quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Oração aos Orixás



 
ORAÇÃO AOS ORIXÁS

 
Que a irreverência e o desprendimento de Exu nos animem a não encarar as coisas da forma como elas parecem à primeira vista e, sim, que nós aprendamos que tudo na vida, por pior que seja, terá sempre o seu lado bom e proveitoso! Laro yê exu!
 
Que a tenacidade de Ogum nos inspire a viver com determinação, sem que nos intimide com pedras, espinhos e trevas. Sua espada e sua lança desobstruam nosso caminho e seu escudo nos defenda. Ogum yê meu pai!

Que o labor de Oxóssi nos estimule a conquistar sucesso e fartura à custa de nosso próprio esforço. Que suas flechas caiam à nossa frente, às nossas costas, à nossa direita e à nossa esquerda, cercando-nos para que nenhum mal nos atinja. Okê arô ode!

Que as folhas de Ossaim forneçam o bálsamo revitalizante que restaure nossas energias, mantendo nossa mente sã e corpo são. Ewe ossanhe!

Que Oxum nos dê a serenidade para agir de forma consciente e equilibrada. Tal como suas águas doces – que seguem desbravadoras no curso de um rio, entrecortando pedras e se precipitando numa cachoeira, sem parar nem ter como voltar atrás, apenas seguindo para encontrar o mar – assim seja para que nós possamos lutar por um objetivo sem arrependimentos. Ora yeyêo Oxum!

Que o arco-íris de Oxumaré transporte para o infinito nossas orações, sonhos e anseios, e que nos traga as respostas divinas, de acordo com nossos merecimento. Arroboboi Oxumaré!

Que os raios de Iansã alumiem nosso caminho e o turbilhão de seus ventos leve para longe aqueles que de nós se aproximam com o intuito de se aproveitarem de nossos fraquezas. Êpa hey oyá!

Que as pedreiras de Xangô sejam a consolidação da lei divina em nosso coração. Seu machado pese sobre nossas cabeças agindo na consciência e sua balança nos incuta o bom senso. Caô! Caô cabecilê!

Que as ondas de Iemanjá nos descarreguem, levando para as profundezas do mar sagrado as aflições do dia-a-dia, dando-nos a oportunidade de sepultar definitivamente aquilo que nos causa dor e que seu seio materno nos acolha e nos console. Odoyá Iemanjá!

Que as cabaças de Obaluaê tragam não só a cura de nossas mazelas corporais, como também ajudem nosso espírito a se despojar das vicissitudes. Atotô Obaluaê!

Que a sabedoria de Nanã nos dê uma outra perspectiva de vida, mostrando que cada nova existência que temos, seja aqui na terra ou em outros mundos, gera a bagagem que nos dá meios para atingir a evolução, e não uma forma de punição sem fim como julgam os insensatos. Saluba Nanã!

Que a vitalidade dos Ibejis nos estimule a enfrentar os dissabores como aprendizado; que nós não percamos a pureza mesmo que, ao nosso redor, a tentação nos envolva. Que a inocência não signifique fraqueza, mas sim refinamento moral! Oni di beijada!

Que a paz de Oxalá renove nossas esperanças de que, depois de erros e acertos, tristezas e alegrias, derrotas e vitórias, chegaremos ao nosso objetivo mais nobre, aos pés de Zambi maior! Êpa babá Oxalá!

Que assim seja! Porque assim será! Porque assim o é!




NOTA: Desconhecemos o autor desta belíssima oração. 

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Lava Jato: Que os interesses nacionais sejam respeitados

 


https://petroleiroanistiado.wordpress.com/2015/01/30/petrobras-sair-da-crise-com-forcas-revitalizadas/




