domingo, 30 de novembro de 2014

As diferenças raciais no combate ao ebola




http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/11/diferencas-raciais-combate-ao-ebola/




Portal Forum, 30 de novembro de 2014



As diferenças raciais no combate ao ebola



Por Kwei Quartey, em Foreign Policy in Focus |
Tradução: Vinicius Gomes




Os profissionais da saúde Nancy Writebol, Kent Brantly, Craig Spencer e Rick Sacra, assim como o cameraman da NBC Ashoka Mupko, foram beneficiários da sofisticação médica do sistema hospitalar dos Estados Unidos.
Todos eles contraíram o ebola no oeste da África e sobreviveram para contar suas histórias, saindo do hospital livres do vírus e aparecendo incrivelmente saudáveis. Eles tiveram a vantagem de um rápido diagnóstico e uma pronta evacuação para o principal centro de isolamento dos EUA e, em alguns casos, tratamento com soros convalescentes e a droga experimental ZMapp.
Essa história é bem diferente da de outras vítimas do ebola.
Martin Salia era o diretor médico do hospital Kissy United Methodist, em Serra Leoa e seu único médico em tempo integral. Fazendo parte do extremamente pequeno grupo de profissionais médicos nesse país – apenas 136 para uma população de 6 milhões de pessoas – Salia era uma rara espécie de médico capaz de tratar qualquer coisa, desde machucados ortopédicos até infarto do miocárdio.
Salia, que era profundamente religioso, acreditava que sua missão era ajudar as pessoas de Serra Leoa, onde o ebola continua a proliferar. Apesar de não estar trabalhando em um centro de tratamento ao ebola, Salia pode muito ter sido exposto à doença através de cirurgias em pacientes infectados. Quando Salia ficou doente, no início de novembro, seu teste de ebola deu negativo. Três dias depois, outro teste teve como resultado positivo. Mas ao contrário dos outros norte-americanos Writebol, Branly, Spencer, Sacra e Mupko – todos brancos, Salia não foi prontamente transferido para os EUA.
Ele começou a receber soro convalescente em Serra Leoa e levou cinco dias até que fosse enviado para um centro de isolamento para o tratamento do ebola aos EUA – com uma demora de sete dias a mais de seus colegas brancos. Parece claro que os atrasos nos diagnósticos e no tratamento de Salia, resultou em uma deterioração de sua saúde além do ponto de recuperação. Quando ele chegou nos EUA, em 15 de novembro, ele já não poderia ser mais salvo.
Mas um caso de ebola ainda pior envolveu um médico africano, a quem o tratamento foi deliberadamente atrasado. Sheik Umar Khan, um especialista em febre hemorrágica de Serra Leoa, foi diagnosticado com ebola em julho e então admitido em um centro de tratamento na cidade de Kailahun. A equipe médica dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) e da Organização Mundial de Saúde, que cuidou de Khan afirmaram “terem discutido por toda a noite” se administrava ou não o ZMapp. No final, sem discutir com Khan, eles decidiram que não. “O que eles realmente não queriam era matar o Dr. Khan tentando curá-lo”, disse Armand Sprecher, um especialista em saúde pública da MSF.
Mas certamente, a questão que deveria ser feita é: e se eles tivessem curado Khan? Sprecher, que esteve envolvido na busca de remédios para os MSF, ofereceu posteriormente uma das mais absurdas desculpas para um médico: de que o nível de contaminação de Khan era tão alto que o remédio “provavelmente não funcionaria”.
Então, qual é a resposta certa: a equipe achava que o ZMapp não faria nada por Khan ou que iria mata-lo? Pois não podem ser as duas.
Khan morreu alguns dias depois e o mesmo ZMapp que lhe foi negado, foi então enviado para a Libéria e aplicada em Writebol e Brantly, que se recuperaram admiravelmente (apesar de não ser possível afirmar o quanto o ZMapp contribui para suas sobrevivências). Além disso, oficiais espanhóis confirmaram que eles também obtiveram um suprimento de ZMapp para um terceiro paciente – um padre espanhol de 75 anos que morreu após ser evacuado da Libéria para Madri.
Na história, agora infame, do liberiano Thomas Erick Duncan – que morreu em um hospital do Texas depois de contrair ebola na Libéria – o sobrinho de Duncan, Josephus Weeks, levantou a possibilidade de que a questão racial pesou na decisão de enviar um homem doente para casa. Questões éticas similares surgiram também a respeito de que o tratamento das vítimas de ebola está sendo estratificado no critério de origem nacional, tornando “algumas pessoas mais iguais do que as outras”.
Os médicos que cuidaram desses pacientes negariam que qualquer decisão foi tomada, conscientemente, usando critério racial nos tratamentos. Isso, todavia, é exatamente o problema. A questão racial entre médicos é, na maioria das vezes, inconsciente, o que significa que precisamos considerar cuidadosamente se nossas decisões médicas refletem “dois pesos, duas medidas” no tratamento de nossos pacientes – infectados por ebola ou não.

Dormindo com o inimigo



http://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2014/11/1555445-respostas-sem-berros.shtml


Folha.com, 30/11/2014


Respostas sem berros



Por Janio de Freitas



As melhores perguntas do momento só podem ter, na hipótese mais otimista, respostas que se limitem a tendências, ainda assim, vagas e fugídias. O que não falta, em comentaristas e no noticiário, são respostas com a pretensão de conhecimento ou de previsões bem refletidas. Especulações e chutes, nada mais. A reviravolta dada por Dilma Rousseff foi tão inesperada e tão extremada que nem a mínima informação segura está disponível na praça. Ou melhor, como convém dizer agora, no mercado. 

A pergunta mais repetida: Joaquim Levy terá autonomia ou vai se chocar com as imposições agressivas de Dilma?

Certa vez, ouvi de Mario Henrique Simonsen que suas intenções, quando ministro da Fazenda, com frequência encontravam a divergência do "presidente" Geisel, dado a transformar conversa em discussão. Aos berros. Ia assim a coisa quando, certo dia, Simonsen levantou-se de repente e tomou o rumo da porta. Geisel não entendeu:

"O que é isso? Onde é que você vai?"
"Vou embora. Não posso conversar com o senhor aos berros."
E Geisel, ainda aos berros: "Pois então berra também. Senta aí e berra!" 

Em sua passagem pelo Tesouro, Joaquim Levy esteve sempre predisposto a opor-se a gastos desejados por Lula como política social. Aumento real do salário mínimo, por exemplo. Lula é dado a má-criação, mas Levy, ao que consta, defendeu suas posições com todo o comedimento. Era um novato. Hoje tem credenciais, e está elevado a salvador do universo.

