quarta-feira, 31 de agosto de 2016

ÍNTEGRA DO PRONUNCIAMENTO DE DILMA ROUSSEFF DE 31.AGO.2106, APÓS DEPOSIÇÃO DEFINITIVA



"Ao cumprimentar o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, cumprimento todos os senadoras e senadores, deputadas e deputados, presidentes de partido, as lideranças dos movimentos sociais. Mulheres e homens de meu País.

Hoje, o Senado Federal tomou uma decisão que entra para a história das grandes injustiças. Os senadores que votaram pelo impeachment escolheram rasgar a Constituição Federal. Decidiram pela interrupção do mandato de uma Presidenta que não cometeu crime de responsabilidade. Condenaram uma inocente e consumaram um golpe parlamentar.

Com a aprovação do meu afastamento definitivo, políticos que buscam desesperadamente escapar do braço da Justiça tomarão o poder unidos aos derrotados nas últimas quatro eleições. Não ascendem ao governo pelo voto direto, como eu e Lula fizemos em 2002, 2006, 2010 e 2014. Apropriam-se do poder por meio de um golpe de Estado.

É o segundo golpe de estado que enfrento na vida. O primeiro, o golpe militar, apoiado na truculência das armas, da repressão e da tortura, me atingiu quando era uma jovem militante. O segundo, o golpe parlamentar desfechado hoje por meio de uma farsa jurídica, me derruba do cargo para o qual fui eleita pelo povo.

É uma inequívoca eleição indireta, em que 61 senadores substituem a vontade expressa por 54,5 milhões de votos. É uma fraude, contra a qual ainda vamos recorrer em todas as instâncias possíveis.

Causa espanto que a maior ação contra a corrupção da nossa história, propiciada por ações desenvolvidas e leis criadas a partir de 2003 e aprofundadas em meu governo, leve justamente ao poder um grupo de corruptos investigados.

O projeto nacional progressista, inclusivo e democrático que represento está sendo interrompido por uma poderosa força conservadora e reacionária, com o apoio de uma imprensa facciosa e venal. Vão capturar as instituições do Estado para colocá-las a serviço do mais radical liberalismo econômico e do retrocesso social.

Acabam de derrubar a primeira mulher presidenta do Brasil, sem que haja qualquer justificativa constitucional para este impeachment.

Mas o golpe não foi cometido apenas contra mim e contra o meu partido. Isto foi apenas o começo. O golpe vai atingir indistintamente qualquer organização política progressista e democrática.

O golpe é contra os movimentos sociais e sindicais e contra os que lutam por direitos em todas as suas acepções: direito ao trabalho e à proteção de leis trabalhistas; direito a uma aposentadoria justa; direito à moradia e à terra; direito à educação, à saúde e à cultura; direito aos jovens de protagonizarem sua história; direitos dos negros, dos indígenas, da população LGBT, das mulheres; direito de se manifestar sem ser reprimido.

O golpe é contra o povo e contra a Nação. O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito, da violência.

Peço às brasileiras e aos brasileiros que me ouçam. Falo aos mais de 54 milhões que votaram em mim em 2014. Falo aos 110 milhões que avalizaram a eleição direta como forma de escolha dos presidentes.

Falo principalmente aos brasileiros que, durante meu governo, superaram a miséria, realizaram o sonho da casa própria, começaram a receber atendimento médico, entraram na universidade e deixaram de ser invisíveis aos olhos da Nação, passando a ter direitos que sempre lhes foram negados.

A descrença e a mágoa que nos atingem em momentos como esse são péssimas conselheiras. Não desistam da luta.

Ouçam bem: eles pensam que nos venceram, mas estão enganados. Sei que todos vamos lutar. Haverá contra eles a mais firme, incansável e enérgica oposição que um governo golpista pode sofrer.

Quando o Presidente Lula foi eleito pela primeira vez, em 2003, chegamos ao governo cantando juntos que ninguém devia ter medo de ser feliz. Por mais de 13 anos, realizamos com sucesso um projeto que promoveu a maior inclusão social e redução de desigualdades da história de nosso País.

Esta história não acaba assim. Estou certa que a interrupção deste processo pelo golpe de estado não é definitiva. Nós voltaremos. Voltaremos para continuar nossa jornada rumo a um Brasil em que o povo é soberano.

Espero que saibamos nos unir em defesa de causas comuns a todos os progressistas, independentemente de filiação partidária ou posição política. Proponho que lutemos, todos juntos, contra o retrocesso, contra a agenda conservadora, contra a extinção de direitos, pela soberania nacional e pelo restabelecimento pleno da democracia.

Saio da Presidência como entrei: sem ter incorrido em qualquer ato ilícito; sem ter traído qualquer de meus compromissos; com dignidade e carregando no peito o mesmo amor e admiração pelas brasileiras e brasileiros e a mesma vontade de continuar lutando pelo Brasil.

Eu vivi a minha verdade. Dei o melhor de minha capacidade. Não fugi de minhas responsabilidades. Me emocionei com o sofrimento humano, me comovi na luta contra a miséria e a fome, combati a desigualdade.

Travei bons combates. Perdi alguns, venci muitos e, neste momento, me inspiro em Darcy Ribeiro para dizer: não gostaria de estar no lugar dos que se julgam vencedores. A história será implacável com eles.

Às mulheres brasileiras, que me cobriram de flores e de carinho, peço que acreditem que vocês podem. As futuras gerações de brasileiras saberão que, na primeira vez que uma mulher assumiu a Presidência do Brasil, o machismo e a misoginia mostraram suas feias faces. Abrimos um caminho de mão única em direção à igualdade de gênero. Nada nos fará recuar.

Neste momento, não direi adeus a vocês. Tenho certeza de que posso dizer “até daqui a pouco”.


Encerro compartilhando com vocês um belíssimo alento do poeta russo Maiakovski:

"Não estamos alegres, é certo,

Mas também por que razão haveríamos de ficar tristes?

O mar da história é agitado

As ameaças e as guerras, haveremos de atravessá-las,

Rompê-las ao meio,

Cortando-as como uma quilha corta."


Um carinhoso abraço a todo povo brasileiro, que compartilha comigo a crença na democracia e o sonho da justiça."

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Dilma deu início ao julgamento dos canalhas


http://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2016/08/30/na-hora-do-adeus-coragem-de-dilma-engrandece-sua-biografia/




Blog do Mario Magalhães, 30/08/16



Na hora do adeus, coragem de Dilma engrandece sua biografia


 
Por Mário Magalhães


Quase no fim do interrogatório de 13 horas e 54 minutos, pertinho da meia-noite de 29 de agosto de 2016, Zezé Perrella disparou perguntas duras a Dilma Rousseff.

A presidente constitucional poderia ter indagado se o senador tem viajado de helicóptero, mas se limitou a responder com objetividade ao interrogador.

Pouco antes, tinha sido a vez de Flexa Ribeiro.

A interrogada não mencionou a cana que ele amargara por ocasião da Operação Pororoca. Tratou dos assuntos que o tucano abordara.

Diante de velhos companheiros de refregas contra a ditadura, agora transformados em algozes, poderia ter cantarolado “quem te viu, quem te vê…''.

E piscado para Chico Buarque, o compositor daqueles versos, que assistia no Senado à cerimônia do adeus.
Em vez da atitude catártica, que talvez fizesse bem para espanar um pouco da poeira da hipocrisia que assola o país, Dilma se conteve.

Nem por isso deixou de lutar. Peleou até o fim, na sessão em que começou a falar às 9h53, em seu discurso de 45 minutos, e pronunciou a última palavra às 23h47.

Consciente do cadafalso que a aguardava em algumas horas, na noite de hoje ou na madrugada de amanhã, a presidente poderia ter denunciado de longe o golpe de Estado e as cartas marcadas, sem comparecer à arena em que provavelmente a devorarão.

Preferiu encarar seus carrascos.

Tá pensando que é moleza?

Michel Temer, o missivista ressentido que conspirou com gente mais suja que pau de galinheiro para depor uma cidadã honesta, acovardou-se até de vaia no Maracanã. Fez forfait na cerimônia de encerramento da Olimpíada.

O senador Romero Jucá, desenvolto em armações pelo impeachment e pela impunidade, não interpelou Dilma. É ele o autor da frase-síntese “tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria''.

