namorar naquela época era bate-papo, dava a mão, ele levava você até a esquina de casa e ponto.


Você tem alguma lembrança política dessa época?


Não, nenhuma. A gente não tinha televisão e meu pai proibia falar de política dentro de casa. Ele não gostava. Nunca comentou o porquê. A gente sabia é que os avós tinham passado momentos difíceis na Itália, vieram fugidos por causa de política e proibiam de falar no assunto. Meu pai seguiu a regra. Televisão em casa só entrou quando eu já era bem mocinha. Mas nós ainda rezávamos toda tarde, às seis horas. Paquera então, só longe de casa, na Marechal Deodoro (rua central de São Bernardo), logo após o cinema, à tarde. Comprava-se pipoca e depois era sobe e desce a Deodoro...


Com que idade você teve o seu primeiro casamento?


Casei com o primeiro namorado, o Marcos, aos 19 anos. Casei e continuei trabalhando. Só saí da Dulcora quando engravidei. Marcos era motorista de caminhão, transportava areia. Como a gente queria comprar casa própria, ele pegava o táxi do pai, que só trabalhava à noite, para fazer bicos à tarde e nos fim de semana. Ficamos casados apenas seis meses. Marcos foi assassinado quando eu estava grávida de quatro meses. Trabalhava com o táxi num domingo à tarde quando foi assaltado e morto. Meus sogros queriam demais essa criança, aí praticamente me adotaram. Fiquei morando com eles até o Marcos completar um aninho. Então fui trabalhar num colégio de Estado, como inspetora e substituta, mas contratada pela prefeitura. Aí voltei para a casa de minha mãe, porque ela tinha mais tempo para tomar conta do nenê, enquanto eu estivesse no serviço.


Como você conheceu o Lula?

Eu recebia uma pensão de viúva. Naquela época você tinha que passar em qualquer sindicato para recolher um carimbo e depois receber no INPS. Costumava ir ao sindicato dos marceneiros. Mas houve umas mudanças de local e a sede dos metalúrgicos passou a ficar mais perto para mim. Foi assim que conheci o Lula, que trabalhava no Serviço de Assistência Social do sindicato.


O Lula já conhecia seu sogro?


É o que ele conta. Diz que eles se conheciam porque tomava o táxi do seu Cândido às vezes. Os dois conversavam sobre a nora viúva etc, mas ele não me conhecia, nem houve nenhum arranjo para esse encontro entre nós. Foi pura coincidência a ida ao sindicato.


Ele atendeu você?


Não, foi um menino, um mocinho chamado Luisinho. Expliquei que precisava do carimbo para receber a pensão. Diz o Lula que já havia avisado a esse rapaz: assim que chegasse uma viuvinha nova, era para chamá-lo porque ele também era viúvo (a primeira esposa de Lula, Maria de Lurdes, operária tecelã, faleceu grávida e o filho também morreu).


O tal Luisinho chamou mesmo o Lula?

Exato. Inventou que o carimbo estava com um probleminha, foi lá dentro e quem voltou foi o Lula. Chegou e já senti que havia algo diferente. Percebi logo, porque nunca precisou tanta cerimônia para receber uma pensão que eu já tinha há três anos. O Lula disse que havia mudado a lei, eu teria que deixar o carnê para renovar etc... E pediu meu telefone. Caí que nem uma bobinha. Trabalhava na secretaria de uma escola na época. Desse dia em diante o telefone não parou mais de tocar.


E você não atendia?

Um dia atendi. Ele disse que já podia passar para assinar a papelada. Cheguei, começou tudo de novo. Senta um pouquinho; vou te explicar; aquele papo... Vamos tomar um cafezinho? Foi nessa hora que deixou cair a carteirinha do sindicato e falou: tá vendo, eu também sou viúvo. Respondi: ah é?


Nenhuma simpatia nesse primeiro contato?

Não, naquele tempo, o que uma mulher mais queria na vida era casar e ter um filho. Eu já tinha passado por essa experiência. Mas ele não desisitiu. Telefonava, insistia, por fim, marcamos um almoço no São Judas, no bairro Demarchi (tradicional restaurante do ABC).