Petroleiro Anistiado, 30/01/2015



Sair da crise com forças revitalizadas



Haroldo Lima




Foi muito positivo a Petrobras ter encerrado o ano de 2014 com dois feitos retumbantes: no dia 16 de dezembro, na província do pré-sal, chegou a extrair 700 mil bep, um recorde e, cinco dias depois, em 21 de dezembro, outro recorde, o da produção diária de 2,3 milhões de bep. A grande estatal mostrava, pela ação de seus 80 mil petroleiros, que não se deixou alquebrar pela sanha das quadrilhas que a saqueavam.
O desmonte do esquema corrupto que operava na Petrobras deve ser completo, identificando responsáveis e punindo, de forma exemplar, os que agiam dentro da Petrobras e fora dela, nas 23 empresas apontadas como vinculadas ao esquema. Segundo um dos delatores, o esquema desbaratado funcionava há quinze anos, por isso que tem de ser vasculhado em profundidade.
No ambiente embaçado que nessas horas se forma, correntes procuram aproveitar a oportunidade para agitar bandeiras enfraquecedoras da Petrobras, como o fim da partilha da produção no pré-sal e, “se couber”, a própria privatização da companhia. São posições que nada têm a ver com a crise atual e tocam em pontos que devem permanecer inalterados na estatal.
Contudo, quadrilhas se estruturaram na Petrobras e seguramente criaram hábitos, costumes e conceitos a serviço do saque, que funcionaram, “dentro das normas”, anos a fio, sem despertar suspeita. É provável que tenha sido criada uma “legalidade da fraude”, nas entranhas da empresa. A governança revelou-se permeável à corrupção e por isso deve ser submetida à mais rigorosa devassa. A Petrobras, as estatais brasileiras e todo o esquema oficial que contrata o setor privado podem sair dessa crise devidamente revitalizados e mais preparados para cumprir suas atribuições. Os recordes apontados acima mostram que a Petrobras, livrando-se das quadrilhas de falsários, pode dar monumental volta por cima.
O processo de investigar crimes, punir culpados e impermeabilizar estruturas vulneráveis ao furto correspondem ao interesse nacional, pois que a Nação precisa de empresas fortes e saudáveis, públicas e privadas, para se desenvolver.
No momento, organismos jurídicos e políticos discutem procedimentos aplicáveis à situação. Dependendo do que for feito, resultados diferentes ocorreriam. Isto nos permite examinar cenários díspares que podem advir de caminhos legais em debate.
Um cenário é o das 23 grandes empresas brasileiras, citadas na fase investigatória, serem declaradas “inidôneas” e, por força de legislação existente, ficarem impossibilitadas de firmar contratos com o poder público. Aí, de uma só tacada, todas, ou quase todas as grandes empresas brasileiras de construção pesada ficariam fora das grandes obras a serem feitas no Brasil, praticamente todas contratadas pelo poder público. Em consequência, essas grandes obras brasileiras seriam “entregues” às empresas estrangeiras do ramo, enquanto as brasileiras, mesmo com o prestígio internacional que têm, caminhariam para o cadafalso. A desindustrialização precoce da economia brasileira cresceria e com ela sua desnacionalização.
Nesse cenário, a batalha contra a corrupção na Petrobras, mesmo que exitosa, teria dado um fruto desastroso – o fim da indústria nacional de construção pesada, ou sua transformação em um grupo de importância residual.
Apesar de frequentemente essas grandes empreiteiras abusarem do poder que têm no Brasil, sua liquidação seria um prejuízo para o país. Nisso ficamos de pleno acordo com a posição expressa da presidenta Dilma. Seria uma “ingênua” forma de combate à corrupção, que não levaria em conta as repercussões para a NaçãoVeríamos, constrangidos, o entusiasmo das empresas estrangeiras assumindo sozinhas nossos maiores projetos. Passaríamos a impressão de termos concluído que, pelo menos na construção pesada, os empresários brasileiros são corruptos, e os estrangeiros, vestais impolutos.
O outro cenário partiria da convicção de que país algum se desenvolveu sem contar com indústrias nacionais sólidas e reafirmaria a disposição de não abrir mão do desenvolvimento como objetivo maior da nossa política. Repudiaria, como balela, a ideia de que a Petrobras foi envolvida em corrupção por ser estatal, como se, há pouco, fraudes monumentais não tivessem posto abaixo a gigante americana de energia, a Enron, que não era estatal, e que faliu em meio a escândalos, numerosos e graves, que levaram de roldão outras tantas companhias. Defenderia, finalmente, que a punição em pauta deve ser rigorosa com diretores e funcionários corruptos, da estatal e das empresas privadas onde agiam, mas não poderia sacrificar as forças produtivas empresariais, seu acúmulo, sua tecnologia e sua força de trabalho.
A devastação a que se chegaria no primeiro cenário, lembra-nos as palavras do oficial norte-americano William Haley, após a destruição da aldeia My Lai no Vietnam: “foi necessário destruí-la para salvá-la”. A situação a que se chegaria no segundo cenário recorda-nos o adágio chinês que diz ser “necessário tratar a doença para salvar o doente”.
O esquema corrupto que vai sendo desmascarado mostrou tentáculos, ainda a serem comprovados, com diretores de empresas, funcionários graduados, políticos. Delegados, promotores e juízes têm dado as cartas até aqui. Quando interesses nacionais começam a ser tocados, é hora de entrar em ação outras esferas de Poder, para encontrar as fórmulas que garantam.


Haroldo Lima – é consultor na área de petróleo e foi diretor-geral da Agência


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http://tijolaco.com.br/blog/?p=24440



Tijolaço, 29/01/2015



A esquerda não controla o processo político. Deve, por isso, cuidar do que põe em marcha



Por Fernando Brito


No governo Fernando Henrique – e em todos os governos conservadores, exceto o de Collor, que serviu para barrar a esquerda, iniciar a privatização e, em seguida, foi defenestrado – o controle da política se fez não por uma amordaçamento direto da mídia, mas pela política do próprio sistema de comunicação, assim como fazia o Procurador-Geral Geraldo Brindeiro, “engavetar”, logo depois que estouravam, os escândalos políticos.
Sivam, Pasta Rosa, negociatas na privatização, compra de votos para a reeleição e uma montoeira de outras “bombas atômicas” foram, em prazo mais ou menos curto, desarmadas e relegadas ao armário dos guardados, depois de uma, outra ou meia-dúzia de matérias, muitas delas boas reportagens, admita-se.
Mas num governo do campo popular  (e por isso um inimigo para a mídia e para boa parte da elite judicial e parajudicial – ou alguém duvida que estes segmentos, privilegiados em meio à nossa pobreza, tendam ao conservadorismo?) tudo é diferente.
Vêem-se eles, pois, numa encruzilhada: para agir de forma “republicana” e honrada, muitas vezes partem a expor suas próprias entranhas – e alguém já falou sobre política e a fabricação de salsichas – fornecem elas próprias a matéria prima para as explorações e campanhas midiáticas, que amplificam os atos criminosos (ou mesmo outros, simplesmente equivocados) de dirigentes públicos no “mar de lama” que fizeram contra Getúlio Vargas.
A honestidade da Presidenta Dilma Rousseff e de Graça Foster, da Petrobras, além de não ser objetivamente atingida por nada que se tenha apurado só podem ser ratificada por suas decisões, sobretudo a de afastar  da empresa, desde 2012, Paulo Roberto Costa, o ladrão confesso.
Mas incorrem em amadorismos políticos que só agravam a “onda” de que seus adversários políticos fazem, não apenas por objetivos políticos mas, também, contra a nossa maior empresa, alavanca do desenvolvimento brasileiro e marco de nossa soberania.
A produção de um relatório de diferenças contábeis na avaliação de ativos totalmente “troncho”, onde se misturam, além dos sobrepreços oriundos da roubalheira de Costa, fatos tão díspares quanto variações cambiais, de preço do petróleo, de ajustes de projetos, de especificações errôneas em projetos foi um destes.
Produziu-se um número gigantesco e  fantasioso: R$ 88 bilhões.
Um número que, sabe qualquer um que entenda um mínimo de contabilidade empresarial, não serve para nada, ainda mais com ativos que não têm “valor de mercado”. Não se compra e vende uma refinaria como quem vende um Golzinho, em bom estado, tinindo de novo….
Não reflete coisa alguma, nem do ponto de vista do valor contábil de um ativo nem de seu valor econômico para o país, porque este também é critério de mensuração numa empresa que tem compromisso com o desenvolvimento nacional: muitas vezes é melhor fazer algo aqui, mesmo por 5 ou  10% mais caro, do que importar: é o caso de navios, equipamentos de conteúdo nacional, instalações industriais, etc…
E ainda tem a questão de saber com que preço do petróleo e derivados se faz o cálculo: o da época, mais ou menos o mesmo de há alguns meses, ou o atual, metade disso? E se amanhã for o dobro?
Essa conta terá de ser feita a partir de cada negócio escuso: quanto custaria sem falcatruas e quanto custou, de fato.
Mas a direção da Petrobras, na ânsia de se mostrar confiável e honrada, produziu este número que, afinal, ela própria reconhece imprestável, como de fato é.
E entregou carne às hienas. 