Em vez da pusilanimidade alheia, Dilma ofereceu coragem, aquela que a vida quer da gente, conforme o Guimarães Rosa apreciado por ela.

Seus melhores momentos foram ao defender a soberania do voto popular e a própria inocência. O impeachment está previsto em lei. Mas sem crime de responsabilidade do governante constitui golpe de Estado.

Os argumentos pró-deposição foram sendo respondidos com tamanha clareza que os opositores passaram a versar sobre temas estranhos ao processo - e olha que clareza não é o forte da presidente na iminência de ser deposta. Queriam debate eleitoral. A advogada Janaína Paschoal não elaborou uma só pergunta sobre o que poderia ser crime de responsabilidade. Preocupou-se com crescimento econômico de países latino-americanos.

O pior de Dilma foi seu silêncio sobre o que não se pode silenciar. Mostrou combatividade ao proclamar a Petrobras e o pré-sal patrimônios nacionais. Calou, contudo, sobre a roubalheira na companhia. É certo que a gatunagem já existia nos anos Fernando Henrique Cardoso. A rejeição à liquidação do pré-sal e o combate escrupuloso à corrupção não são contraditórios. Combinam-se. Uma ação exige a outra.

A presidente não explicou, quem sabe o porvir explique, por que sacrificou os mais pobres no arrocho dito ajuste que se seguiu à eleição de 2014. Os gráficos que exibiu sobre a degringolada do cenário econômico internacional impressionam. Mas a decisão de cobrar a conta daqueles que a elegeram permanece como mistério.

Nada disso configura crime de responsabilidade. Subsídio não é crédito, como outro dia ensinou o professor Luiz Gonzaga Belluzzo no plenário do Senado. Pedaladas fiscais são pretextos para expulsar quem colheu 54.501.118 votos.

Se governo desastroso, como o segundo mandato de Dilma, justificasse afastamento, os governadores Pezão-Dornelles deveriam ter recebido cartão vermelho muito antes.

Na democracia, presidente se elege na urna, e não no tapetão.

A presidente defendeu-se no processo e depôs para a história.

A sessão de ontem, e não apenas o seu discurso, equivale a uma carta testamento.

Querer a mesma dramaticidade da carta de Getulio Vargas em 1954 é desconsiderar que um era cadáver, saíra da vida e entrara na história. Dilma tem muita vida pela frente, embora também já seja história.

É preciso ser muito insensível ou cultivar o ódio para não perceber o contraste entre uma mulher batalhando com altivez, concorde-se ou não com ela, e o novo governo que expurgou as mulheres do Ministério.

Entre a mulher que deu a cara para bater no Senado hostil e o sucessor sem voto que se esconde em meio às brumas da intriga.

Entre a mulher que dá nome aos bois, a começar por Eduardo Cunha, o patrono do impeachment, e quem trama para proteger o deputado correntista.

Beira a desonestidade intelectual fazer o balanço de ontem com base exclusivamente em votos mudados. O jogo já estava jogado. Nem por isso a presidente se acovardou.

Se a vida quer é coragem, a vida não pode reclamar de Dilma Rousseff.


 


Carta Maior, 30/08/2016


Os golpistas escondem a verdade sob a injustiça



​Por Leonardo Boff



​Está em curso ainda, nesta segunda-feira, o julgamento da presidenta Dilma Rousseff por pretenso crime de responsabilidade.

Seu discurso foi altaneiro, respeitoso e com uma cerrada argumentação. Mostrou de forma cabal que constitucionalmente não cometeu crime nenhum com referência a dois decretos de suplementação (pedaladas) e o plano Safra. Juntos afetam apenas em 0,18% do orçamento da União. Praticamente muito pouco. Mesmo que houvesse algum delito, por menor que seja, a pena é absolutamente desproporcional. Por um pequeno acidente de bicicleta, a presidenta é condenada à morte.

Na media em que nos últimos dias se desenrolaram as discussões e as oitivas dos  testemunhas ou informantes foi ficando cada vez mais claro que este processo foi tramado pelo ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, pelo vice-presidente Temer e tecnicamente montado no seio do TCU no qual dois altos funcionários mancomunados, ferindo a ética profissional, elaboram materiais que serviram de base para formulação da denúncia de impeachment da presidenta.

Importa enfatizar, como já escrevemos neste espaço, que por detrás está um golpe de classe: a velha oligarquia, donos de imensas fortunas pelas  quais se fazem donos do poder. Sentiram-se ameaçados pela continuidade dos benefícios sociais a milhões de brasileiros que começaram a ocupar os espaços antes reservados às classes medias ou às dos  privilegiados. Inaugurar-se-ia, se consolidado, um outro sujeito de poder, capaz de mudar a face do Brasil e limitar os níveis absurdos de acumulação da classe do privilégio (0,.05%¨da população ou 71 mil de super-ricos).

Postulam uma política radicalmente neoliberal que implica a diminuição do Estado, a desmontagem das conquistas sociais, as privatização de bens públicos como  venda de terras nacionais a agentes estrangeiros, além do pré-sal, uma das últimas e maiores reservas de petróleo e gás do mundo.

O que nos estarrece nas perguntas feitas à presidenta é o baixíssimo nível intelectual e moral da maioria dos senadores. Mostraram-se até agora, segunda-feira, incapazes de compreender as razões constitucionais alegadas pela presidenta em consonância com a maioria dos especialistas em direito e economia do Brasil e do mundo, argumentos que incineram as pretensas justificativas do impeachment. Ademais mostram uma mentalidade provinciana, imaginando que o problema econômico-financeiro é só do governo Dilma sem situá-lo dentro da grave crise sistêmica que tomou todas as economias, afetando agora a nossa.   

Na maioria  dos senadores nota-se clara má vontade e cegueira, pois continuam a afirmar as mesmas acusações de crime, alguns enfatizavm “graviíssimos crimes” contra a constituição como  se não tivessem escutado as detalhadas provas  contrárias, aduzidas pela presidenta e do pequeno grupo de senadores que a apoia. Este foi contundente, desmascarando o processo como golpe e farsa, citando os nomes de seus principais protagonistas alguns presentes no senado. Cabe revelar que dos 81 senadores cerca 49 estão sob julgamento por crimes ou averiguações. Eles que deveriam estar no banco dos réus e não a presidenta que todos reconhecem como honesta e inocente.

Nas suas respostas a presidenta Dilma sempre conservou altura e dignidade. Nunca deixou perguntas no ar e não respondidas. Mostrou uma segurança de quem é portadora de verdade interior e de correta conduta institucional. Tal atitude é coerente com sua vida pregressa de prisioneira política barbaramente torturada e sobrevivente de um perigoso câncer. Mostrou paciência exemplar em ouvir os repisados argumentos e respondendo-os um a  um. Foi sempre clara e, por vezes, contundente, rechaçando falsificações e distorções de fatos e de leis para justificar o impeachment, que parece já decidido previamente por um conluio perverso entre várias forças que têm dificuldades de  conviver com a democracia e são insensíveis às demandas das maiorias pobres de nosso país.

A conduta da maioria dos senadores que a acusam me reporta à frase de São Paulo aos Romanos:"eles escondem a verdade sob a injustiça e por issso atraem  ira divina" (1.18). Se consumado o  impeachment, o que já não é tão seguro, entrarão na história como violadores da democracia e negadores da autoridade das urnas e enfrentarão um tribunal maior, d’Aquele que julgará e condenará a injustiça perpretada contra uma pessoa honesta, correta e inocente.


Leonardo Boff, professor emérito de ética da UERJ e escritor.​







​Carta Maior, ​30/08/2016
 


Dilma deu início ao julgamento dos canalhas perante a História



​Por Jeferson Miola



A consumação do golpe de Estado baseado no processo fraudulento de impeachment da Presidente Dilma é uma questão de horas.

A liturgia que está sendo seguida neste julgamento, com longas sessões no Senado presididas pelo Presidente do STF, é apenas um verniz para aparentar normalidade de funcionamento das instituições que, na verdade, estão sendo destroçadas com o golpe.

A maioria do tribunal de exceção em que se transformou o Senado da República é formada por senadores e senadoras golpistas que já condenaram por antecipação a Presidente Dilma, muito antes do início do processo e independentemente da inexistência de fundamentos jurídicos e legais.
 