Lula não era de dizer "eu quero assim", "quem preside sou eu", expressões que nos últimos anos, diz-se, não foram raras no Planalto. Perguntado, na apresentação preparada para não ter perguntas, Joaquim Levy fez uma afirmação enviesada de que, sim, terá autonomia. Era a resposta obrigatória.
Outra das perguntas: o "ajuste" de Levy não se fará sem mudar os rumos sociais do governo, e como o PT agirá diante disso?
 
O PT foi um partido de ideia. Resta pouco daquele partido e quase nada da ideia. O governo Lula igualou a conduta partidária dos petistas à dos demais partidos grandes. No governo Dilma, o PT ficou imperceptível, murchou mesmo. O partido do governo foi o PMDB, que se impôs como tal. Não para servir. Para se servir. 

São numerosos os focos de indignação com Dilma/Levy. Mas, para o caso de inconformar-se, o PT precisaria refazer sua capacidade de se mobilizar, o que não conseguiu nem para as eleições estadual e presidencial no que era o centro gerador de sua vitalidade, São Paulo. Sem reativar-se, a expressão partidária fica com os parlamentares, que, também reduzidos a políticos convencionais, tendem a jogar por conveniências que ainda não estão claras, entre a acomodação com algum proveito e o medo de desagradar demais o respectivo eleitorado. Mas há também a percepção, embora muito minoritária, de que o partido esboroa e precisa despertar. A tendência predominante, nesse conjunto de hipóteses, não se mostrou ainda.

Mais uma boa pergunta, com elaboração acrescida: os derrotados das três últimas eleições querem retomar o Poder, e a política de Joaquim Levy vai capitalizá-los; e Dilma e o PT, poderão mesmo repetir o primeiro mandato de Lula, cedendo no começo para fazer a festa nos dois anos finais?

O governo Lula foi cercado por conjuntura internacional bastante positiva, estando o seu mérito em aproveitá-la (com Guido Mantega). Hoje, até a fortíssima Alemanha cresce o mesmo 0,1% que o Brasil, com a diferença apenas de que a imprensa de lá não faz disso um escândalo com fins políticos. A recessão abala o Japão, a China está com seu crescimento diminuído. O futuro próximo é incerto.

Além disso, a oposição é comodista e está sem liderança de fato. E o PT acredita que, com ou sem presente de Joaquim Levy para os anos finais de Dilma, Lulalá decide 2018. Mas aí já é a religião lulista, e aprendi que religião não se discute.





http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Discurso-de-Joaquim-Levy-amontoa-velhas-ideias/4/32318




Carta Maior, 28/11/2014


Discurso de Joaquim Levy amontoa velhas ideias



Por Breno Altman

A mídia tradicional dormiu e amanheceu, após a apresentação oficial da nova equipe econômica, em saliente regozijo.

A formalização de que o economista Joaquim Levy será o novo ministro da Fazenda foi recebida como se tivesse sido instituído um regime parlamentarista.


A presidente Dilma Rousseff, reeleita chefe de Estado, estaria obrigada a manter suas mãos esquerdistas fora dos assuntos econômicos.

A partir de agora, se o PT quiser paz e o retorno aos tempos de prosperidade, quem manda é o homem da gravata azul.

Ladeado por Alexandre Tombini e Nelson Barbosa, que estarão respectivamente encarregados de comandar o Banco Central e a pasta do Planejamento, Joaquim Levy deu seu recado em coletiva de imprensa.

Foi respeitoso com o atual titular da Fazenda, Guido Mantega, mas não dirigiu uma só palavra de agradecimento à presidente da República por tê-lo nomeado a tão importante cargo.

Muito menos fez os tradicionais votos de disciplina, próprios ao presidencialismo, através dos quais um alto funcionário assume obediência devida ao programa de governo escolhido pela soberania popular e ao supremo mandatário que o representa.

O ex-diretor do Bradesco não anunciou medidas concretas. A prudência exige que se aguarde este momento antes de qualquer conclusão mais profunda sobre o rumo que pretende imprimir.

Mas seu discurso pré-posse, lido perante os jornalistas, foi cheio de conteúdo.

O tema fundamental foi geração de superávit primário
. Sob tal princípio reitor, ainda que gradualmente dominante, a pedra de toque da gestão econômica passaria a ser o enxugamento de despesas.

Aluno aplicado da escola monetarista, Levy retirou da gaveta, cheirando à naftalina, o velho roteiro da economia liberal.

A questão primordial está na captação dos fluxos de investimento.

Para esse propósito, o governo precisa oferecer atrativos irrecusáveis (taxa elevada de juros, desregulamentação, concessões e privatizações, baixos custos comparativos) e segurança fazendária, demarcada pela produção progressiva de caixa.

O mercado faria o resto.

O capital, seduzido por vantagens e garantias, traria embutida a perspectiva de aceleração do crescimento e até de melhorias sociais.

Os povos estão cansados de ver como termina este filme, com a riqueza social tungada pelos fundos financeiros privados, exacerbando desigualdades e concentrando a renda, colocando de joelhos Estados estropiados e nações empobrecidas.

O Brasil foi escapando deste cenário nos últimos doze anos, forjando um novo modelo de desenvolvimento, ainda instável e  precário, alicerçado na ampliação do mercado interno de massas e na inclusão social.

As principais ferramentas para este processo – por exemplo, os programas sociais, a expansão das obras públicas e o aumento do salário mínimo – foram construídas fundamentalmente pelo reordenamento e a majoração dos gastos governamentais.

O ritmo de implementação desde modelo avançou quando a administração federal teve empenho, condições econômicas e força política para reduzir a renda financeira do capital, baixando a taxa real de juros, e se apropriar desta poupança para fortalecer políticas distributivistas.

A aposta desta via de desenvolvimento, adotada com mais vigor a partir do segundo mandato de Lula, era que a pujança do mercado interno, animado pela ação do Estado, impulsionava o crescimento e aumentava as receitas tributárias.

Além de recuperar a capacidade de investimento estatal, criava-se ambiente favorável também aos investimentos privados produtivos, estimulados pela mescla entre incorporação de novos consumidores e modernização da infraestrutura.

A crise econômica internacional afetou esta construção, reduzindo mercados e investimentos.

A expansão da capacidade popular de consumo, em ritmo superior à criação de oferta, desacelerada pela carência relativa de investimentos, pressionou a inflação.

A resposta do governo, acossado pelos oráculos do mercado, foi o aumento paulatino dos juros para conter a demanda. De março de 2013 a outubro de 2014, a Selic pulou de 7,25% para 11,25% ao ano.

Cresceu a renda financeira das vinte mil famílias que controlam 70% dos títulos da dívida interna. Mas deterioraram-se as contas públicas: quatro pontos a mais de juros significam despesa anual extra ao redor de R$ 120 bilhões.

O Tesouro também se complicou por uma série de desonerações favoráveis às empresas, que as ajudaram a recompor sua margem de lucro, mas sem maiores resultados sobre a taxa de investimento e crescimento.