sábado, 27 de dezembro de 2014

O Fórum 21 e ​2015, o ano que pode surpreender

 
 




Carta Maior, 27/12/2014




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2015, o ano que pode surpreender




​Por Saul Leblon




A palavra   incerteza  comanda a passagem de 2014 para o Brasil de 2015, mas o chão mole do calendário político registra agora uma auspiciosa pavimentação de terra firme que pode surpreender.


Uma frente de esquerda formada pelos principais movimentos sociais  brasileiros,  tendo à frente, entre outros, o dirigente do MTST, Guilherme Boulos, está em formação no país.

Não é ainda a alavanca capaz de reverter a ofensiva conservadora em marcha batida na sociedade. Mas tem potência para isso.
Tem, sobretudo, capacidade para sacudir uma correlação de forças na qual as elites mastigam a margem de manobra do  segundo governo Dilma entre os dentes da fatalidade econômica e do engessamento político.

A iniciativa dos movimento sociais, apoiada por partidos de esquerda, conta com um incentivo sintomático  da gravidade dos dias que correm: o do ex-presidente Lula e, portanto, de uma parte significativa do PT.

Tem, ademais, um precedente revelador.

Ela vem se somar a uma mobilização equivalente, iniciada há cerca de um mês, para reaproximar intelectuais de esquerda  e construir um contraponto de ideias progressistas ao agendamento conservador da sociedade, martelado diuturnamente pelo jogral midiático.

Trata-se de uma usina de respostas à espiral regressiva; uma caixa de ressonância de intelectuais cidadãos.

Esse polo de debate e combate foi oficializado no dia 15 de dezembro, em evento em São Paulo, com o nome de Fórum 21.

A primeira assembleia, no Sindicato dos Engenheiros, elegeu como uma de suas vértebras a luta pela democratização dos meios de comunicação.

Presente no lançamento, o secretário de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Juca Ferreira, afirmou que os meios de comunicação são o principal obstáculo ao debate crítico dos reais desafios brasileiros.

 ‘Precisamos iniciar uma reconstrução programática que supere nosso próprio desgaste, mas essa tarefa requer um ambiente midiático oposto ao atual,  concentrado e carente de regras democráticas’, disse Ferreira.  (leia  ‘Para Juca Ferreira, falta de democracia da mídia substituiu censura do regime militar’, nesta pág).

A importância descomunal da imprensa na luta política não é assunto estranho à reflexão intelectual  desde que Gramsci (1891-1936) o incorporou a sua obra. Na Itália, a fragilidade das estruturas partidárias, ao lado das dificuldades impostas por uma unificação feita de instituições ralas e abismos sociais e regionais profundos, fez com que os jornais assumissem funções de verdadeiros partidos, ensinou o pensador comunista.

As semelhanças meridionais com o subdesenvolvimento tropical não são negligenciáveis.

Nos anos 90, Celso Furtado costumava explicar pacientemente aos jovens jornalistas – os poucos que ainda procuravam o grande economista brasileiro taxado de jurássico pela emergente agenda tucana— que o ‘populismo’, ao contrário da demonização que lhe atribuíam as elites, refletia o vácuo histórico de uma sociedade pouco sedimentada institucionalmente, capturada pelas mandíbulas de um capitalismo de fronteiras indivisas.

O Estado e os líderes carismáticos compensavam o oco político falando direto às massas. E intervindo na economia para organizar a luta contra o subdesenvolvimento.

A colisão entre esse improviso de poder popular e o diretório midiático gerou entre nós alguns capítulos pedagógicos.

O suicídio de Vargas foi um deles.

O criador da igualmente por isso maldita Petrobras apertou o gatilho para não ceder à pressão insuportável do denuncismo lacerdista, que exigia sua renúncia em emissões sistemáticas através da rádio Globo, dirigida então pelo jovem udenista Roberto Marinho.

O Brasil era descrito como um mar de lama.

É dispensável enfatizar as semelhanças com a pauta e os métodos abraçados agora pelos grandes veículos de mídia em sintonia com a oposição conservadora ao governo Dilma, ao PT e ao ‘lulopopulismo’ econômico.

O Fórum dos intelectuais  e a frente de movimentos sociais  emergem como o contraponto mais importante a isso, desde a vitória de Dilma em 26 de outubro.
​ 
O conservadorismo atordoa o discernimento da sociedade desde então com uma escalada vertiginosa de iniciativas.

Habilidosamente, equipara-se combate à corrupção à demonização do polo progressista, no qual se espeta o selo da degeneração política, associada a práticas econômicas ‘intervencionistas’.

A ideia de uma salubridade externa à história, tomada como referência limpa e boa na construção da sociedade, é um daqueles mantras aos quais se agarram os interesses dominantes de todos os tempos.

A depender da conveniência, essa salubridade poderá vestir a toga da judicialização da ‘má política’. Ou a gravata técnica dos centuriões que falam em nome da proficiência dos mercados para dar o rumo ‘correto’ à economia.

Ou ainda encarnar no monopólio de um dispositivo midiático que se avoca a prerrogativa de um Bonaparte, a emitir interditos e sanções em defesa dos interesses particulares apresentados como os de toda a nação.

Hoje, o objetivo desse aluvião é o impeachment de Dilma ou o sangramento irreversível de seu governo, e das forças que o apoiam, bem como das ideias que as expressam. Até o seu sepultamento histórico em 2018.