Esse tribunal de exceção não fará um julgamento justo, honesto e imparcial, porque decidirá fascistamente, com base apenas numa maioria conspiradora que violenta a Lei e a Constituição para tomar de assalto o poder de Estado.​

Uma maioria que forjou argumentos jurídicos fraudulentos através de militantes partidários infiltrados nas instituições do Estado como o Tribunal de Contas da União, para derrubar uma adversária que não conseguiram vencer nas urnas.

Não existe racionalidade, razoabilidade e, menos ainda, verdade na decisão pré-concebida desta maioria que se vale unicamente da condição majoritária, mas não de eventual crime de responsabilidade que poderia justificar a cassação do mandato presidencial.

Nas quase 15 horas de depoimento no tribunal de exceção, Dilma desmascarou os algozes de 2016 que não trajam a farda militar que trajavam seus algozes da ditadura civil-militar de 1964 que também tinham sociedade com o Grupo Globo, mas que nem por isso deixam de ser gorilas oligárquicos que atentam contra a democracia e o Estado de Direito.

O pronunciamento da Presidente Dilma na abertura da sessão do tribunal de exceção é uma peça memorável que organiza a narrativa sobre o golpe e instrumentaliza a resistência democrática e popular do próximo período.

É um discurso que adquire a mesma transcendência histórica de libelos famosos de vítimas da opressão e da tirania burguesa como a carta aberta Eu acuso, de Émile Zola [1898]; como A história me absolverá, de Fidel Castro [1953]; e como a Carta Testamento, de Getúlio Vargas [1954].

O gesto de Dilma é equiparável à trajetória de militantes revolucionárias como Olga Benário e Rosa Luxemburgo, que enfrentaram corajosamente e frontalmente seus opressores.

Os canalhas sofreram uma derrota estratégica na “assembléia geral de bandidos” de 29 de agosto de 2016. Eles foram surpreendidos por uma mulher que não só é mais madura que a jovem corajosa e ousada que enfrentou pela primeira vez um tribunal de exceção com 23 anos de idade em janeiro de 1970, mas que continua sendo uma “brava mulher brasileira” lutadora da igualdade e da justiça social.

Dilma teve uma atuação magistral. Gigante, contrastou com o nanismo moral dos seus algozes. Dilma ensinou aos golpistas a diferença entre o golpe militar que destrói a árvore da democracia a machadadas e o golpe parlamentar dos fungos, que parasita a árvore da democracia silenciosamente.

Dilma foi uma mulher destemida, que revelou temor pela única morte que um ser humano digno e decente pode temer, que é a morte da democracia.

Este 29 de agosto de 2016 entra para a história não como mais uma etapa da farsa do impeachment da Presidente da República que está em vias de ser perpetrado, mas como o dia em que Dilma decretou o início do julgamento histórico dos canalhas.

A partir desse dia, esses canalhas fascistas foram reduzidos à condição de fungos desprezíveis que parasitam a árvore da democracia. Eles serão julgados e condenados pelo povo muito mais cedo que tarde.

Assim como seus inquisidores de janeiro de 1970 escondiam seus rostos para não serem reconhecidos, os fascistas que em 2016 cassarão seu mandato legítimo também viverão escondendo seus rostos, e serão escravos de uma vergonha que os acompanhará pela eternidade da História.​

A Petrobras é assunto de Estado


http://www.cartacapital.com.br/economia/a-petrobras-transcende-governos-e-assunto-de-estado




CartaCapital, 30/08/16



A Petrobras transcende governos, é assunto de Estado



Por Guilherme Estrella




A gestão de uma empresa de energia é assunto de Estado. Petróleo e gás natural não são simples "commodities". São insumos absolutamente estratégicos para qualquer país que se projete soberano ao longo deste século, quando continuarão a representar, junto ao carvão, importantes fontes de energia.

País que importa energia não é país soberano. Se for uma nação política e militarmente poderosa, não terá qualquer limite em aplicar toda sua influência política para assegurar o suprimento externo e, se isto não for suficiente, lançará mão de suas forças armadas para atingir esse objetivo nacional.

A história do século passado exibe, de forma clamorosa, essa inquestionável realidade. Surpreende-me profundamente que quadros importantes da nossa academia não a aceitem e, pior, transmitam aos alunos uma visão puramente economicista e muito distante das evidências.

O Brasil é conhecido como um país de "industrialização tardia", classificação indiscutível. Qual a causa desta situação, que nos condenou, até agora, à acachapante posição de "terceiro mundo", como se dizia?

Como todos sabemos, a primeira e a segunda revoluções Industriais, na Europa, no século XVIII e nos Estados Unidos, no final do século XX, decorreram, entre outros fatores, da oferta abundante de energia, de carvão mineral no processo europeu e de petróleo e eletricidade no caso norte-americano. Com todas as suas consequências econômicas, políticas, sociais, científicas e tecnológicas, estas decisivas a longo prazo.

Nos dois momentos, nasceram e se desenvolveram enormemente a tecnologia e a engenharia industriais. Outro efeito muito importante foi a necessidade imperiosa das universidades se adaptarem à nova e intensa demanda de profissionais de engenharia, em diversas especialidades.

Esses fatores determinaram o surgimento e a construção das grandes e hegemônicas economias do mundo ocidental, Estados Unidos e Europa, com supremacia do primeiro país após a Segunda Guerra.
E no Brasil, o que se passou?

Não possuímos carvão mineral siderúrgico, apenas reservas modestas de carvão-vapor de baixo conteúdo energético. Atravessamos o século XIX num estágio medieval de atividades produtivas, restritas ao setor agrícola. Nas primeiras décadas, até por proibição de Lisboa, nada fabricávamos. A situação perdurou até o final do século, após a independência, com energia proveniente da lenha e do carvão vegetal, da roda-d'água, da tração animal e do braço escravo.

Não houve qualquer iniciativa de exploração e produção de petróleo e gás natural no País. A consequência central dessa realidade foi a inexistência de desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil.

Os primeiros cursos de engenharia civil e de minas só surgem no terceiro quartil do século XIX. Apenas no final desse período ocorre o emprego da eletricidade na iluminação, no transporte urbano e na produção industrial. Nesse momento, havia intenso crescimento na Europa e nos Estados Unidos, cujas empresas, já muito avançadas em tecnologia e engenharia, instalaram-se no Brasil para explorar nosso potencial hidroelétrico e distribuir eletricidade.

Surgiram as primeiras indústrias, de tecidos e de calçados, principalmente. A totalidade dos equipamentos empregados na eletrificação pública e privada, no transporte urbano por bondes e nas outras aplicações da eletricidade era importada, com engenharia e tecnologia estrangeira, como foi o caso, aliás, do sistema ferroviário inteiro, com locomotivas a vapor, vagões e trilhos. Tudo vindo de fora.

Esta situação perdura até 1946, quando entra em operação a usina da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. O projeto industrial e toda a tecnologia de produção foram importados. Até então, o Brasil produzia de forma rudimentar ferro gusa e lingotes de aço. Trilhos e chapas de aço para ferrovias, estaleiros, montadoras e construtoras vinham do exterior.

Energia suficiente para alavancar o início da industrialização só esteve disponível a partir da construção de grandes hidrelétricas para aproveitar o imenso potencial hídrico brasileiro, o que se materializou nas décadas de 19​70 e 1980. Esse período é considerado como o início do processo de industrialização brasileiro classificado como "supertardio", caracterizado por se alicerçar em bases tecnológicas e de engenharia estrangeiras, quase acéfalo sob o ponto de vista de efetivo controle e autonomia de decisão por parte da sociedade brasileira.

Acrescenta-se pesadamente a essa fragilidade política e estratégica o fato de ainda sermos importadores de petróleo e gás natural, recursos indispensáveis ao desenvolvimento de um país territorialmente imenso como é o Brasil.

Nossa soberania era, portanto, capenga. Inclusive porque a hidroeletricidade não é uma fonte de energia 100% confiável, como sabemos. Está sujeita, literalmente, a “chuvas e trovoadas". E um processo robusto de industrialização de um país das dimensões e com a expressiva população que temos não se sustenta com uma dinâmica claudicante no que respeita à disponibilidade de energia, que nos deixaria permanentemente frágeis e dependentes de supridores externos.