Aliás, com juros reais de 5% ao ano, descontada a inflação, em um mundo no qual a remuneração do dinheiro está próxima de zero, fica difícil convencer o capital a sair dos bancos e fluir para o risco da produção.

Estabeleceu-se, assim, o consenso sobre a necessidade de um ajuste fiscal, ao mesmo tempo em que fomentou o conflito acerca de como fazê-lo.

Na lógica do projeto social-desenvolvimentista, o impasse deveria ser resolvido pelo primado do crescimento da economia.

O aprofundamento desse modelo dependeria de instrumentos que desonerassem o Estado e os grupos privados de seus custos financeiros, baixando juros, recompondo capacidade e apetite para investimentos. Também exigiria, a médio prazo, alívio tributário dos assalariados e aumento da contribuição prestada pelos extratos mais ricos.

A intervenção de Joaquim Levy, porém, trouxe velhas ideias de volta ao comando.

A retração dos gastos públicos, mantidos os juros altos, em uma situação mundial de debilidade comercial, equivale a uma estratégia que mantém a receita usurária dos mais ricos às custas da ocupação e do provento dos mais pobres.

Não é à toa que as palavras desenvolvimento, emprego e salário sequer foram citadas em seu discurso.

Tampouco se referenciou na inclusão social e na distribuição de renda como mecanismos fundamentais da economia, propulsores do ciclo comandado pelo governo do qual passará a ser empregado.

Ainda por cima, deu-se ao direito de provocar o petismo, quando tratou de incluir Fernando Henrique Cardoso no mesmo período de progresso que Lula e Dilma, ao falar da “consolidação dos avanços sociais, econômicos e institucionais realizados nos últimos vinte anos”.

A seu favor, poderá ser dito que se comprometeu com uma espécie de arrocho suave, por estabelecer uma meta menor que a de seu futuro antecessor para o superávit primário de 2015.

Como a Constituição ainda está vigente, o ministro da Fazenda presta contas à presidente e pode ser colocado na rua com uma canetada.

Que não se tenha ilusões, contudo. No afã de romper o cerco da direita e apaziguar as relações com o mercado, o governo parece ter convidado o inimigo para dormir dentro de casa.

(*) Publicado originalmente no Opera Mundi




http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/A-peca-decisiva-do-quebra-cabeca-brasileiro/32311




Carta Maior, 27/11/2014


A peça decisiva do quebra-cabeça brasileiro


Por Saul Leblon




O quebra-cabeça brasileiro inclui uma peça-chave cuja movimento no tabuleiro pode mudar o desfecho do jogo.

O nome dessa peça é repactuação política do desenvolvimento.

Seus atores são os movimentos sociais organizados, as centrais sindicais, as entidades empresariais - sobretudo as da indústria, e o governo.

Articulações em marcha, ainda restritas a sondagens entre centrais e autoridades econômicas, para evitar um ciclo de demissões no setor automobilístico, sinalizam uma avenida a percorrer.

Se é possível negociar metas, concessões, salvaguardas para barrar o desemprego, por que não o seria também, em um fórum ampliado, para reordenar  a velocidade, a destinação, as condicionalidades e garantias  de um novo ciclo de desenvolvimento?

Estamos falando de uma lógica alternativa a dos centuriões do mercado que se avocam o apanágio ‘técnico’ para agendar quem pagará a conta do ajuste necessário à retomada do crescimento.

Insista-se: macroeconomia não tem ideologia.

Responsabilidade fiscal, controle da inflação e câmbio competitivo não distinguem a coloração de um projeto histórico.

São obrigações de qualquer governante; interessam a toda a sociedade.

Mas desenvolvimento é outra coisa.

Desenvolvimento é transformação
.

É romper estruturas anacrônicas e construir outras novas, ao mesmo tempo e com igual intensidade. Quase como atravessar um rio de dupla correnteza, uma puxando para cada lado.

Quem acha que pode haver ‘solução técnica’ para essa travessia, açoitada por ventos e tempestades em litígio, acredita em ‘mãos invisíveis’ a costurar a sociedade humana.

A mão dos mercados autorreguláveis, por exemplo, cujos porta-vozes alardeiam as virtudes do desenvolvimento a salvo de um protagonismo social que o conduza.

Mais que nunca o Brasil necessita de um protagonista social capaz de pavimentar o passo seguinte do seu desenvolvimento.

Não é apenas a mudança no calendário a registrar um novo governo Dilma.

É mais que isso.

Vive-se, grosso modo, um interregno entre dois ciclos.

Um, que parece ter se completado com a consolidação de políticas sociais e salariais, que remodelaram a dinâmica da cidadania e do consumo em largas fronteiras da América Latina.

Em graus distintos, esse estirão foi favorecido pelo afrouxamento do gargalo externo, marcado por uma década de forte alta nos preços  das commodities.

Atenção porém: não há automatismos na história.

O Brasil já cresceu antes, mais até do que no período recente, sem distribuir renda; ao contrário, concentrando-a à base de arrocho salarial e repressão política
A história latino-americana registra outros ciclos de valorização de produtos primários sem uma contrapartida social equivalente a atual.

O que se fez no Brasil e na AL nos últimos anos, portanto, foi uma ação política deliberada.

Subtraiu-se espaço da ‘mão invisível’ para  destinar um pedaço da riqueza corrente ao resgate mínimo da exclusão secular, aprofundada pela hegemonia livre mercadista dos anos 90.

O fôlego dessa indução enfrenta agora o ar rarefeito da estagnação planetária escavada pela desordem neoliberal. Um descompasso entre aspirações histórias e fluxos de receitas está em curso.

O Brasil depende de investimentos pesados que liguem o impulso original do consumo a uma inadiável adequação da oferta e da logística à escala ampliada da demanda e das expectativas sociais.

É imperativo regenerar a musculatura de sua base industrial.

Não por qualquer fetiche ‘desenvolvimentista’; reside aí a principal usina de irradiação de produtividade de que a economia necessita para lastrear novos saltos em direitos, cidadania, empregos qualidade e soberania externa.

O desafio histórico consiste em erguer os pilares dessa transição num ambiente internacional que deixou de favorecê-lo.

Sem a participação ativa da sociedade nessa travessia, a lógica neoliberal ocupará o vácuo para empurrar sua ‘agenda técnica’ goela abaixo da nação.

Em que direção?

A do afável México, talvez.

Já tivemos paradigmas em melhor situação: cerca de 2/3 dos 2.500 municípios mexicanos estão dominados por gangues sanguinárias do circuito drogas/crimes.

O México foi o único país da América Latina, ao lado da pequena Honduras, que registrou aumento da pobreza e da miséria na década passada.

É verdade: o ‘ajuste técnico’ de sua economia conseguiu a elevar a produtividade mexicana num ritmo duas vezes superior à correção dos salários, a partir de 2005.