O Lula sabia que você era nora do tal chofer de táxi?

Ele diz que ficou desconfiado, porque as histórias batiam. Mas foi tudo coincidência. Jamais foi montado um encontro.


E o namoro como começou?

Eu já tinha um namorado, vizinho da família que eu conhecia desde criança. Uma coisa assim descompromissada. Mas o Lula não queria saber. Um dia descobriu a minha rua. Chegou com um TL azul turquesa. Viu uma senhora, pediu informações. Era justamente minha mãe. Eu estava tomando banho para encontrar o namorado. Quando saio, quem está lá com a minha mãe? O Lula. Pedi que fosse embora porque tinha um compromisso, mas ele só deu uma voltinha com o TL e retornou. Chegou e foi logo dizendo para o meu namorado dar licença, que tinha assunto muito sério a tratar comigo. Mandou o cara embora. Pode? Aí já havia conquistado a simpatia de minha mãe porque era um sujeito mais alegre, mais dado que o outro. Ela ofereceu um aperitivo, o Lula entrou e, bom, tive que acabar o namoro porque ele já não saía mais de casa...


Casaram-se rápido?


Depois de sete meses. Mas não casei grávida não (risos). O Fábio, meu primeiro filho com o Lula, nasceu com nove meses e nove dias depois do casamento. Depois, com um ano de casado, em 1975, ele ganhou a eleição para a presidência do sindicato dos metalúrgicos.


Como foi essa coisa de ele virar uma figura pública?


Eu não estranhei muito porque, como disse, comecei a acompanhá-lo. Levava as esposas dos trabalhadores, organizava festas, projetos sociais. Passamos a reivindicar a presença de mulheres nas chapas. Então foi uma evolução junto.


E quando começam as greves, veio o medo?

Medo a gente sempre tem um pouquinho. Mas o dia a dia vai mostrando tanta força que muitas vezes você se pergunta: será que eu fiz isso mesmo? Por exemplo, nós fizemos aquela passeata das mulheres em 1980, quando os dirigentes sindicais estavam todos presos. Hoje, você pensa, parece uma loucura. Encheu de polícia. Os homens queriam dar apoio, mas nós dissemos, não, e saímos. Fizemos só com as mulheres. Botei as crianças na rua, meus filhos no meio daquela multidão, polícia para tudo quanto é lado.


Como era para eles ver o pai na televisão?

Tive que fazer um trabalho com isso mas acho que ficaram com uma cabeça boa. As coisas foram acontecendo aos poucos, fomos nos adaptando. Quando ele aparecia na tevê eu brincava com os meninos: querem ver seu pai, olha ele aí, porque eles já quase não viam mais o pai.


Você virou mãe e pai?

É, mas foi tranquilo. Tinha reunião de pais na escola, lá ia eu. Tinha joguinho dos pais, lá ia a mãe. Não tinha problema, eu sabia que era importante.


A sua casa também virou uma sucursal do sindicato?

Virou mesmo. Em 1980, tomaram o sindicato da gente com a intervenção. Não tínhamos para onde ir. Desocupei a sala da frente e disse: pronto, aqui é o sindicato. E a secretária era eu. Vinham políticos, almoçavam, alguns dormiam lá em casa. Depois, montamos um fundo de greve na Igreja, para arrecadação de alimentos. Aí desconcentrou um pouco. Quem ajudou muito nessa época foi Dom Cláudio Hummes, que era bispo de Santo André e hoje é arcebispo de São Paulo.


Vocês acabaram conhecendo muita gente nesse processo. O Fernando Henrique Cardoso também?

Sim, sim, em 1978 quando ele foi candidato ao Senado, o Lula apoiou, demos o maior apoio a ele. Foi nessa época também que conhecemos os deputados do PMDB, Suplicy, Geraldinho Siqueira, Sérgio dos Santos... Mas a gente ficava com um pezinho atrás, porque nós éramos sindicalistas e eles, políticos.