Eis que o pré-sal, a maior província petrolífera do mundo dos últimos 50 anos, é encontrado pela Petrobras, em território brasileiro, em frente à mais importante região industrial do nosso País.

Enfim o Brasil, 250 depois da Primeira Revolução Industrial, dispõe de suprimento energético abundante para construir, com autonomia, um verdadeiro Plano Estratégico Brasileiro, com um processo de industrialização inteiramente suportado na dimensão energética.

Entretanto, essa autonomia não representará soberania se não estiver baseada, concretamente alicerçada, em conhecimento, tecnologia e engenharia de projetos, construção, implantação, operação (com segurança máxima) e manutenção. Todo esse conjunto de condições devidamente dominado por empresas de capital brasileiro, com centros de decisão no território nacional.

Tais pressupostos só se materializarão, verdadeiramente, com a obediência ao Marco Regulatório do pré-sal em vigor, devidamente aprovado pelo Congresso Nacional em 2010, e que tem a Petrobras como operadora única sob o regime da partilha de produção, que dá ao governo brasileiro a propriedade do óleo e gás produzido.

Qual a razão central da importância da Petrobras ser operadora única dos consórcios produtores do pré-sal brasileiro?

É porque cabe ao operador a condução de todo o processo de definição de tecnologia e projetos de engenharia que serão aplicados nas atividades operacionais. Esse privilégio do operador lhe confere o poder, também, de definir todo um imenso conjunto de materiais e equipamentos utilizados na construção, implantação, operação e manutenção dos grandes sistemas de produção de óleo e gás.

As prerrogativas descritas propiciam ao governo brasileiro todas as condições de elaborar um projeto nacional de desenvolvimento industrial – científico, tecnológico e de engenharia, com a participação direta da universidade e de centros de pesquisas nacionais e com empresas privadas controladas por capital brasileiro – concretamente autônomo e soberano, inteiramente sustentável ao longo de todo o século XXI.

Adiciona-se a essa extraordinária oportunidade estratégica que o Brasil afinal detém, o rico conteúdo em gás natural do pré-sal. Não só para suprir com abundância a demanda por parte da indústria e do consumo doméstico, mas também pela presença de matéria-prima para fabricação de fertilizantes, outra fragilidade nacional na medida em que o nosso importantíssimo agro-negócio, uma das principais colunas de nossa economia, depende de fertilizantes importados.

Além de atender à demanda do uso industrial e doméstico, é fundamental para a geração termoelétrica e para impedir "apagões" no suprimento nacional. É também igualmente rico em insumos básicos para a produção petroquímica, setor importante da economia brasileira.

Não há, portanto, em minha opinião, argumentos operacionais e técnicos que possam presidir qualquer decisão empresarial da Petrobrás quanto ao petróleo e gás do nosso pré-sal – e também de outras áreas importantes no território nacional.

Vender Carcará, ainda mais sob o regime de concessão, não atende aos interesses brasileiros. É assunto estratégico para a soberania nacional, questão de Estado.


*Guilherme Estrella foi diretor de Exploração e Produção da Petrobras e integrou as equipes que fizeram as grandes descobertas no Iraque e no pré-sal, em 2007, no governo Lula.

Os sujos e os mal-lavados


http://www.aepet.org.br/colunas/preview/914/Os-sujos-e-os-mal-lavados



​Jornal da AEPET, 30/08/16



Os sujos e os mal-lavados



Por Roberto Amaral




Festa acabada, músicos a pé, diz conhecido provérbio português. Vencida a quinzena olímpica e amortecido por horas o complexo de vira-lata, o país, mal refeito da ressaca cívica, se reencontra com seu drama cotidiano: a degradação da política, magnificando todos os nossos problemas, expondo nossas misérias sob lente de aumento.

E não sem razão – mais uma ironia da história? – seu epicentro se encontra em Brasília e se instala no Senado Federal onde ínclitos pais-da-pátria como Cristovam Buarque e Romero Jucá (antigos colegas de Luiz Estevão, Demóstenes Torres e Delcídio do Amaral) se aprestam a consagrar o defenestramento da presidente Dilma Rousseff, que, dentre muitas incompatibilidades com o trato parlamentar, tem a de ser, ou haver sido, pouco indulgente com as vaidades e os pleitos grandes e pequenos e quase sempre pouco republicanos de nossos Brutus.

A Câmara Alta está atenta ao clamor dos interesses dos rentistas da avenida Paulista e suas adjacências; assim, dos capitães do agronegócio voltados para a renovação anual das anistias de débitos com os bancos oficiais. Seus nervos sensíveis captam as apreensões das multinacionais ante o risco de o Brasil persistir em ter para si e seu povo os recursos do pré-sal. Suas antenas auscultam os sempre atendidos interesses do atraso tão bem representados pela conjunção formada pelas bancadas da bala, do boi, da bíblia (leia-se neopentecostais) e dos bancos, afinal vencedores e governantes, após haverem sido rejeitados, quatro vezes, pela manifestação eleitoral, a única legítima nas democracias.

Mas essa tragédia é, tão-só, uma das muitas manifestações da degradação geral que pervade, como erva daninha, como cupim que lavra madeira de má qualidade, as instituições que sustentam nossa República sereníssima e nossa jovem e injusta democracia. Não se trata, pois, de simples acaso o encontro da decomposição ética, política e representativa do Poder Legislativo (de que é simbólico o fato de o presidente da Câmara Federal haver sido, até bem pouco tempo, o ainda deputado Eduardo Cunha), com a degradação do Poder Executivo, chefiado por um político sem voto e sem honra de que se despedem todos os perjuros.

Grita em manchete de primeira página a Folha de S. Paulo do dia 25 deste agosto, data de instalação do justiçamento da presidente Dilma: “Temer diz ter votos para o impeachment” e o novo presidente da Câmara dos Deputados, áulico do titular afastado por corrupção, anuncia o adiamento do julgamento do correntista suíço, que assim vai fugindo do processo que visa à cassação de seu mandato.

Os poderes degradados se abraçam ao Poder Judiciário, de cuja decadência (que a todos deve assustar) fala alto a lamentável circunstância de seu mais notório e destacado membro (ministro do STF e presidente do TSE) ser useiro e vezeiro em agredir o Código de Ética da Magistratura, pertinaz na antecipação de julgamento de processos, notório serviçal de uma sigla partidária, empresário conhecido do ensino privado-comercial. É o mesmo Mendes que reteve por quase dois anos decisão do STF sobre a proibição do financiamento empresarial das campanhas eleitorais, que defende com unhas e dentes. É o mesmo que condena a chamada ‘lei da ficha limpa’ que o Tribunal que em má hora preside terá de fazer respeitada.

Trata-se, o Judiciário, de poder que não julga, que abriu mão da isenção e da imparcialidade, amante dos altos salários, dos convescotes e das vilegiaturas. Esse poder Judiciário, desde os Moros ao ministro Mendes, está assumidamente a serviço da sociedade de classe e nela é instrumento de uma fração da classe dominante, esta que, à margem da soberania popular, está prestes a consolidar-se como senhora da República.

Entre os poderes, como se fosse um deles, planeta solitário em seu próprio e imaginário sistema, circunavega o Ministério Público, esse exótico ‘quarto poder’ (como a mídia monopolizada), reinante numa ordem constitucional que só conhece três.

Talvez seja este o momento mais crucial dessa crise que vem de longe, pois não há esperança de boa saúde para uma sociedade sem Poder Judiciário confiável.

Este último traço salta à vista na série de irregularidades que vieram à tona com o vazamento, para a mídia de sempre, para a revisa de sempre, de uma pré-delação premiada ditada para membros do MPF, em termos e sob condições desconhecidas, por um empreiteiro interessado em trocar anos de prisão por denúncias contra quem quer que seja. Desse vazamento resultou a resposta encrespada do líder do STF e, no mesmo e lamentável tom, a resposta do chefe do MPF, falando para seu público interno, e tomando suas dores.

Por que a gritaria de hoje?

Desses vazamentos, dos vazamentos passados, são, reconhecidamente, responsáveis ora membros inominados do MPF, ora agentes da Polícia Federal, ora mesmo juízes de direito, como o notório Sérgio Moro, este agindo principalmente no episódio do grampo criminoso que registrou diálogos entre a presidente Dilma e o ex-presidente Lula e, ainda criminosamente vazados, repito, pelo juiz Sérgio Moro.