O país é hoje o segundo maior fornecedor de carros para os EUA (à frente do Japão, abaixo do Canadá).

É o maior exportador de TVs de tela plana do mundo, informa a agencia Bloomberg nesta 5ª feira (27/11).


A que preço?

Ao preço de alguns ‘colaterais’, diz um estudo do insuspeito Bank of América citado pela mesma Bloomberg.

A saber:

a) o salário mínimo mexicano perdeu 70% do poder de compra real nas últimas décadas (o do Brasil cresceu 70% acima da inflação desde 2003);

b) as exportações mexicanas cresceram uma média de 7% por ano desde 2001; mas as vendas no mercado interno aumentaram  apenas 2% em média no período ( contra 5%  da média brasileira);

c) O ganho médio do assalariado mexicano cresceu 0,6% em termos reais na década terminada em 2012 (no Brasil foi duas vezes maior, diz a OIT).


Esse é o farol do ajuste ‘técnico’ que muitos apregoam para a economia brasileira no segundo governo Dilma.

Se hesitar ou se acanhar, se renunciar, enfim, ao papel indutor do desenvolvimento, o movimento social brasileiro deixará aberto o espaço para ser conduzido por essa coleira, ao invés de conduzir o timão da sociedade.

Dilma é a fiadora inconteste das urnas. Mas o que as urnas disseram em 26 de outubro não pode silenciar.

A repactuação política do desenvolvimento não se confunde com a ingerência burocrática no dia a dia da gestão do Estado.

Sua agenda deriva de princípios que distinguem a construção de uma sociedade convergente, da receita conservadora através da qual a riqueza talvez cresça até mais depressa. Mas  em estruturas circulares de desigualdade e marginalização crescentes.

Três  diretrizes  são indissociáveis da luta por uma repactuação do desenvolvimento que preserve a construção de uma democracia social, ainda que tardia, no Brasil:

a) buscar o pleno emprego e rechaçar  qualquer ‘ajuste técnico’ que se proponha a ‘pavimentar’ um novo ciclo  com base em demissões e descarte de trabalhadores;

b) buscar políticas de renda (reforma tributária), de salários (ganho real) e de serviços públicos –educação de qualidade, mas também saúde e mobilidade- que fixem metas e prazos para a redução da desigualdade brutal vigente no país; não se trata apenas de definir um piso à pobreza, mas de galgar novos degraus para longe dela;

c) maior democracia participativa para ampliar os canais de decisão econômica e de expressão política dos interesses majoritários da sociedade.

Qualquer repactuação histórica implica concessões e modulações de metas e prazos, desde que não violentem as  balizas do objetivo mais geral.

O objetivo estratégico do movimento social brasileiro é construir uma resposta política para a crise, a contrapêlo da receita ortodoxa.

A desordem financeira mundial não cederá tão cedo, nem tão facilmente.

A consciência dessa contingencia histórica é um dado fundamental para a ação política nos dias que correm.

Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de seu arcabouço programático pelos valores e interditos neoliberais, alargaram os vertedouros para o espraiamento de uma dominância financeira, cuja presença tornou-se ubíqua em todas as esferas da economia e do imaginário social.

O arcabouço institucional que cedeu a soberania das urnas ao suposto poder autorregulador dos mercados perdeu a capacidade de gerar antídotos às degenerações intrínsecas a essa renúncia.

A democracia terá que reinventar-se para que essa possibilidade se recoloque no horizonte da ação política do nosso tempo.

A luta pela repactuação do desenvolvimento brasileiro é um pequeno passo nessa direção.

Mas pode definir uma grande mudança de rumo na construção do Brasil.

sábado, 29 de novembro de 2014

A crescente repressão militarizada da policia nos EUA



http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Movimentos-Sociais/Ontem-Ohio-hoje-Missouri-/2/32321



Carta Maior, 29/11/2014
 
 

Ontem Ohio, hoje Missouri


 
Tomaz Paoliello*



Em junho de 1970 foi lançada nos Estados Unidos a música Ohio, de Crosby, Stills, Nash & Young. O grupo entrou em estúdio para gravar a música de Neil Young escrita menos de um mês antes. A pressa era justificada, a canção havia sido concebida como reação ao horror do assassinato de quatro jovens estudantes da Universidade de Kent pelas forças da Guarda Nacional de Ohio, no dia 4 de maio. As cenas de soldados armados com baionetas marchando contra estudantes desarmados, e as imagens dos corpos mortos estendidos no campus se tornaram inspiração para o compositor e símbolos dos movimentos contra a Guerra do Vietnã.




Ao longo dos últimos meses, uma série de protestos se espalharam pelos Estados Unidos após o assassinato de um jovem negro, Michael Brown, por Darren Wilson, um policial branco. O assassinato é parte de um fenômeno maior da crescente repressão policial violenta voltada a pobres e minorias. De acordo com estatísticas recentes, na cidade de Nova York, onde a população de negros e hispânicos é de aproximadamente 50%, os casos de mortes por violência policial são de aproximadamente 90% para os mesmos grupos. O incidente de Ferguson teve um papel catalisador para o crescimento das manifestações e tornou-se símbolo da continuada violência contra negros no país. O julgamento que inocentou o policial, no início dessa semana, reacendeu a onda de protestos que se iniciaram em agosto. As imagens que tomaram os noticiários em todo o mundo são assustadoras: ainda com a lembrança do corpo de Brown estendido na rua, vemos manifestantes defrontados com soldados armados para combate em zonas de guerra. Young nunca pareceu tão atual.

A letra da música do grupo Crosby, Stills, Nash & Young convoca não apenas universitários para as manifestações contra a Guerra no Vietnã. Os músicos acreditavam que seu sucesso poderia ajudar a amplificar a voz dos estudantes  que pediam o final da guerra, movimento que crescia com os que se juntaram para gritar também por liberdade de manifestação e fim da repressão policial armada. De fato, a repercussão do massacre de Kent levou a uma greve de estudantes por todo o país, e enormes protestos tomaram as ruas de grandes cidades como Nova York e Washington. A canção foi banida das grandes rádios norte-americanas por sua menção explícita ao presidente Richard Nixon, mas ganhou grande repercussão nas pequenas rádios universitárias. O chamado a lutar por todos e não apenas por si mesmo foi ouvido, e isso precisa ser feito novamente.



 
A dupla face da Guarda Nacional

A Guarda Nacional é um corpo particular dentro do aparelho repressivo americano. Organizadas em cada um dos 50 estados, elas servem dupla função – são utilizadas como forças de reserva do exército americano, sob o Departamento de Defesa, e são utilizadas como contingente adicional e emergencial para funções de segurança pública. Apesar das polícias norte-americanas serem, em grande medida, responsabilidade das municipalidades e condados, em eventos de maior magnitude a Guarda Nacional é chamada para apoio às forças locais.