Semanas após a vitória progressista nas urnas, quando o governo parecia hipnotizado pelo serpentário golpista que havia subestimado,  e por isso não se preparado para defender o escrutínio popular, Carta Maior indagava:

‘O que se pergunta ansiosamente é se  Lula já conversou sobre isso com Boulos, do MTST; se Boulos já conversou com Luciana Genro; se Luciana Genro já conversou com a CUT ; se a CUT já conversou com Stédile; se todos  já se deram conta de que passa da hora de uma conversa limada de sectarismos e protelações, mas encharcada das provid
ê
ncias que a urgência revela quando se pensa grande
. Se ainda não se aperceberam da contagem regressiva que ameaça o nascimento de um Brasil emancipado e progressista poderão ser avisados de forma desastrosa quando o tique taque se esgotar’.


A boa nova na praça é que a conversa começou.

O desafio de vida ou morte consiste agora em restaurar a transparência dos dois campos em confronto na sociedade.

Na aparente neutralidade de certas iniciativas pulsa, na verdade, a rigidez feroz dos interesses estruturais por elas favorecidos
.

O melhor solvente para essa tintura é a ampla participação popular no debate e nas decisões que vão definir a rota do futuro brasileiro.

O país, desde 2003, e com todas as limitações e contradições intrínsecas a um governo de base heterogênea
- tem figurado aos olhos do mundo como uma das estacas da resistência latino-americana à retroescavadeira ortodoxa, que demole e soterra direitos sociais e soberania econômica urbi et orbi.


Essa resistência criou um dos maiores mercados de massa do planeta em uma demografia de 202 milhões de habitantes.

O assoalho macroeconômico range e ruge  sob o peso da inadequação entre a emergência dessa nova força motriz  e as estruturas rigidamente pensadas para exclu
​í
-la do mercado e da cidadania.


A solução da 'agenda técnica’ é higienizar a sujeira do intervencionismo público em todas as frentes, devolvendo o mando do jogo à faxina  autorreguladora  dos mercados.

Sobrepor o interesse privado aos da sociedade implica capturar o sistema democrático integralmente para esse fim.


Era esse o objetivo dos candidatos conservadores derrotados em outubro.

Não era apenas uma disputa presidencial. Mas um capítulo do embate inconcluso pelo comando do desenvolvimento brasileiro.

Daí a ilusão de se supor que concessões pontuais vão saciar o agendamento derrotado nas urnas.

Não será a adoção homeopática de sua farmacopeia que o fará recuar.

O discernimento daquilo pelo que se luta, e contra quem se travará a batalha dos próximos dias e noites, é crucial para os interesses populares afrontarem a avalanche em curso.

Essa é uma batalha entre a democracia social e as forças regressivas que se insurgiram contra a sua construção em 32, 54, 64, 2005, 2006, 2010 e 2014.

Tornar esse divisor visível aos olhos da população requer um símbolo de magnetismo equivalente à dimensão das tarefas que essa agenda encerra em termos de organização e  repactuação do país com o seu desenvolvimento.

Requer o nascimento de uma frente  de esquerda que, à semelhança do ‘Podemos’, na Espanha, guarde incontrastável vinculação com as urgências populares. Mas também  encerre um denso discernimento das contingencias globais, que não podem ser abduzidas pelo imediatismo corporativista.

Embora o martelete midiático tenha disseminado a bandeira do antipetismo bélico, a ponto de hoje contagiar setores amplos da classe média, o fato é que esse trunfo conservador  ainda não reúne a energia necessária para  inaugurar  uma nova ordem.

O pântano, por enquanto, o satisfaz.

Ele desarma a sociedade e  exaspera a cidadania.

Dissemina um sentimento de impotência diante das urgências de uma  transição de ciclo econômico marcada por uma correlação de forças  instável,  desprovida de aderência institucional , ademais de submetida à determinação de um  capitalismo global  avesso a qualquer  outro ordenamento que não  o vale tudo dos mercados.

A força e o consentimento necessários para conduzir  esse  ciclo em uma chave que não seja a do arrocho requisitam o salto de articulação social que agora se ensaia.

O caminho oposto é o da treva.

A regressividade conservadora predominante na Itália após o ‘Mãos Limpas’, nos anos 90, não é uma miragem; é um risco real em sociedades desprovidas de representação política forte e organização social mobilizada (leia ‘Mãos Limpas; e depois, Berlusconi?’; nesta pág).

 Lá como aqui o lubrificante do retrocesso foi a prostração progressista e a incapacidade da esquerda e dos democratas de construir um repto histórico de esperança para engajar a sociedade no comando do seu destino.

 A gravidade dos desafios embutidos no calendário de 2015 é de ordem equivalente.

Saber onde estão as respostas e reunir a energia política capaz de validá-las é trunfo valioso.

É esse o significado encorajador da nascente frente de esquerda dos movimentos sociais e da usina de intelectuais cidadãos reunidos no Fórum 21.

São sinais de um aggiornamento em curso na vida política nacional.

Mas que já extrapolam a mera formalidade da travessia gregoriana, para emprestar a 2015 a dimensão e o desassombro de uma verdadeira renovação histórica.
Que assim seja um bom ano novo, são os votos que Carta Maior tem a certeza de compartilhar com seus leitores e com a imensa maioria do povo brasileiro.
 