É justificada a estranheza diante da inesperada sensibilidade de ministro e procuradores. Ora, desde seu primeiro dia, a Operação Lava Jato é cediça no vazamento selecionado de delações, que violenta direitos. Até aqui sob os aplausos da mídia, o silêncio do Conselho Nacional de Justiça (e por silente, cúmplice), a omissão do Conselho Nacional do Ministério Público. Não há registro de qualquer iniciativa, seja do STF, seja do MPF para apurar essas irregularidades que alimentam os escândalos e movem a Lava Jato e seus justiceiros que tudo se permitem porque se dizem e se julgam portadores de uma missão divina: salvar o país da corrupção.

Essa é, porém, história passada. Pois, não mais que de repente, o STF se viu cobrado em seus brios e o procurador Rodrigo Janot partiu em defesa de seus colegas de corporativismo. Foram todos para a mídia (em busca de seus minutos, horas, dias de vedetes), a grande imprensa que deles se alimenta cevando as vaidades de quem deveria preservar a imagem das instituições que simbolizam, e – praz aos céus! –, trocaram mútuas e graves acusações. Acusações com as quais, lamentavelmente, somos levados a concordar.

Qual fato novo a justificar a algaravia dos príncipes? O vazamento atinge um membro da Suprema Corte e, pior!, trata-se, a vítima, de querido pupilo do ministro Mendes! O ministro-protetor, assim testado em seus brios, deu vaza à sua reconhecida incontinência verbal, e os jornalões escancararam as portas já abertas de suas páginas explorando o escândalo: o líder da direta no STF dirigiu suas baterias contra o MPF e os procuradores, contra a Lava-Jato, contra a ‘lei da ficha limpa’, contra a delação premiada e, evidentemente, contra os vazamentos.

Há informações de acusados sendo orientados a dirigir o depoimento contra notórios desafetos do situacionismo de hoje como condição, para celebração de acordos, e o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro (FSP. 24.08.16) refere-se a indicações de que investigadores não raro pedem para que sejam mencionadas pessoas do Poder Judiciário em depoimentos.

O que se discute à margem da reação naturalmente destemperada do ministro Mendes é a indignação seletiva. Como pôr na mesma balança o silêncio conivente de ontem com a reação emocional de hoje? Por que o silêncio conivente quando as vitimas são o ex-presidente Lula e seus correligionários ou pessoas próximas? Por que o silêncio diante dos vazamentos anteriores, por definição ilegais e moralmente covardes? Por que, por exemplo, o silêncio diante dos vazamentos das delações de Sérgio Machado e do ex-senador Delcídio do Amaral? Por que o aplauso ao juiz Moro quando do vazamento do grampo criminoso que atingia a presidente Dilma e o ex-presidente Lula?

O procurador Janot, pego de calça-curta no episódio, atribui o vazamento ao próprio depoente, o que é inverossímil, pois o vazamento pode interessar a muitos, mas inequivocamente não interessa ao delator, e, agora, intempestivo, resolve, suspender a delação do empresário. Na verdade, esse Léo Pinheiro, o dono da famosa empreiteira OAS, foi defenestrado porque não disse o que os procuradores queriam ouvir. E, silenciado, não poderá falar sobre aqueles que os procuradores não querem que fale.

Por que, para pelo menos limpar a imagem de parcialidade, não apurar todas as delações até aqui?

domingo, 28 de agosto de 2016

Caçada a Lula tenta fechar ciclo histórico


Brasil 247,28/08/16



Caçada a Lula tenta fechar ciclo histórico



Por Paulo Moreira Leite



Um exame frio da mobilização permanente para processar e condenar Luiz Inácio Lula da Silva mostra um fato essencial. Mesmo que se venha a provar, acima de qualquer dúvida, que Lula é o verdadeiro proprietário do apartamento no Guarujá e do sítio em Atibaia, denúncias que se tornaram a matéria prima para uma perseguição que assume uma proporção escandalosa, resta uma questão básica e intransponível. 

Nas datas em que, segundo a denúncia, as negociações com a empreiteira OAS teriam se realizado, Lula já não era mais presidente de Republica. Três anos antes, em 1 de janeiro de 2011, ele havia passado a faixa a Dilma e desde então não ocupava nenhum cargo público, o que elimina qualquer possibilidade de que possa vir a ser condenado por corrupção passiva, como pretende a Polícia Federal. Era um cidadão privado, com direito a ganhar a vida e reforçar o patrimônio da melhor maneira possível - respeitando obrigações que valem para o cidadão comum, e não para chefes de Estado.

Não sou em quem diz isso. Nem os advogados de Lula. Mas uma jurisprudência nascida no final do governo Fernando Henrique Cardoso, com a colaboração do procurador Rodrigo Janot.

Em novembro de 2002, soube-se que no apagar das luzes de seu governo Fernando Henrique Cardoso havia promovido um alegre jantar  no Palácio da Alvorada, onde recolheu R$ 7 milhões entre empresários presentes para montar o Instituto que leva seu nome. (Em valores de hoje,  seriam aproximadamente R$ 14 milhões).  Ali estavam executivos e acionistas da Odebrecht, da Camargo Correa, do Bradesco, entre outros grupos econômicos. "Boa parte deles termina a era FHC melhor do que terminou," assinala com malícia o texto da revista Época sobre o evento, que levou o título "FHC passa o chapéu." A notícia não causou maiores alvoroços, porém.

Isso porque Geraldo Brindeiro, leal Procurador Geral da Republica que FHC manteve por oito anos no posto, não tomou conhecimento do caso. A Polícia Federal, entregue a homens de confiança do PSDB, também não achou necessário abrir inquérito. Procurado por Gerson Camarotti, então repórter da revista, o procurador Rodrigo Janot, que na década seguinte se tornaria PGR, abençoou esse comportamento. Esclareceu que não via nenhuma ilegalidade na coleta daquela fortuna entre empreiteiros que tinham  participado de grandes investimentos no governo do PSDB. 

- Fernando Henrique Cardoso está tratando de seu futuro e não de seu presente, explicou Janot. O problema seria se o presidente tivesse chamado empresários ao Palácio da Alvorada para pedir doações de favores e benefícios concedidos pelo atual governo.

O aspecto didático deste caso é insubstituível. 

Desde a AP 470, o chamado Mensalão, o caráter seletivo das investigações que envolvem políticos brasileiros tornou-se uma evidência tão cristalina que, 2013, quando tomou posse como PGR, Janot incluiu uma referência obrigatória no discurso: "Pau que bate em Chico bate em Francisco."
No Brasil de 2016, cabe perguntar quantos apartamentos no Guarujá e quantos sítios de Atibaia cabem na bolada que, conforme a delação premiada do executivo Leo Pinheiro, da OAS, foi entregue ao comando do PSDB paulista, divulgada pela VEJA.  Geraldo Alckmin era governador de Estado e foi candidato a presidente da República, entre 2004 e 2007, quando as obras do lote 5 do Rodoanel rendiam 5% de "vantagens indevidas". José Serra assumiu o lugar e fez campanha para o governo de Estado em 2006. Empossado, as "vantagens indevidas" seguiram seu curso, ainda que tenham sido reduzidas para 0,75%, segundo Leo Pinheiro. O detalhe é que tanto Alckmin como Serra, naquela ocasião, eram autoridades públicas, com responsabilidade pela defesa da lei, da ordem - e do orçamento.

Em 2009, uma auditoria realizada no conjunto de todos os lotes do Rodoanel apontou para um superfaturamento de  de RS 184,4 milhões. Olha a curiosa coincidência. Considerando que o valor dos cinco lotes do Rodoanel atingia R$ 3,4 bilhões, essa soma equivale aos célebres 5% da denúncia de Leo Pinheiro.

Já em Minas Gerais, disse o executivo da OAS, um intermediário de Aécio Neves recebeu 3% de propina pela construção do Centro Administrativo do governo de Minas. Faça as contas: o valor da obra foi de R$ 1,5 bilhão, a maior do governo do Estado em muitos anos. Sobraram perto de R$ 50 milhões para o amigo de Aécio.  
  
A grandeza e a natureza desses recursos deveria ser suficiente para definir prioridades no trabalho de qualquer autoridade profissionalmente obrigada a investigar e esclarecer denúncias, ainda mais desse valor.