As Guardas são formadas principalmente por voluntários, geralmente trabalhadores em outros empregos, e que servem apenas durante alguns períodos do ano. Apesar de serem utilizadas como forças de segurança pública, o treinamento e organização das guardas é majoritariamente militar. Seus uniformes, equipamento, táticas e procedimento são militarizados. Notícias recentes dão conta de que os homens da Guarda Nacional foram e são treinados pelos militares ou por empresas militares de segurança privada, e atuam nas guerras ao lado das forças regulares.

Durante a guerra do Vietnã a repressão proveniente das Guardas Nacionais aparecia com uma face adicional de controvérsia – no período, alistar-se na Guarda foi uma maneira de driblar o alistamento em unidades que se envolveriam em missões de combate. A maioria dos membros da Guarda Nacional nem sairia do território americano, e os que de fato foram enviados ao Vietnã ou ao Camboja raramente estiveram no front. As chamadas “unidades champanhe” foram formadas por filhos das famílias ricas e pessoas com conexões no governo.  A Guarda que havia se tornado símbolo da desigualdade de classe na sociedade americana tornou-se também a linha de frente da repressão aos movimentos sociais anti-guerra nos Estados Unidos. 

Se a Guarda Nacional teve papel menor no palco da Guerra do Vietnã, tornou-se uma das principais fornecedoras de homens nos conflitos recentes no Afeganistão e no Iraque. Com o fim da conscrição, em 1973, uma das vitórias dos manifestantes anti-Vietnã, os Estados Unidos passaram a depender exclusivamente de voluntários e contratados privados. Dessa forma, a Guarda Nacional se tornou um dos maiores contingentes de soldados dos EUA na Guerra ao Terror, compondo quase metade do total de forças combatentes no Iraque e no Afeganistão. Esses homens, treinados para operações de contraterrorismo e contra-insurgência, são os mesmos que operam como “defensores da ordem” em protestos nos Estados Unidos. A ambiguidade de sua natureza se revela como um fenômeno mais generalizado de adoção de procedimentos militares para as forças de segurança pública. O massacre de Kent nos mostra que o fenômeno não é novo, mas a repressão às manifestações em Ferguson chama atenção ao importante crescimento desse tipo de solução para a segurança pública.



 Circunstâncias diferentes, remédios iguais

O renovado vigor das manifestações em Ferguson, Missouri, como consequência do julgamento do policial responsável pela morte de Michael Brown, levou o atual governador do estado de Missouri, Jay Nixon, a convocar a Guarda Nacional para auxiliar o controle dos protestos. Essa velha conhecida dos movimentos sociais norte-americanos veio juntar-se a um contingente policial já amplamente militarizado, treinado por de empresas militares de segurança privada, e com equipamento excedente comprado das forças armadas. Em agosto, uma série de reportagens demonstrou espanto com transformação pela qual havia passado a polícia, cada vez mais parecida com tropas militares. Com a convocação da Guarda Nacional, a repressão policial militarizada se amplia em escala e em contingente.

Numa sinistra coincidência histórica, um novo Nixon repete textualmente a denúncia de Neil Young. As imagens que chegam de Ferguson são dos “soldados de chumbo de Nixon” marchando contra manifestantes desarmados. As baionetas das imagens dos protestos em Kent deram lugar a moderno equipamento de combate, incluindo rifles e carros blindados, que lembram mais os cenários dos conflitos no Afeganistão e no Iraque. Ademais, o amplo processo de crescimento da repressão social por forças de segurança pública se dá dentro de um perigoso processo de despolitização, no qual pesam a eficiência e a capacidade de controle, e pouco importam direitos e liberdades. As palavras do governador sobre a necessidade de proteger “as pessoas e a propriedade” são de um cinismo avassalador ao constatarmos que as pessoas que devem ser protegidas evidentemente não são os manifestantes. É importante lembrar que das quatro mortes em Kent pelas mãos da Guarda Nacional, duas foram de jovens que não faziam parte dos protestos.

A emoção do choro de David Crosby ao final da gravação de Ohio parece não ter se diluído com o tempo. Seu grito de “quantos mais?” parece ainda ecoar em cada episódio de violência policial. Os processos de militarização das polícias e da gestão urbana nos lembrarão por muito tempo dos tristes versos de Neil Young. Seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, a luta é para que as vítimas, principalmente negros e pobres, não se tornem invisíveis. Nas palavras do próprio Young “como é que você pode fugir sabendo disso”?


*Professor de Relações Internacionais da PUC-SP

A Suíça vai descobrir que a justiça brasileira tem lado




http://www.brasil247.com/pt/247/sp247/162122/Gilmar-barra-a%C3%A7%C3%A3o-contra-engavetador-tucano.htm





Brasil 247, 29 de Novembro de 2014


 

Gilmar barra ação contra engavetador tucano





247 - O ministro do Supremo Tribunal Federal  (STF) Gilmar Mendes suspendeu processo disciplinar contra o procurador da República Rodrigo de Grandis que corria no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O processo havia sido instaurado por decisão do corregedor nacional do Ministério Público, Alessandro Tramujas Assad. Gilmar entendeu que houve cerceamento de defesa e que o processo foi instaurado de forma monocrática pelo conselheiro. O processo fica suspenso até julgamento final de mandado de segurança feito por De Grandis.
O processo disciplinar foi aberto para apurar indícios de que o procurador descumprira dever legal no exercício de sua função ao deixar parado, por quase três anos, um pedido de investigação sobre o caso Alstom – a suspeita de distribuição de propina da multinacional francesa para servidores e políticos do PSDB em São Paulo, conhecida como “trensalão tucano”.
De Grandis recebeu pedidos de cooperação de autoridades suíças visando ao levantamento de provas naquele país envolvendo fraudes no fornecimento de equipamentos pela Alstom, mas não deu encaminhamento às solicitações.
O assunto veio à tona após reportagem da Folha de S. Paulo, em 26 de outubro de 2013, com o título "Sem apoio do Brasil, Suíça arquiva parte do caso Alstom". A notícia motivou o início da apuração pela corregedoria do Ministério Público Federal em São Paulo. O orgão decidiu, por unanimidade, pelo arquivamento da sindicância.




​Pragmatismo Político,  26/11/2014


A Suíça está perto de descobrir que a justiça brasileira tem lado


(Imagem: Pragmatismo Político)
 

As autoridades financeiras e judiciais da Suíça estão prestes a descobrir que o Ministério Público brasileiro (ou, pelo menos, parte dele) tem lado.
Um ano atrás, cansados de esperar pela colaboração do Ministério Público, os suíços decidiram arquivar parte do caso Alstom, que apurava um esquema de propinas pagas pela multinacional francesa a funcionários públicos e políticos do PSDB.
Era um caso bastante semelhante ao hoje investigado na Operação Lava Jato. Havia lobistas, como João Amaro Pinto Ramos, servidores públicos, como João Roberto Zaniboni, e arrecadadores de campanha, como o grão-tucano Andrea Matarazzo. A Alstom era acusada de comandar um cartel na venda de equipamentos ferroviários e do setor elétrico.
A investigação sobre o chamado “trensalão tucano“, no entanto, parou no tempo porque o procurador Rodrigo de Grandis engavetou, durante dois anos, o pedido de cooperação formulado pelas autoridades suíças, atribuindo a demora a uma “falha administrativa”.