 
 



​CEMA Barão de Itararé, 16/12/2014​



FÓRUM 21: DEMOCRATIZAR A MÍDIA É CHAVE PARA DERROTAR O CONSERVADORISMO


Por Felipe Bianchi


Como resposta à onda conservadora na política e na sociedade brasileira, foi lançado nesta segunda-feira (15), em São Paulo, o Fórum 21. A articulação entre intelectuais e lutadores do movimento social fez sua primeira assembleia no Sindicato dos Engenheiros, com a proposta de aglutinar forças da esquerda para discutir o processo brasileiro e aprofundar os avanços sociais no país – tarefa que exige a democratização dos meios de comunicação.
Joaquim Palhares, editor do portal Carta Maior e um dos idealizadores do Fórum 21, apresentou a novidade como uma forma de romper o hiato pós-eleitoral, em defesa do projeto vitorioso nas urnas. Para ele, é preciso “sacudir a coalizão de forças que, atualmente, está pendendo para a direita”.
A i
deia é unificar a esquerda, pois, separados, seremos liquidados”, alerta Palhares. “Não se trata de uma trincheira contra o governo, mas de um movimento que atue junto e de forma crítica a ele, contra a restauração do neoliberalismo”.
Segundo o prólogo de abertura da atividade, as forças de esquerda no Brasil são como “arquipélagos”, isolados uns dos outros. “Esses atores têm que convergir e conquistar espaços nas tomadas de decisões dos rumos do país”, assinala Palhares. “Precisamos criar uma hegemonia progressista, pois nossas vitórias políticas não se sustentarão sem a disputa de ideias”.
O Fórum 21 planeja uma agenda permanente de atividades para 2015, como debates e aulas públicas mensais que estimulem a reflexão e o diálogo entre os movimentos de esquerda e a população.

Regulação da mídia, uma tarefa inadiável
Enfrentar o tema da regulação da mídia, de acordo com os debatedores e participantes do Fórum 21, é uma missão imprescindível para barrar o avanço da direita e reverter o atrofiamento do processo de transformações que atravessa o país nos últimos 12 anos.

Presente no lançamento, o secretário de Cultura da Prefeitura de São Paulo Juca Ferreira, cotado para assumir o Ministério da Cultura no segundo mandato de Dilma Rousseff, avalia que os meios de comunicação são o principal instrumento do conservadorismo. “Precisamos fazer um balanço crítico e iniciar uma reconstrução programática, que supere nosso próprio desgaste”, defende, apontando que a dura missão é ainda mais espinhosa com o atual cenário midiático, concentrado e carente de regras democráticas.
Para Venício Lima, um dos maiores estudiosos do tema no Brasil, a luta pela regulação da mídia é, acima de tudo, um dever democrático: “Em primeiro lugar, trata-se de regular e cumprir o que já está na Constituição do país há 25 anos”, argumenta. “O que está lá, como por exemplo o direito de resposta, o Conselho de Comunicação Social e o artigo que faz restrições quanto a políticos serem donos de veículos de comunicação, é fruto de um duro processo [Lima foi assessor constituinte]”.
Ele ainda defende que o movimento faça uma dura cobrança ao governo em relação ao campo da mídia pública. “Qual a importância real que o governo dá a esse setor? No debate eleitoral, a TV Brasil foi preterida até mesmo por Dilma, quando na verdade deveria ser prestigiada na cobertura democrática do processo eleitoral”. A situação dos meios comunitários, principalmente as rádios, também foi lembrada pelo estudioso.
Por fim, Venício Lima apontou a questão da distribuição de publicidade oficial como uma “tragédia diária”, já que o governo injeta milhões de reais em meios que atuam como verdadeiros partidos de oposição, ao invés de reparti-los de forma diversificada. “O critério técnico, de distribuir dinheiro de acordo com os índices de audiência, apenas reafirma, na prática, o oligopólio midiático brasileiro”.
A discussão sobre a pauta da comunicação também contou com a participação de Bia Barbosa (Intervozes) e de João Feres Júnior (professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e idealizador do Manchetômetro).
Ao longo do debate, foi reiterada a necessidade de o movimento pressionar o governo para que o tema seja tratado como prioridade. A regulação econômica dos meios foi uma promessa de campanha feita por Dilma Rousseff, mas é considerado pouco por entidades que lutam pela democratização do setor.
Renata Mielli, do Barão de Itararé, destacou que nem toda regulação de conteúdo configura censura, como a direita propagandeia. “Cotas de produções regionais e nacionais, por exemplo, são pontos constitucionais que tratam de conteúdo e ficariam de fora de uma regulação meramente econômica”, salienta.

A piada pronta do bolivarianismo patronal








27 de dezembro de 2014



A piada pronta do bolivarianismo patronal


 
Por Paulo Moreira Leite



A demissão de João Paulo Cunha, editor de cultura do jornal Estado de Minas, publicação de maior circulação naquele estado, ajuda a colocar um traço de realismo ao debate sobre liberdade de imprensa no Brasil.

É uma piada pronta, que ajuda a lembrar que vivemos um regime que deveria ser definido como bolivarianismo patronal.
Todos lembram de uma noite recente em São Paulo, quando jornalistas subiram ao palco de uma cerimônia de premiação para dizer em tom dramático: “não ao controle social da mídia.” É disso que estamos falando.
Embora estejamos falando de um direito constitucional, na vida real da imensa maioria de jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV do país o exercício da liberdade de expressão vive limitado por uma prerrogativa de classe.
Pode  ser exercida pelos donos da empresa, seus familiares e uma pequena elite de profissionais autorizados. E só.
Aos demais jornalistas está reservada a função de apurar o que pedem e escrever o que mandam, num regime de cima para baixo que não é exagero comparar com hierarquia militar.
A linguagem panfletária, editorializada, reflete a falta de debate interno. A edição seletiva, dirigida para ressaltar um ponto de vista pré-definido, expressa a mesma situação.
Profissional diferenciado, há 18 anos no Estado de Minas, João Paulo pediu demissão ao ser informado pela direção da publicação que não estava mais autorizado a escrever sobre assuntos políticos.
A decisão foi tomada depois da publicação de um artigo no qual o autor ousava fazer uma observação em tom crítico ao senador e ex-candidato presidencial Aécio Neves. Convém atentar para dois detalhes. O artigo foi publicado em 12 de dezembro de 2014, ou seja, um mês e meio depois que Aécio já tinha sido derrotado por Dilma Rousseff, quando os votos já haviam sido contados e o resultado da eleição já fora anunciado. Seria impossível, portanto, imaginar que João Paulo tivesses a intenção de usar as páginas do Estado de Minas para pedir votos para a adversária de Aécio nas páginas de um jornal que defende a candidatura presidencial do senador mineiro desde 2010, quando ele sequer concorria  ao Planalto.
Outro aspecto é que não se trata de um artigo que julgasse Aécio Neves como um político bom ou ruim. Fazia uma crítica a sua postura depois da derrota, quando Aécio e o PSDB partiram para a ignorância: tentaram impugnar as urnas e estimularam protestos que pediam golpe de Estado. Num texto denso, refletido, verdadeira glória da imprensa brasileira de nossos dias, onde é raro ler-se um material de qualidade equivalente, João Paulo comparou Aécio a Bentinho, o personagem de Machado de Assis que não consegue compreender o que acontece no mundo – nem com a mulher Capitu, suspeita de adultério.
Vamos ler um trecho do artigo, chamado ndrome de Capitu:

“Bentinho não sofre só pela traição mas porque não entende que o mundo mudou. Não pode aceitar que a sociedade republicana deixou para trás as amarras elitistas do Segundo Reinado e da escravidão. (…) Tudo o que ele não compreende o ameaça.”
Outro parágrafo:
O Brasil tem uma recorrente síndrome de Capitu: tudo que a elite não tolera se torna, por meio de um discurso marcado pela força jurídica e da tradição, algo que deve ser rejeitado. Eternos maridos traídos. A tendência de empurrar a política para os tribunais é uma consequência desse descaminho. Assim, tudo que de alguma forma aponta para a mudança e ampliação de direitos é considerado ilegítimo e, em alguns momentos, quase uma afronta que precisa ser questionada e combatida. Foi assim com a visibilidade dada aos novos consumidores populares (que foram criminalizados em rolezinhos ou objeto de ironia em aeroportos), com as cotas raciais para a universidade, com a chegada de médicos estrangeiros para ocupar postos que os brasileiros, psicanaliticamente, denegaram.”
A leitura desses parágrafos – o texto integral pode ser encontrado na internet
​ (O publiquei no 'Carcará'. Ivan)​
– mostra uma produção intelectual sofisticada, a altura das complexidades de um país como o Brasil em 2014. Não estamos falando de um panfleto. O tom é profissional, de quem sabe seus limites e conhece as fronteiras de quem faz a dissidência num ambiente geral hostil.

O vigor intelectual contrasta com uma certa  timidez política, até.
E aí chegamos ao verdadeiro bolivarianismo de nossas terras. Qual a liberdade que ameaça nossos Bentinhos? Qual seu temor?
Ao falar de uma elite de “eternos maridos traídos”, João Paulo toca no ponto central de nossa democracia, regime que pode ser aceito, preservado e até celebrado – enquanto o povo não ousa ultrapassar determinados limites e fronteiras. Quando isso acontece, considera-se traição – e isso é imperdoável.
Esse é o drama da liberdade de expressão e da democratização dos meios de comunicação. A luta contra a censura foi bem-vinda enquanto auxiliou os donos de jornal a livrar-se das botas e tanques de um regime que haviam ajudado a colocar de pé.
Foi uma causa justa correta, vamos ter clareza.
Quando se procura ampliar o espaço para que o conjunto da sociedade possa se manifestar, num movimento que apenas fortalece a democracia, e é coerente com as mudanças sociais que ocorreram no país na última década, a reação é falar em bolivarianismo, sem receio de produzir uma fraude. Quem censura? Quem cala o outro lado? Quem oprime?
Até dá para entender. Só não dá para aceitar.
Síndrome de Capitu” é um trabalho de gabarito, que não se lê todos os dias, que coloca a política em outro plano, da discussão cultural. Ajuda a pensar o país – e é isso que se proibiu.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

A tortura também é terrorismo



 
 



 

Carta Maior, 26/12/2014

 
 
A tortura também é terrorismo


PorLuis Matías López*




O dicionário da Real Academia Espanhola define terrorismo como “sucessão de atos de violência executados para infundir terror”, e tortura como “grave dor física ou psicológica infligida a alguém, com métodos e utensílios diversos, com o fim de obter dele uma confissão, ou como meio de castigo”.

Não são termos sinônimos, mas são quase, se deduzirmos que utilizar a tortura para conseguir informações que contribuam para evitar atos de terrorismo é um disparate. Porque é tão terrorista quanto o que aplica choques nas genitálias de um preso ou afunda sua cabeça na água até o limite do afogamento, tão terrorista como aquele que veste um cinto explosivo ou o explode para causar a maior dor possível no inimigo, ainda que leve junto um punhado de inocentes.

Além disso, a fronteira entre bons e maus, entre eles e nós, é difusa porque, quase sempre, os grupos se definem por ideologias e comportamentos que escondem interesses econômicos e ideologias egoístas ou fanáticas. Como estamos do lado de cá desta linha tênue de separação, engolimos com facilidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo a idéia de que os Estados Unidos e o Ocidente em geral representam o poder brando que, por puro altruísmo, tenta levar a civilização, a democracia e os direitos humanos para onde reinam o fanatismo e a barbárie.

Entretanto, do outro lado, o filme passa de modo muito diferente, e o que daqui chamam de terrorismo se justifica com uma resposta assimétrica (a assimetria é forçada pela desigualdade de meios) ao imperialismo brutal que se impõe a sangue e a fogo, a desautorização da defesa de legítimos interesses nacionais, o aplastamento das tentativas de estabelecer um modelo social e cultural próprio, não coincidente com a chamada “civilização cristã” e ao espolio das matérias primas. Posteriormente, a história, como quase sempre, vai impor sua particular justiça e transformará em maus os vencidos e em bons os vencedores, os que a escreverão.

A utilização da tortura como método habitual de interrogatório de presos durante a presidência de George Bush supôs uma aberração que não pode ser justificada nem sequer com o argumento de que com isso talvez fossem evitados novos atos de terrorismo, como os de 11 de setembro de 2001. Certamente, o único terrorismo que se admite que exista é o dos outros porque, por exemplo, transformar Gaza, Iraque ou Afeganistão em escombros, derrubar regimes como o de Muamar Gadafi para que a Líbia passasse a ser um Estado falido, ou ordenar assassinatos seletivos em que morrem mais inocentes do que supostos terroristas não é terrorismo, mas sim legitimar atos de guerra em defesa própria.