O tratamento  diferenciado na AP 470 e ao mensalão PSDB-MG aponta na direção oposta, porém. Enquanto os condenados pelo PT já cumpriram pena e até começam a deixar a prisão, os acusados do PSDB encontram-se em fase de recursos jurídicos - aqueles instrumentos legais que,  em processo contra petistas, costumam ser chamados de chicanas, manobras  e até tentativa de obstruir a Justiça.

A denuncia de um tratamento diferenciado não se destina a justificar um erro pelo outro. A discussão aqui é política.

Reconhecer sua existência é o ponto de partida para compreender que estamos num caso de perseguição política, numa ação orientada para atingir alvos definidos e poupar outros. 

Essa situação foi escancarada em reportagem de Julia Duailibi, publicada no Estado de S. Paulo, em novembro de 2014. Revelou-se, ali, que as investigações da Lava Jato são conduzidas por um núcleo de delegados com motivação política clara, chegando a participar de grupos do Facebook onde a palavra de origem mais republicana pedia "fora Dilma", ali retratada com dentes vampirescos. Neste ambiente, Marcio Ancelmo, o delegado que indiciou Lula na Lava Jato, refere-se ao ex-presidente como "essa Anta."

Neste ponto a perseguição a Lula revela-se como o evento decisivo da nova situação política criada pelo afastamento de Dilma, a ser confirmada ou rejeitada nos próximos dias.

Está claro que, ao lado do golpe contra Dilma, o esforço para excluir Lula da cena política, seja pelo caminho que for, envolve uma operação destinada a encerrar o mais amplo e prolongado regime de liberdades de nossa história republicada e reconstruir o Brasil que todos conhecem desde a chegada de Cabral às terras de Santa Cruz.

A luta pelos direitos dos trabalhadores e pelas liberdades que  Lula liderou no final da  década 1970, ainda sob o regime militar, foi a pedra fundamental de uma democracia que garantiu um regime de direitos e benefícios aos trabalhadores e aos mais pobres, referendado pela Constituição de 1988 e ampliado pelos governos conduzidos pelo PT a partir de 2003. Nunca, em nenhum momento, os brasileiros e brasileiros das camadas antes chamadas de subalternas conseguiram ser ouvidas de verdade em assuntos do Estado, ainda que em várias ocasiões não tenham sido atendidas e até ignoradas.

Além do progresso material, receberam um tratamento político respeitoso, base para uma postura de dignidade e consciência de direitos até então desconhecida.

Neste caminho, "o golpe ou no mínimo farsa" de 2016, como escreveu Le Monde, se aproxima do golpe de 1964 através para uma linha comum.

Calculando que a saída de Dilma é fato  consumado, a articulação encaminha a batalha histórica e decisiva, Anti-Lula, sem a qual não conseguirá fechar um ciclo histórico. Aqueles que enxergam Lula em 2018 convém manter prudência com cálculos otimistas. Ninguém pode garantir qual tipo de eleição teremos dentro de dois anos. Para eleger quem? Para fazer o que?

Há uma luta difícil até lá, a ser resolvida pela mobilização popular e pela resistência das camadas exploradas da população.

No esforço contra 1978-1988-2003, a necessidade de cercar e ameaçar a principal liderança popular da história do país cumpre uma função ao mesmo tempo óbvia e essencial.  
 
Enquanto mantiver direitos políticos na plenitude, Lula será a uma peça única no atual ambiente político. Isso porque seu reconhecimento popular é o principal fator de desmoralização de projetos que pretendem acabar com eleições diretas através de um regime parlamentarista, rejeitado por dois plebiscitos em pouco mais de 50 anos.

Também é a principal força de resistência contra medidas de arrocho e destruição de direitos sociais e projetos econômicos que podem assegurar alguma autonomia aos brasileiros para decidir seu próprio destino.

A questão, não custa lembrar, são os direitos do povo, que se pretende quebrar.

Não custa lembrar que os diálogo decisivos para a vitória dos conspiradores civis e militares que em 1964 construiram uma ditadura de 21 anos envolveu o lugar dos trabalhadores na ordem política do novo regime. Este era o ponto essencial, como fica claro por conversas travados nas horas decisivas. A questão, antes como hoje, é a renda, a partilha da riqueza.

Num diálogo na hora mais dramática, transcrito pelo historiador Jorge Ferreira em "João Goulart - uma biografia" o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, deu um ultimato ao presidente pelo telefone: "Eu me disponho a garanti-lo na presidência da República se houver de sua parte uma declaração rompendo com o Comando Geral dos Trabalhadores."

Com pequenas alterações no texto, conversas de teor semelhante foram travadas na época, inclusive pelo comandante do II Exército - abrigo das tropas importantes estacionadas em São Paulo - Amaury Kruel. A este a posteridade reservou uma ironia única a respeito de investigações seletivas sobre uma  conspiração que pretendia combater a "subversão e a corrupção."

Conforme o Major Erimá Pinheiro Moreira, que serviu sob o comando de Kruel, na passagem da lealdade a Jango à traição o general recebeu duas malas carregadas de dólares. Verdade? Mentira? Impossível saber. Situando-se no lado conveniente do mundo dos vivos, Kruel, falecido em 1996, também teve direito a investigações seletivas, inclusive pela posteridade.

A Lava Jato e a Constituição


http://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2016/08/1807774-alem-de-envolvidos-lava-jato-ofende-quem-preza-o-respeito-a-constituicao.shtml




Folha.com, 28/08/16



Além de envolvidos, Lava Jato ofende quem preza o respeito à Constituição



Por Janio de Freitas



O procurador-geral Rodrigo Janot tem uma curiosidade. Bom sinal, nestes tempos em que temos sabido de inquisidores sem curiosidade, só receptivos a determinadas respostas. 

A crítica do ministro Gilmar Mendes aos "vazamentos" de delação na Lava Jato suscitou a reação de Rodrigo Janot registrada por Bernardo Mello Franco: "A Lava Jato está incomodando tanto? A quem e por quê?".

É uma honra, e quase um prazer, aplacar um pouco a curiosidade que a esta altura acomete ainda o procurador-geral, talvez forçando-o a alguma passividade ou omissão.

Não escapa à sua percepção o quanto a Lava Jato incomoda aos que envolve com sua malha, tenha ou não motivo real para tanto.

Mas existe outra classe de incomodados, muito mais numerosos do que os anteriores e atingidos por inquietação diferente. O procurador-geral não terá dificuldade em reconhecê-los.

É uma gente teimosa e inconformada. São os que prezam o respeito à Constituição, mesmo que não a admirem toda, e às leis, mesmo que imperfeitas.

E entendem, entre outras coisas, que isso depende não só dos governos e políticos em geral, mas, sobretudo, dos que integram o sistema dito de Justiça. Ou seja, o Judiciário, o Ministério Público, as polícias. 

Perseguições escancaradamente políticas, prisões desnecessárias ou injustificáveis, permanências excessivas em cadeias, "vazamentos" seletivos — tudo isso, de que se tem hoje em dia inúmeros casos, incomoda muita gente. 

Porque, além de covardes, são práticas que implicam abuso de autoridade e múltipla ilegalidade. E sua prepotência é tipicamente fascistoide. 

Mas os incomodados com isso não se mudam e não mudam. Querem o fim da corrupção e de todas as outras bandalheiras, sem, no entanto, o uso de resquícios do passado repugnante. 


2) Mais uma vez, às vésperas de uma decisão em procedimentos destinados ao impeachment, a Lava Jato cria uma pretensa evidência, na linha do escandaloso, que atinja Dilma Rousseff ainda que indiretamente. 

Desta vez, estando os seus procuradores sob suspeita do crime de "vazamento" de matéria sigilosa, a Lava Jato passou a tarefa ao seu braço policial: o já conhecido delegado Márcio Anselmo, da Polícia Federal, indicia Lula, Marisa e Paulo Okamotto

Os procuradores da Lava Jato pediram 90 dias para fazer a denúncia dos indiciados. Três meses? Um inquérito com as peças que justifiquem o indiciamento não precisa de tanto prazo para a denúncia.
 
A dedução é inevitável: o indiciamento foi precipitado, com o mesmo propósito político dos anteriores atos gritantes, e os longos três meses são para tentar obter o que até agora não foi encontrado. 