Operação Apocalipse
Um ano depois, a situação se inverte. Agora, são dois procuradores brasileiros que irão à Suíça, mais precisamente a Berna, para desvendar a origem dos depósitos nas contas de Paulo Roberto Costa.
Como o próprio ex-diretor da Petrobras já declarou ter sido pago pela Odebrecht e se dispôs a devolver os recursos, o caso será relativamente simples.
No entanto, chama a atenção a diferença de abordagem do Ministério Público nos dois casos. Quando o alvo era o PSDB, a Suíça cobrou providências do Brasil, que engavetou o caso. Agora, quando o PT está na mira, o MP cumpre seu papel, faz a coisa certa e pede cooperação internacional.


Folha.com, 31/10/2014
 

Órgão do Ministério Público abre processo contra procurador



FREDERICO VASCONCELOS
FLÁVIO FERREIRA
DE SÃO PAULO



O CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) abriu processo disciplinar contra o procurador da República Rodrigo de Grandis por entender que há indícios de que ele descumpriu dever legal de sua função ao deixar parado por quase três anos um pedido de investigação da Suíça relativo ao caso Alstom.
O despacho do CNMP (órgão de controle externo do Ministério Público) aponta que ao final do caso Grandis pode receber a pena de censura, a segunda mais branda na lista de punições para procuradores e promotores.



Editoria de Arte/Folhapress


​A abertura do processo administrativo disciplinar contra Grandis foi determinada pelo corregedor do CNMP Alessandro Tramujas Assad na última sexta-feira (24). A medida encerra a sindicância iniciada em novembro do ano passado após a Folha revelar o engavetamento do pedido da Suíça. Agora Grandis terá a oportunidade de apresentar sua defesa.
O despacho do corregedor do CNMP indica "violação, em tese", dos deveres de "cumprir os prazos processuais", "desempenhar com zelo e probidade as suas funções" e "adotar as providências cabíveis em face das irregularidades de que tiver conhecimento ou que ocorrerem nos serviços a seu cargo".
A sindicância do CNMP teve desfecho diferente da apuração interna do Ministério Público Federal, que arquivou o caso em abril por entender que a conduta de Grandis não prejudicou as investigações e não houve falta funcional do procurador.
Em ordem de gravidade, as penas aplicáveis aos promotores e procuradores brasileiros são de advertência, censura, suspensão, demissão e cassação de aposentadoria.

FALHA ADMINISTRATIVA
Em outubro de 2013, a Folha informou que procuradores da Suíça se cansaram de esperar pela cooperação de Grandis por quase três anos e arquivaram as investigações sobre acusados de distribuir propina da multinacional francesa Alstom para servidores e políticos do PSDB.
O requerimento feito pelas autoridades suíças em fevereiro de 2011 foi para que o Ministério Público brasileiro interrogasse quatro suspeitos do caso, analisasse sua movimentação financeira no país e fizesse buscas na casa de João Roberto Zaniboni, que foi diretor da estatal CPTM entre 1999 e 2003, nos governos do PSDB de Mário Covas e Geraldo Alckmin.
Após a indagação da reportagem no ano passado, a explicação de Grandis foi a de que o gabinete dele cometeu uma "falha administrativa" que levou o pedido da Suíça a ser arquivado numa pasta errada e assim ficar parado.
Após a divulgação do fato, o CNMP e o Ministério Público Federal iniciaram apurações e a cooperação jurídica com a Suíça foi retomada.

DEFESA
O procurador Rodrigo de Grandis informou que ainda não foi comunicado sobre a instauração do processo.
"Não obstante, tenho convicção que prevalecerá a decisão da Corregedoria do Ministério Público Federal no sentido de que não cometi qualquer falta funcional ou mesmo prejuízo para as investigações do caso Alstom", afirmou o procurador.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O procurador exibicionista que expôs o MPF ao ridículo



Jornal GGN, 28/11/14


O procurador exibicionista que expôs o MPF ao ridículo


 


Por Luis Nassif





​Não há nada que comprometa o esforço geral de uma corporação, do que o exibicionismo de um de seus membros – especialmente quando dispõe de prerrogativas de poder de Estado.

É o caso do Procurador da República em Goiás Ailton Benedito de Souza.

Ontem expôs o MPF ao ridículo, ao agir contra decisão do governo venezuelano de convocar 26 jovens do Brasil para compor uma tal Brigadas Populares de Comunicação.

Imediatamente o procurador Ailton intimou o Itamaraty, em um prazo de dez dias, a levantar a identidade dos jovens sequestrados e investigar uma possível rede de tráfico humano.

Era uma mera notícia de Internet, mencionando a comunidade Brasil, um bairro popular da cidade venezuelana de Cumaná que, com exceção do nome, não tem a menor relação com o país Brasil.

A barriga repercutiu no mundo todo, sendo ironizada em vários idiomas.

Uma barriga desse tamanho basta. Mas a atitude do Procurador em se basear em qualquer factoide para propor ações já virou compulsão.

Tornou-se membro do Instituto Millenium, valendo-se das prerrogativas do cargo para desmoralizar o Ministério Público.

Em maio passado tentou suspender toda a publicidade da Copa do Mundo (http://migre.me/nabDB) por estar “absurdamente divorciada da realidade”.

Montou um catatau de 50 páginas argumentando que "de fato, os brasileiros ficaram bastante esperançosos e que as obras da Copa, que consumiram bilhões de recursos públicos, proporcionassem um legado auspicioso, a ser usufruído nos anos vindouros pela sociedade, que, afinal paga a conta".. No entanto, "vários empreendimentos projetados para o transporte público e o trânsito foram cancelados ou substituídos por outros de menor impacto, que, primeiro, não serão concluídos a tempo; e, segundo, visam, exclusivamente, mitigar os efeitos da desorganização, da falta de planejamento, da incompetência em executar o que se planejou, relativamente à infraestrutura e aos serviços voltados à realização da Copa, a fim de evitar que o pior".

Consultasse o próprio MPF, esse despreparado saberia do enorme trabalho que juntou praticamente todos os poderes – do Executivo aos estados, da Polícia ao Ministério Público – na organização do evento. Baseou-se em meras notícias não confiáveis da mídia  para sair atirando.