E a prisão do Lula, em 1980?

Nossa casa estava cercada há muito tempo. Policiais na esquina, gente rondando à noite. Eu tinha um pouco de medo pelas crianças. Mas tinha consciência de que estávamos mudando alguma coisa importante. Depois, o irmão do Lula, o Frei Chico, já havia sido preso. Preso político. Fomos visitá-lo, conversamos muito. Aquilo tudo foi deixando um sentimento de revolta em mim. Eu sabia que era preciso mudar. E para mudar alguém tinha que enfrentar aquela situação porque se ficasse pensando como meu pai, que não queria nada com política, as coisas não sairiam do lugar nunca.


Quando o Lula decolou como liderança, o que você sentiu?

Achei que era isso mesmo, um momento importante, algo que alguém precisava assumir. Tinha orgulho. Mas também sentia falta dele, claro, sentia falta de ter alguém com quem conversar, discutir...


E a prisão?

Então, a casa estava cercada há várias semanas. Frei Betto, Geraldinho Siqueira, o Jacó Bittar, o Olívio Dutra e vários outros dormiam lá para nos dar alguma cobertura.


Como é que vocês conheceram o Frei Betto?

Olha, foi até gozado. Um dia o Lula avisou: vem um frei almoçar aqui. Para mim, tudo bem, almoçava tanta gente lá que não fazia diferença. Come o que tem. O Lula precisou sair e lá pelas tantas me aparece na porta um jovem. Eu estava esperando um frei, com aquela bata, chinelo, um velhinho, enfim, com roupa toda marrom. Então me aparece um rapazinho e diz: -- Sou o frei Betto, trouxe uma pasta para o almoço. Respondi brincando: você pensa que nesta casa não tem comida? Somos grandes amigos até hoje.


E quando a polícia chegou?

Bom, primeiro, ligaram dizendo que o motorista do deputado Geraldinho Siqueira havia sumido. Saiu para buscar jornais e sumiu. Fomos dormir. Cedinho bateram no portão. Era umas cinco e meia. Tudo escuro. Frei Betto atendeu - Cadê o Lula, nós vamos levar o Lula, nós vamos levar o Lula.... Um bando de homens armados de metralhadora com uma Veraneio que fechou a saída da garagem, onde ficava o nosso Fiat. Meu quarto dava para a rua. Acordei assustada, chamei -Lula, Lula, estão aí atrás de você.


E ele, apavorou?

Nada. Falou exatamente assim - Calma, calma, vou tomar meu café, trocar de roupa, manda esperar. Eu queria que o Frei Betto e o Geraldinho acompanhassem a viatura, mas eles já tinham prendido o motorista do deputado justamente por isso. E barraram a saída do nosso Fiat. Foi uma cena horrorosa, metralhadoras para tudo quanto é lado, mas as crianças não acordaram, graças a Deus. Pegaram o Lula, enfiaram dentro do carro e sumiram. Não falaram nada, na-da. A gente não sabia para onde o levariam. Até o Fiatizinho esquentar, já tinham desaparecido. Então começamos a ligar para Deus e o mundo, e descobrimos que estava no DOPS. Ele e vários outros. Foram pegando todo mundo da diretoria do sindicato.


Lula tomou o tal café?

Tomou, trocou de roupa...


E as crianças?

Não falei sobre a prisão num primeiro momento. Dei um tempo em banho-maria, depois expliquei devagarzinho, direitinho para não assustar. Mas eu tive problemas com o mais velho na escola. O Marcos se recusava a ir à aula. Quando fui saber, eram colegas que acusavam: seu pai é bandido. Está preso, é bandido. O Marcos sentava lá na frente, eles jogavam aviãozinho dizendo essas coisas. Acabei permitindo que ele se afastasse por um tempo, o que o levou perder o ano letivo. No semestre seguinte fui à escola e falei com a diretora. Expliquei o que havia acontecido e disse que elas deveriam esclarecer as crianças. Esse tipo de preconceito não podia continuar. Só então o Marcos voltou aos estudos.