3) O governo da China ofereceu ao Brasil, em junho de 2015, crédito em torno de US$ 50 bilhões para obras de infra-estrutura.

A Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério do Planejamento, no governo Dilma, e os chineses formaram uma comissão que, por sua vez, decidiu pela criação de um fundo de investimento de US$ 20 bilhões, composto por US$ 15 bilhões da China e completado pelo Brasil. Um outro fundo elevará o financiamento ao montante proposto no ano passado.

O governo de Michel Temer reteve a formalização do acordo, e o início do primeiro fundo, para apresentá-lo como realização sua. No dia 2 de setembro, data escolhida em princípio.



4) A crítica de Gilmar Mendes aos procuradores da Lava Jato foi atribuída por muitos, nos últimos dias, ao corporativismo sensibilizado pelo "vazamento" injustificado contra o ministro Dias Toffoli.

O que houve, porém, foi a repetição, em parte até com as mesmas palavras, das críticas feitas por Gilmar Mendes em pelo menos duas ocasiões. Inclusive tratando como crimes os "vazamentos" de delações sigilosas. Os quais, na verdade, não são vazamentos, ou informações passadas a jornalistas: são jogadas com fins políticos.

A definição como crime, aliás, é motivo bastante para que a tal investigação do "vazamento" contra Toffoli, ou nem comece, ou termine em nada a declarar.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

'Um etiquetamento dispensável' - A lição do procurador aos delegados que indiciam


Antes da matéria, falemos um pouco sobre a ilusão de nossos procuradores...

Confrontado com um texto do jornalista Luis Nassif, o qual mostrava a maneira como o MPF se converteu em partido político, um procurador rebateu-o dizendo que o artigo juntava um conjunto de ilações para uma conclusão errada.

A quase totalidade dos que atuam na linha de frente não tem noção das sutilezas e sofisticações dos jogos de poder, da arte de direcionar ou afrouxar a energia de um órgão na direção pretendida. São mera massa-de-manobra que, com sua coragem de encarar o bandido na ponta, legitimam as jogadas políticas na cúpula.

Até agora, o artifício do inimigo comum – o PT e Lula – garantia a uniformidade da ação entre a cúpula e a base, a PGR e os procuradores que atuam na linha de frente. "Livrar o país dessa gente" era o “bem comum”, que justificava o endosso a todos os atos.

Não tinham a menor ideia que o processo de ascensão de um PGR se faz no convívio diuturno com as franjas do poder brasiliense, nos conchavos, na identificação de onde estão a força e o poder para buscar sua proteção e não ficar ao relento. 

Depois do jogo consumado, restou o desabafo daquele outro procurador publicado na FAlha de São Paulo:

"Éramos lindos até o impeachment ser irreversível. Agora que já nos usaram, dizem chega”. 

Bem-vindo ao mundo real, massa-de-manobra.



http://jornalggn.com.br/noticia/a-licao-do-procurador-aos-delegados-que-indiciam



Jornal GGN, 26/08/16



A lição do procurador aos delegados que indiciam


Por Luis Nassif


Vladimir Aras é uma das referências da área criminal do Ministério Público Federal. Ao contrário de tantos jovens procuradores, obcecados pelo sucesso fácil dos factoides, tem uma ampla folha de serviços prestados e de estudos aprofundados sobre direito penal e os avanços da luta contra as organizações criminosas.

Como peça central da Lava Jato – na cooperação internacional – muitas vezes me surpreendo com suas colocações sobre a importância dos direitos individuais sobre a sanha persecutória das investigações. Tem tido papel relevante em defesa dos direitos fundamentais, em tempos de cólera em que até o STF se encolhe.

Em abril deste ano publicou em seu blog o artigo “Um etiquetamento dispensável” acerca do exibicionismo de policiais federais com os tais indiciamentos em inquéritos. O artigo é oportuno por permitir entender melhor o exibicionismo irresponsável do delegado Márcio Adriano Anselmo, típico policial que coloca a vaidade pessoal acima do que deveriam ser qualidades do PF: discrição, profissionalismo.

Dizia Aras:

O indiciamento não tem qualquer função relevante no processo penal. Tal ato policial é uma excrescência no devido processo legal e não se justifica no modelo acusatório, no qual a Polícia é um órgão auxiliar do Ministério Público, e não parte. Contudo, como a imprensa adora rótulos, as manchetes espocam: ’Fulano foi indiciado’”.

Segundo Aras, o indiciamento não significa rigorosamente nada. “Ou melhor, significa uma etiqueta desnecessária, um estigma inútil aplicado a supostos criminosos por uma instância formal de controle social”.

Continua Aras, lembrando que “um dos maiores tesouros do Estado de Direito é a presunção de inocência. O indiciamento, como medida unilateral da Polícia, baixada ao final da investigação policial (inquisitorial) serve a interesses corporativos, e não à boa administração da Justiça”.

Indiciar, segundo Aras, “corresponde à ação de reunir indícios precários sobre certa pessoa suspeita de um crime”. É um ato que é baixado pelo delegado de Polícia antes da formação da culpa e fora do processo. “O indiciamento só se tem prestado à espetacularização midiática em detrimento do estado de inocência do investigado, que poderá ser acusado pelo Ministério Público, ou não."

Escrito em abril, o artigo não se refere ao indiciamento de ontem, de Lula e Mariza. É um alerta contra o exibicionismo irresponsável de delegados de polícia que não honram a corporação.

“Tal dispositivo, fruto de uma campanha corporativa que não foi percebida a tempo pelo Congresso Nacional, agora cobra seu preço. Manchetes garantidas. No caso Lava Jato, perante o STF, uma senadora indiciada pela Polícia; no caso Acrônimo (Inquérito 1168), perante o STJ, um governador de Estado também foi indiciado, isso tudo antes de o processo penal ser iniciado…”.

Aparentemente, a Polícia Federal continua sem comando.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Um procurador messiânico e um apresentador de boa fé


http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FUm-procurador-messianico-e-um-apresentador-de-boa-fe%2F4%2F36669




Carta Maior, 23/08/2016



Um procurador messiânico e um apresentador de boa fé



​Por J. Carlos de Assis



 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Vi a gravação de sua entrevista com o procurador-chefe da força tarefa da Lava Jato, Dalton Dallagnol. Decidi procurá-la na rede depois que, em entrevista posterior, você apresentou uma carta do advogado de Lula protestando contra o uso de provas ilegítimas em processo penal. Você desqualificou o advogado subscrevendo integralmente os conceitos do procurador, dados na véspera, segundo os quais provas obtidas ilicitamente poderiam ser aceitas no processo desde que produzidas de “boa fé”.

Argumento idêntico já havia sido adotado pelo juiz da Lava Jato, Sérgio Moro, numa de suas palestras sensacionais. Neste caso, tratava-se de legítima defesa da audácia dado que o magistrado pretendia obviamente legitimar o uso judicial da gravação de Lula com a Presidenta Dilma, que ele liberou para a imprensa ilegalmente, agora incluída no processo de suposta obstrução da justiça. Temos agora três instâncias da legitimação da prova ilícita: o juiz, o procurador e a imprensa, esta representada por você, Jô Soares, em seu candente editorial. Poder-se-ia dizer que isso retrata uma conspiração para a obstrução não da justiça, mas da lei.

Não somos juristas. Sou jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, hoje quase totalmente dedicado à economia política. Você é um dos homens sabidamente mais cultos do país. Entretanto, somos iguais num ponto: pertencemos a um mesmo ambiente histórico cujas raízes estão cravadas no início da era moderna da qual a característica mais marcante, no processo de construção de cidadanias, foi a consagração absoluta dos princípios jurídicos do habeas corpus, da presunção de inocência e do devido processo legal. Era a forma do cidadão escapar do sufocamento do Rei ou do Estado.

Não é difícil identificar no devido processo legal o imperativo inescapável da legalidade da prova. Isso não é Direito. Isso é civilização. O contrário seria deixar ao arbítrio do juiz, e na dependência de sua “boa fé”, aquilo que é a base factual dos julgamentos, ou seja, a prova material inequívoca. O juiz Moro e o procurador Dalton, e agora você, Jô, se tiverem realmente boa fé, devem à sociedade brasileira um esclarecimento franco sobre o que entendem por boa fé, e quem a determina num processo penal.