Em novembro de 2011, processou professores por desacato, depois de terem ido ao MPF-GO denunciar supostos desvios de verba do Fundeb (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Básico) pela prefeitura de Goiânia.

Quando foi lançado o programa Mais Médicos, viu mais uma oportunidade de aparecer. Com base em notas de jornal, instaurou um inquérito civil-público para apurar “possíveis ações e omissões das administrações públicas – em todas as esferas – a respeito do programa Mais Médicos” (http://migre.me/nabUf).

Baseava-se exclusivamente em reportagens mal apuradas, sem a preocupação em aprofundar as investigações. Indagado sobre a razão do inquérito, alegou que:

“Primeiro: a notícia de que municípios estariam substituindo profissionais próprios por médicos do “Mais Médicos”. Segundo: a notícia de que profissionais originários de Cuba estariam sofrendo algum tipo de violação aos seus direitos, principalmente o direito de se locomover no território nacional. Terceiro: a situação de abandono do programa por médicos que se inscreveram no programa e ingressaram na atividade”( http://migre.me/nac3x).

Se amanhã um jornal noticiar que há indícios de propina no escavamento das crateras da Lua, não se tenha dúvida e que o bravo procurador atuará firmemente em defesa da moralidade intimando os lunáticos.

O procurador tem um blog, o “Bendito Argumento, onde elabora textos assim:

“Portanto, todos nós, queiramos ou não, participamos ou omitamos, ajamos ou quedamos, ativos ou passivos, independentemente de nossos sonhos e pesadelos, virtudes e vícios, desejos e repulsas, crenças e incredulidades, saberes e ignorâncias, bravura e covardia, riquezas e misérias etc., somos seres políticos. E, como tais, responsáveis perante nós mesmos, as famílias, a sociedade, o mundo no qual vivemos”.
(...) Se eu fosse cruel, torceria pela vitória daqueles que almejam transformar a democracia do Brasil numa cópia dos regimes ditatoriais bolivarianos, para que eles fossem devorados pelo Saturno dos seus sonhos”.

Em seus textos, Ailton denuncia a “propaganda eleitoral subliminar”, “sobretudo a que se utiliza da máquina pública”.

Define a tal propaganda eleitoral subliminar como aquela que “consubstancia mensagem que não ultrapassa o limiar da consciência, que não é suficientemente intenso para penetrar na consciência, mas que, pela repetição ou por outras técnicas, pode atingir o subconsciente, afetando as emoções, desejos, opiniões; subconsciente. Nessa perspectiva, a propaganda política também se serve das técnicas subliminares para chegar à inconsciência dos cidadãos, sobretudo os eleitores, especialmente durante os processos eleitorais. Todavia, não é incomum que tais processos perdurem todo o período que medeia  entre a posse dos eleitos num pleito e o próximo. Noutras palavras, políticos estão sempre em campanha, muitas das vezes sem que o cidadão-eleitor tenha consciência”.

Em um dos artigos, deblaterou contra a afirmação de Dilma Rousseff, de que poderia utilizar as Forças Armadas nas manifestações contra a Copa:

“Por que, em lugar usar que “o Exército pode agir contra manifestações anti-Copa”, não se determinar aos órgãos competentes, responsáveis pela segurança pública, que façam uso da apropriado da Lei de Segurança Nacional para punir os que atentam contra a democracia, o Estado de Direito, os direitos fundamentais dos brasileiros, seja antes, durante ou depois da Copa? Pois que, sendo necessário, que se invoquem as Forças Armadas para defender a sociedade, a democracia, o Estado de Direito, não a #CopaDasCopas” (http://migre.me/nacLy)”.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

As vulvas dolls



Opera Mundi, 27/11/2014




Vulvas de tecido quebram tabus sobre sexualidade feminina no Peru


Por Lucía Martín |
Jot Down | Lima



           Vulvalucion.org
                    A sagrada vulva andina de tecido produzida em Machay, no Peru


Escuta-se o som de uma máquina de costura em uma casa em Manchay, nos arredores de Lima, no Peru. O único momento de glória dos habitantes dessas colinas onde se apinham construções irregulares aconteceu quando lá foi rodado o filme “A teta assustada”, que recebeu o Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2009.

Mas voltemos às máquinas de costura. Dionisio Ramos conta com duas ferramentas básicas para o seu trabalho: a máquina de costura e um celular, com o qual toma nota dos pedidos que chegam, embora seja necessário dizer que as verdadeiras ferramentas deste homem, que no passado foi alfaiate, são suas mãos. Dionisio é o chefe da família de um clã formado por outros dois membros, sua mulher e sua filha. As peças às quais ele se dedica a costurar custaram-lhe muitas chacotas. Ele mesmo recusou-se a fazê-las no início. Dizia: “Eu não quero mais fazer esta porcaria”. E porcaria era a palavra com que ele designava as vulvas que sua família se dedica a costurar.

Não pense que os Ramos têm em Manchay um laboratório clandestino de cirurgia genital. Seu trabalho é costurar, com arte e cores, as chamadas Vulvas Dolls, um tipo de marionete que reproduz o órgão genital feminino. Algumas de cor roxa, outras com tecidos andinos, cor de rosa para as crianças que acabam de menstruar pela primeira vez, de seda e veludo, com uma pequena rosa representando a uretra e um delicado botão fazendo o papel do clitóris.

A história das vulvas de tecido tem início no fim dos anos 80, com a educadora sexual norte-americana Dorrie Lane. Ela produziu a primeira e começou a utilizá-la com seus filhos, um garoto e uma garota. Até então ela tinha utilizado livros e documentários, mas a troca de informações com os filhos foi melhor e as conversas foram mais espontâneas quando usaram a vulva de tecido. Depois, ela começou a usá-la em seus cursos, e a aceitação foi tamanha que seus colegas começaram a pedir-lhe outras.

Lane as confeccionava manualmente, até que as quantidades pedidas já não podiam mais sair somente de suas mãos. Foi quando ela entrou em contato com a população de Manchay, no Peru, em 2005. As mulheres feministas do povoado colocaram em ação as oficinas de produção das vulvas. “Recrutamos as interessadas e criamos as oficinas, financiadas inicialmente com microcréditos de dez mil soles [cerca de oito mil reais]”, comenta Elizabeth Cabrel, uma das feministas que hoje continua levando adiante o projeto através do www.vulvalucion.org.

           Vulvalucion.org
Uma das joias com o formato de vulva também produzidas pela iniciativa Vulvalución


No início, elas confeccionavam apenas vulvas. A partir de 2007, diversificaram a produção para outras peças, como joias de prata que reproduzem a vulva em anéis, brincos e colares. Dessa forma, a visibilidade é ainda maior. “Os artesãos recebem uma quantia justa pelo trabalho e com isso mantêm suas famílias”, comenta Cabrel. Essas famílias conseguiram se manter graças às vulvas, mas, mesmo assim, muitas mulheres do povoado ainda resistem a este trabalho: o sexo é tabu em muitos países da América Latina, e a sexualidade feminina, mais ainda.