O Marcos era filho do seu primeiro casamento?

É. Eu o ensinei a chamar o Lula de tio, mas ele preferia pai mesmo. Aos nove anos, disse ao Lula que queria ter o mesmo sobrenome dele. E o Lula assumiu isso legalmente com alegria, com a maior satisfação. Hoje ele é Marcos Cláudio Lula da Silva.


Nesse período da prisão morreu a mãe do Lula?

Ela já estava muito mal, com câncer, queria ver o filho. Nós conseguimos que o Lula saísse uma vez da prisão, antes da morte, coisa que pouca gente sabe. Convencemos o Romeu Tuma (diretor do Dops na época) a permitir essa visita. Depois, ele voltou para o velório. Saí do Dops com o Lula. Mas quando chegamos ao enterro os trabalhadores cercaram o carro da polícia. Estavam revoltados. Lula pedia calma. Mas os operários haviam parado as fábricas, eram ônibus e ônibus que chegavam, uma situação tensa, de nervos à flor-da-pele, que exigiu muita habilidade e liderança do Lula.


As crianças foram visitar o pai no Dops?

Foram. Preparei os meninos. Expliquei como era para eles não terem medo. Disse que tinha polícia, mas que o papai estava bem, contei sobre o lugar, enfim, tentei evitar surpresas que assustassem uma criança. Quando chegamos, o Tuma disse: -Olha, dona Marisa, é melhor a senhora ir para a minha sala com as crianças que eu vou buscar o Lula. Quando ele apareceu na porta, o Fábio pensou que a cela era ali e falou -Papai você não tá preso, você tá num hotel! Tinha quatro aninhos.


Quando você ouviu falar em PT pela primeira vez?

Nesse tempo a discussão já havia começado, em pequenos grupos, lá em casa. No início, muitos políticos diziam: Lula, para que criar outro partido, basta entrar num dos que já existem. Mas ele respondia: quero criar um partido diferente de todos, um partido dos trabalhadores. A primeira bandeira do PT eu é que fiz.


Como é essa história?

Eu tinha um tecido vermelho, italiano, um recorte guardado há muito tempo. Costurei a estrela branca no fundo vermelho. Ficou lindo. A gente não tinha núcleo, não tinha nada. Minha casa era o centro. Começamos então a estampar camisetas para arrecadar fundos. Vendíamos uma para comprar duas. Estampava a estrelinha, vendia, comprava mais. Foi assim que começou o PT.


Você se lembra da primeira vez em que se falou de Lula na Presidência?

Em 1980, Lula foi julgado no Superior Tribunal Militar, em Brasília. Foi a primeira vez que visitei a capital. Fizemos um passeio e o guia foi mostrando as mansões, aquela ostentação toda. Quando acabou eu disse - Lula, vamos parar com tudo isso: esses caras não vão deixar você chegar ao poder nunca. Eles não vão largar isso aqui jamais. Fazem qualquer coisa, mas não abandonam essa vida...


Você mantém essa opinião?

Não, hoje não mais. O PT cresceu muito e na verdade já começou a mudar o país. Tem prefeituras, tem governos de estado. A mudança começou. Mas ainda vão resistir muito. Vão lutar muito para deixar a gente chegar ao poder. Mas hoje temos chance. O povo está descontente demais. Além do que, existe uma característica do Lula que pesa muito. É algo que vem de berço: o Lula quando quer uma coisa consegue. E ele vai conseguir melhorar esse país. Ele mudou na época da ditadura militar, não mudou?


O que te dá mais medo no Brasil hoje?

A violência. Os nossos jovens são a principal vítima. Quando leio os jornais já não olho nem nome, nada. Me fixo na idade: uns moleques, viu? Só moleques. É o que me dá mais medo, me dá dó, dá pena. Mas eu sei que se essa juventude tiver a chance de uma escola, uma boa educação e trabalho, o país muda.

Muda. Tenho certeza que muda.