Sua explicação para acolher o argumento do promotor foi a imensa audiência que seu programa alcançou na data do programa. Trata-se de uma tautologia. Sua audiência lhe devolveu o que você deu a ela. Foram seus conceitos, e os conceitos expostos pelo procurador sem qualquer questionamento de sua parte, que refletiram na plateia e na tevê e lhe voltaram na forma de uma ovação geral. Pusesse você alguém de menos boa fé, que a sua, para entrevistar o procurador, alguém que não fosse dessa grande mídia sórdida, e ele seria massacrado.

Vou lhe dar apenas um exemplo da simplicidade idiota desse procurador de ares messiânicos. Ele disse ter estudado pós-graduação em Harvard e ali aprendeu métodos eficientes de combater a corrupção. Bom, terá ele aprendido em Harvard alguma coisa dos processos movidos, depois da crise de 2008, contra os fraudulentos Bank of America e o Citigroup, os maiores bancos norte-americanos? Acaso foi preso algum dos dirigentes desses maiores bancos americanos pelos golpes dados no mercado de subprime?

Bom, para que esse procurador, ou você mesmo não digam de novo que o escândalo da Petrobrás é o maior do mundo, vou lhe dar alguns dados que a grande imprensa omite: os dois bancos citados, para livrar seus executivos da cadeia, pagaram, cada um, cerca de R$ 70 bilhões, ou um total de R$ 140 bilhões em multas. Não é só isso. Ninguém pagou pela fraude da Libor, administrada pelos 14 maiores bancos do mundo, a despeito de bilhões e bilhões de dólares em prejuízos. Ninguém pagou pelas fraudes do Deutsche Bank e o UBS nos mercados mundiais de câmbio, também representando quantias bilionárias.
 

Se você me perguntasse se gostaria de ver esses bancos quebrarem da noite para o dia por causa da corrupção eu diria que você está louco. O grau de sofrimento no mundo seria intolerável. Aqui, entretanto, esses promotores messiânicos, movidos sobretudo por vaidade e nenhum escrúpulo social, não tomaram qualquer providência para salvar a parte sadia das empresas de engenharia, com centenas de milhares de empregos, envolvidas no escândalo. Ao contrário, embaraçaram como puderam os acordos de leniência. Que fizessem o que os americanos fazem: punam os executivos e salvem as empresas. De fato, eles salvam as empresas e sequer punem os executivos, que se safam com multas.

Seu procurador, Jô, não passa de um vaidoso. Ele se vê em vestes messiânicas para salvar o Brasil da corrupção. Sua entrevista é do tipo que agrada, pois ele se coloca na situação de um puro, um justo, um incorruptível e, sobretudo, como alguém que está sempre e absolutamente certo, combatendo os absolutamente maus com perfeita maestria. Você se revelou surpreendido com a audiência. Você se surpreenderia também, se estivesse lá, com Hitlter e Mussolni, ambos anunciando a grande solução para a Alemanha e Itália. Não passavam, como seu procurador messiânico, de demagogos ingênuos, talvez demagogos de boa fé.

Talvez as partes mais extraordinárias da entrevista, você se deve lembrar, foram aquelas em que o procurador se descreveu como alguém que não tem poder econômico ou poder político, e justamente por isso a forma que encontrou para avançar nas investigações foi uma aliança com a imprensa. Você percebeu o que isso significa? Fora nas ditaduras, onde no mundo o processo judicial se inicia com uma aliança entre a promotoria e a imprensa? É justamente isso que nos leva à investigação-espetáculo, em muitos casos configurando a mais abjeta violação de direitos humanos. É esta aliança a matriz da exibição pública de simples suspeitos, destruindo injustamente reputações, assim como a escolha “científica e democrática” entre as grandes mídias dos documentos e depoimentos que serão vazados, a isso se chamando liberdade de imprensa.

Jô, se pessoas, com seu alto nível cultural, não sabem distinguir o que é avanço e o que é regresso de civilização, estamos em maus lençóis. Vivemos uma situação mundial de crise aguda, com guerras em andamento, fricções entre grandes potências, dramas de refugiados. No nosso caso, vivemos um quadro legislativo podre, uma presidência ilegítima e virtual ditadura judicial que ignora o sistema econômico combalido – 8% de contração em dois anos, 13% de taxa média de desemprego -, e até mesmo o avanço sobre o pré-sal pondo em risco a nossa própria soberania. Sabe-se como começam as revoluções. Nunca como terminam. Para que ninguém se sinta impune ao abusar de autoridade, lembrem-se da experiência turca recente: em face de um golpe judicial instigado pelos americanos, promoveu-se um contragolpe que acabou com mais de 2 mil juízes e promotores na cadeia, sob risco de pena de morte por alta traição.

*Jornalista, economista, professor, doutor em Engenharia de Produção, autor de mais de 20 livros sobre economia política brasileira.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O que está em jogo





Folha.com, 22/08/16




Truculência



Por Eleonora Lucena





O Brasil entrou no centro da disputa geopolítica mundial. Tem riquezas naturais, mercado interno, posição estratégica. Construiu economia diversificada e complexa, terreno para grandes empresas nacionais e ambiente potencial para desenvolvimento de tecnologias de ponta.

Os Estados Unidos, acostumados a nadar de braçada no continente, começaram a ver o avanço chinês no que consideram seu quintal. Investimentos, comércio, parcerias com os orientais cresceram de forma exponencial.

Não parece ser coincidência a intenção norte-americana de voltar a ter bases militares na América do Sul (na sempre sensível tríplice fronteira e na Patagônia, que vigia o estreito de Magalhães, curva entre dois mundos). Nem parece ser ao acaso a escolha dos alvos do momento: a Petrobras, as grandes empresas e até o programa nuclear.

Nos últimos anos, o país mostrou zelar por sua autonomia e buscou alianças fora da influência dos EUA. Com China, Rússia, Índia e África do Sul, o Brasil ergueu os Brics e um banco de desenvolvimento inovador.

Aqui, reforçou o Mercosul -alvo imediato de ataque feroz do interino, afoito em mostrar serviço para o Norte e ressuscitar relações subalternas.

Esse contexto maior escapa da verborragia conservadora, ansiosa em reduzir a crise atual a um confronto raso entre supostos corruptos e hipotéticos éticos. Bastaram poucas semanas para deixar evidente a trama hipócrita e podre do bando que tenta abocanhar o poder.

O que está em jogo é muito mais do que uma simples troca de governo. É a própria ideia de país.

Falar de luta de classes e de projeto nacional deixou alguns leitores ouriçados. Mas, apesar da operação de marketing em curso, os objetivos do atropelo à Constituição são claros: concentrar riqueza, liberar mercados, desnacionalizar a economia, desmantelar o Estado.

O discurso dos sem-voto que se aboletaram no Planalto tenta editar um macarthismo tosco, elegendo um inimigo interno. Agridem os de vermelho (sempre eles!), citados como os culpados de todo o mal, numa manobra conhecida dos movimentos fascistas desde o início do século 20.

Quem se atreve a discordar do rolo compressor elitista é logo tachado de "maluco" pelos replicantes da direita raivosa. Dizem que os que apontam as contradições atuais são saudosos do século 19.

Viúvos do século 19 são os que querem agora surrupiar direitos e restabelecer condições de exploração do trabalho daqueles tempos. Com a retórica de uma suposta modernidade, atacam conquistas sociais e pregam o desmonte da corajosa Constituição de 1988.

Alegam que a matemática não permite que o Estado cumpra suas funções perante os cidadãos. Para eles, a matemática deve servir apenas aos mais ricos e a seus juros maravilhosos. Num giro chinfrim, mandam às favas o tal controle do deficit público: gastam tudo para atender corporações, amigos e ganhar votos.

Com uma cortina de fumaça, arriscam confundir esquerda com autoritarismo. Projetam, assim, no adversário, os seus desejos ocultos. Afinal, o programa dos não eleitos só poderá ser implantado integralmente num regime de força, que censure e elimine a voz dos mais fracos.

As exibições de truculência absurda nos estádios da Olimpíada, proibindo manifestações de "Fora, Temer!" e rasgando os direitos constitucionais de livre manifestação e opinião, parecem ser uma terrível amostra de tempos sombrios pela frente.

O Senado vai enfrentar o julgamento da história.


ELEONORA DE LUCENA, jornalista.