No caso da pena capital, os Estados que reivindicam sua superioridade moral sobre os criminosos ou deliquentes ou terroristas não podem clamar por justiça com a lei do talião. Uma morte, por mais legal que seja, não se justifica com outra, se não se transformará em um desprezível ato de vingança. Da mesma forma, responder o terror com o terror, caçar inimigos com bombardeio ainda custa muitas vidas inocentes, prender em caráter indefinido e sem direito a julgamento os suspeitos de executar ou preparar atos terroristas, submetê-los a todo tipo de maus tratos ou torturas supõe uma indignação que nunca poderá ter justificativa moral.

Que o país com mais advogados por quilômetro quadrado do mundo mantenha fora da legalidade a prisão da vergonha de Guantánamo onde, por trás de seus muros e cercas, seus detentos são privados até mesmo do direito a um julgamento justo e da própria dignidade. Isso diz muito da superioridade ética atribuída aos Estados Unidos, em nome da qual se faz e desfaz por todo o mundo.

Pior ainda: estas práticas, que um recente comunicado do Senado voltou a abordar, servem para detonar o pretexto da imperdoável selvageria com que a Al Qaeda, suas franquias e o emergente Estado Islâmico atuam em suas áreas de influência: execuções massivas no Iraque e na Síria, degolamentos de reféns inocentes ocidentais filmados e difundidos pela internet, matanças e seqüestros de centenas de crianças na Nigéria. Por mais lugar comum que pareça, a violência gera mais violência; o ódio, mais ódio; o terror, mais terror; e a injustiça, mais injustiça.  

As reações ao comunicado do Senado dos Estados Unidos supuseram um exercício de cinismo e hipocrisia. Reconheceram os múltiplos abusos e atrocidades cometidas. John Brennan, o mesmíssimo diretor da CIA – agência que levou o peso dos interrogatórios entre 2002 e 2007 – reconhece que se tratou de “aberrações”, mas evita empregar o termo “tortura” – dada sua cobertura legal – e assegura que permitiram obter “informações úteis” que, por exemplo, contribuíram para eliminar Osama Bin Laden naquela “hora mais escura” de 2012. O filme de mesmo título de Kathryn Bigelow analisa essa tese e mostrava como se utilizaram procedimentos tão científicos com os suspeitos como afogamento simulado, privação durante dias de sono, humilhação sexual e inclusive confinamento em um caixão fedorento. O comunicado do Senado acrescenta outros como “alimentação forçada”, banhos em água gelada, trabalho forçado, espancamentos e abusos sexuais.

O informativo nega a relação causa-efeito (tortura-informação) e sustenta que as chamadas “técnicas de interrogatório reforçadas” (sinistro eufemismo) não proporcionaram dados relevantes para prevenir atentados. Brennan admite que foram cometidos “erros” dos quais não se exigiu responsabilização, mas assegura que a maioria dos agentes da CIA cumpriram com seu dever “à serviço da nação”. Apenas um passo menos do que disse o ex-vice-presidente Dick Cheney, ideólogo dessa guerra suja: “deveriam ser condecorados, não criticados (...) Tem que ser amável com os assassinos de 3 mil norte-americanos?. Não há problema: esses patriotas torturados têm impunidade garantida. 




O descafeinado mea culpa remonta a uma autocomplacência, sobretudo quando se recorda que o programa contava com os avais mais altos possíveis, os do Departamento de Justiça e da Casa Branca. A pergunta agora é: já acabou? Terminou este capítulo da nossa historia? São estas aberrações que nunca mais acontecerão? É mais que duvidoso. Barack Obama chegou ao poder prometendo que sua presidência estaria definida pelo “império da lei e dos direitos humanos”, convencido de que são compatíveis a “nossa segurança e nossos ideais”. Disse isso em 2009, quando o então chefe da CIA, Leon Panetta, declarava: “Não se deve utilizar a tortura sob nenhuma circunstância”.  


Está sendo assim? Depende, claro, do que se entende por tortura, mas custa muito qualificar como tortura o tratamento que os presos de Guantánamo sofrem, muitos dos quais sequer são suspeitos de algum crime, mas os que não se sabe para onde enviar ou se devem ser liberados, enquanto o resto permanece sem uma esperança razoável de comparecer algum dia diante de um tribunal de justiça. E fechar Guantánamo, não é preciso esquecer, era a primeira promessa de Obama quando chegou à presidência, há seis anos. Uma prova a mais de sua impotência, de sua falta de capacidade, de vontade ou de tudo isso junto.

Sobretudo, cabe questionar que, se acontecer outra vez uma “emergência nacional”, como a de 11 de setembro, a hipócrita preocupação com os direitos humanos alheios, os do inimigo, ceda diante dos sacrossantos interesses da segurança nacional, principalmente se Obama já não estiver na Casa Branca. Entretanto, não haverá tortura de forma oficial por uma razão elementar, porque, por definição, ela já não existe. E assim, Guantánamo, por exemplo, deve ser outra coisa. E se chegassem a aprovar novas medidas que recordem as de Bush e que se pareçam com a tortura, um termo tão inocente seria procurado, como o eufemismo “métodos reforçados de interrogatório”, que tanta polêmica causaram.

Brennan insinuou algo terrível: que no futuro, em caso de outro ataque como o das Torres Gêmeas e do Pentágono, poderia ser recuperada a lógica e o tipo de medidas que tornaram possíveis os excessos que agora são condenados no demolidor informativo do Senado. Sabe do que fala: tinha um cargo de responsabilidade na CIA quando a agência transformou a tortura em rotina e, antes de ser o principal assessor antiterrorista de Obama, defendeu os procedimentos que serviam para “obter informação relevante que pode salvar vidas”. Isso freou sua eleição como diretor da CIA em 2009... mas somente até 2013.


*Ex-redator chefe e correspondente em Moscou do El País, membro do Conselho Editorial do Público até o desaparecimento de sua edição em papel. Colunista regular do site Público.es

Tradução de Daniela Cambaúva

Mãos ao alto (e oxalá não te asfixiem)


 
 




Carta Maior, 26/12/2014


Mãos ao alto (e oxalá não te asfixiem)



Por Amy Goodman - Truthdig
 
 

Outro negro americano morto às mãos da polícia. Outro grande júri que decide não apresentar queixa contra o polícia responsável: nem por assassinato, nem por homicídio, nem por agressão. Nem sequer por conduta imprudente e temerária. Vivemos num país onde reina a impunidade; pelo menos para quem está do lado do poder.

No verão passado, após cobrir os protestos em Ferguson, Missouri, voltei à cidade de Nova York e fui diretamente a Staten Island cobrir a marcha de protesto do assassinato, às mãos de um polícia, de Eric Garner, um negro de 43 anos de idade, pai de seis filhos. O caso foi notavelmente semelhante ao do assassinato de Ferguson, onde o polícia Darren Wilson disparou e matou o adolescente negro desarmado Michael Brown. Ambos os casos envolveram agentes da polícia brancos que aplicaram força letal. Ambas as vítimas eram negros desarmados. Em ambos os casos os promotores locais, com estreitos vínculos aos departamentos de polícia locais, puderam controlar o grande júri. Mas houve algumas diferenças entre os casos. A principal é que o assassinato de Eric Garner foi registrado em vídeo.

Se observarmos cuidadosamente o vídeo, no momento em que Daniel Pantaleo, o policial de Nova York, submete Eric Garner a um estrangulamento ilegal, vê-se Eric Garner levanta as mãos em sinal de rendição, como internacionalmente se entende. Ato sequente, é derrubado por um grupo de polícias e escutamo-lo a dizer várias vezes que não consegue respirar. Di-lo onze vezes antes de deixar de lutar e morrer.

De onde veio este vídeo? Um jovem chamado Ramsey Orta encontrava-se perto de Garner nessa tarde de 17 de julho quando chegou a polícia. Orta pegou no telemóvel e filmou tudo. Pantaleo foi apanhado em flagrante e a prova foi exposta a todo o mundo. Apesar disso, o grande júri decidiu não apresentar queixa contra ele. Só duas pessoas foram presas depois da morte de Garner: Ramsey Orta, que filmou o vídeo, e a sua esposa, Chrissie Ortiz. Chrissie declarou a uma estação de televisão local que desde que Ramsey foi identificado como autor do vídeo, ambos foram submetidos a assédio policial. Ramsey foi preso no dia seguinte àquele em que o médico forense da cidade declarou que a morte de Garner tinha sido um homicídio.

Pouco depois, Chrissie também foi presa. Vi-os na marcha de Staten Island naquele sábado, parados junto ao lugar onde morreu Garner. Pedi-lhes que comentassem, mas tiveram medo e refugiaram-se na mesma escada onde estava Ramsey enquanto filmava a morte de Garner.

Nessa marcha de Staten Island de 23 de agosto, conquanto Ramsey e Chrissie optassem por não falar, muitas outras pessoas o fizeram. Uma delas foi Constance Malcolm, mãe de outro jovem negro morto às mãos da polícia: “O meu nome é Constance Malcolm. Sou a mãe de Ramarley Graham. O [procurador geral] de Staten Island não devia ser responsável deste caso. Não queremos que ocorram as mesmas coisas que no caso de Ramarley. Não podemos permitir que isto aconteça. Precisamos que venham responsáveis federais e se ocupem do caso agora mesmo. É necessário que os culpados sejam responsabilizados”,

Também entrevistei Imani Morrias, uma menina de apenas 12 anos de idade: “Precisamos de mostrar à comunidade que estes agentes da polícia devem ser responsabilizados e sentenciados por tudo o que causaram. Já causaram muita dor”.

Perto dali, outra jovem negra que só deu o seu nome próprio, Aniya, marchava solenemente. Aniya tem 13 anos de idade. Perguntei-lhe o que desejava conseguir com o protesto: “Viver até aos 18 anos sem que disparem sobre mim. Quero crescer, viver a vida. Não quero morrer em questão de segundos por culpa da polícia”.

A notícia sobre a decisão do grande júri no caso de Garner foi difundida em Staten Island ao mesmo tempo que, a centenas de quilómetros de distância, em Cleveland, terminava o funeral de outro negro morto às mãos da polícia. Tamir Encrespe, de 12 anos, estava a agitar uma pistola de brincar num parque público a 22 de novembro quando um polícia de Cleveland chegou num carro patrulha, desceu bruscamente e atirou a matar. O sonho de Aniya de uns meses atrás aparece como um fantasma no funeral de Tamir: “Viver até os 18 anos sem que disparem sobre mim”.

Enquanto era divulgado que o polícia Daniel Pantaleo não seria acusado da morte de Eric Garner, o presidente da câmara de Nova York, Bill de Blasio, apoiou os líderes afro-americanos em Staten Island. “Este deve ser um momento de luto nacional, de dor e de busca de soluções. Ouvimos dizer repetidamente a mesma frase básica da parte de pessoas de diversas origens: que as vidas dos negros contam. E disseram-no porque era aquilo que era preciso dizer. É uma frase que não deveria ser necessário pronunciar nunca, deveria ser evidente. Mas, lamentavelmente, a nossa história exige que o digamos. Porque, como disse no outro dia, não é um problema do ano 2014. Não se trata de anos de racismo que conduziram a isto, nem de décadas, mas de séculos de racismo que nos conduziram ao dia de hoje. Essa é a profundidade da crise”. Milhares de pessoas juntaram-se ao longo da cidade de Nova York para repudiar a decisão do grande júri. Juntaram-se em Staten Island, no local do crime, onde Garner morreu, e em Harlem, Times Square e Union Square. Entre os cartazes podia ler-se “Ferguson está em todo o lado”.

Os protestos contra a impunidade estão apenas a começar.


Artigo publicado em Truthdig em 3 de dezembro de 2014. Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna. Texto em inglês traduzido por Inés Coira para espanhol para Democracy Now. Tradução para português de Carlos Santos para Esquerda.net