“Os Ramos ensinam seus vizinhos a costurar, ensinam-lhes a fazer o recheio da vulva e a costura e podem empregar cerca de cinco mulheres”, diz Cabrel. As vulvas peruanas vão para a Europa, a Austrália e o Japão, entre outros destinos. Psicólogas e sexólogas, que as utilizam em suas consultas, são as principais compradoras.


Dionisio recorta os tecidos, faz os moldes, o overlock e a costura inicial para que o delicado tecido – também produzido no Peru – não desfie. O recheio é feito com napa de silicone, uma fibra muito fina. Leva-se cerca de uma hora e meia para cada peça ficar pronta.

O projeto encontrou espaço em outras latitudes, como na Austrália, onde Laura Doe Harris fundou o projeto Yoni, através do qual também comercializa as vulvas que produz. “Há muitas mulheres vulvacionando o mundo, nós aqui no Peru somos apenas um grãozinho de areia”, explica Cabrel.

                   Dorrie Lane
Vulva de tecido produzida pela norte-americana Dorrie Lane, à venda no site Vulva Puppets


O sexo continua sendo visto como algo sujo, ainda mais se é uma mulher que o reivindica. “Quando começamos, das quarenta mulheres que se interessaram pelas oficinas, poucas acabaram de fato costurando a vulva. Muitas a veem como algo vulgar. As pessoas têm vergonha da vulva, apesar de termos nascido dela”, acrescenta. “Existe muito conservadorismo religioso, e no Peru o trabalho de educação sexual não é feito pelo governo, essa informação não chega às escolas e onde a igreja intervém a educação sexual não é nem permitida”, explica Cabrel.

Ela afirma que, na América Central, é ainda pior. “Mas este tema de empoderamento através da vulva, por exemplo, está se desenvolvendo muito bem na Argentina e no Brasil”.

Desde 2009, Liz e outras companheiras promovem oficinas com mulheres sobre saúde sexual, o Musas Perú (www.musasperu.org), por toda a América Latina. Ela também publicou o livro “Eu amo minha vulva”, no qual mulheres de diferentes faixas etárias retratam suas vulvas e contam como viveram a sexualidade ao longo de suas vidas. Alguns textos são de deixar os cabelos em pé: “Passei por muitas intervenções cirúrgicas. Desde uma dessas operações, não pude mais ter relações sexuais com penetração com meu marido. Quis solucionar este problema, mas o médico que me atendeu fez piada quando lhe contei o motivo. ‘Por acaso você ainda tem relações sexuais com o seu marido?’”

Como reconhece Liz, o empoderamento das mulheres leva tempo, não acontece da noite para o dia. Mas não há dúvidas de que o movimento iniciado pela sagrada vulva andina não pode ser detido.


Tradução: Mari-Jô Zilvetti

Matéria original publicada no site da revista espanhola Jot Down, que apresenta reportagens e artigos sobre cultura e comportamento.

Por que em Vana

E viva Dilma Vana Rousseff !


 


Folha.com, 28 de novembro de 2014



Por que votei em Dilma Rousseff



Por Rogério Cezar de Cerqueira Leite




Votar em Aécio seria optar pela prevalência do princípio da desigualdade, da contenção da ascensão social e pela manutenção do "status quo".

Sociedades, tanto as primitivas como as modernas, adotam um de dois possíveis princípios organizacionais, paradoxalmente antagônicos: ou o preceito da igualdade ou o da desigualdade. 

Nas sociedades modernas e em algumas ditas primitivas, o princípio da igualdade prevalece, se não na prática, pelo menos como utopia. Exceção clamorosa é a Índia, onde castas estabelecem desigualdades intransponíveis.

Os dois princípios organizacionais buscam reduzir conflitos entre membros individuais ou grupos no seio da própria sociedade. E ambos podem ser eficientes, embora divirjam decisivamente quanto à compatibilidade com um valor também essencial, tal seja, a justiça social

Enquanto o princípio da desigualdade privilegia a busca da eficiência e da meritocracia, o seu antagônico, o da igualdade, rejeita esses objetivos. Apesar disso, esses dois princípios fundamentalmente irreconciliáveis convivem na sociedade moderna, encontrando em diferentes países ou regiões diferentes pontos de equilíbrio.

A chamada igualdade de oportunidades é um exemplo desse compromisso. A busca de um contrato social aceitável é frequentemente não mais que a construção de uma conciliação entre esses dois princípios, embora Jean-Jacques Rousseau não tenha percebido isso.

Escolher PSDB-Aécio Neves para a Presidência da República seria, consciente ou inconscientemente, uma opção pela prevalência do princípio da desigualdade, pela manutenção da imensa disparidade de renda, pela contenção da ascensão social, enfim, pela manutenção do "status quo". É a história de Aécio Neves, a sua ascendência, a sua cultura e a daqueles que o circundam, a do PSDB. Ninguém foge à própria natureza. 

Não há comentarista ou estudioso da sociedade brasileira, seja de esquerda ou de direita, que não reconheça que o grande mal social brasileiro é a disparidade de renda (uma Bélgica inserida em uma Índia, dizem).

Votei no projeto PT-Dilma Rousseff porque reconheço, como todo cidadão pensante, que essa era a opção capaz de melhor equilibrar os dois princípios antagônicos, reservando espaço adequado para a justiça social. 

O contraste entre as administrações PSDB nacional (Fernando Henrique Cardoso) e de Minas Gerais (Aécio Neves, Antonio Anastasia) e a nacional do PT (Lula-Dilma) é revelador, tanto com relação ao esforço para dirimir diferenças de renda como à criação de oportunidades de ascensão social. 

Enquanto nos governos do PSDB não houve qualquer esforço para reduzir a disparidade de renda nem o nível de pobreza, durante a administração do PT não somente houve um aumento do salário mínimo de 80% em seu valor real como também foram criados e expandidos inúmeros programas sociais. 

O que melhor revela a importância dada pelos governos Lula-Dilma à justiça social, todavia, foi a absoluta prioridade dada à oportunidade de ascensão social que só é legitimamente conquistada por meio da educação e, principalmente, do ensino superior. Pois foi quadruplicado o número de alunos nesse nível durante estes últimos 12 anos

Portanto votei em Dilma porque é degradante a condição nacional de país com uma das mais injustas disparidades de renda de toda a Terra. Porque ela, Dilma, e somente ela me traz a esperança de ser cidadão de um país civilizado.


ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 83, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha

O grande conciliador




http://paulomoreiraleite.com/2014/11/27/625/




27 de novembro de 2014



No país de Lula, o grande conciliador




Por Paulo Moreira Leite




​Os leitores do Brasil 247 tem o direito de festejar um fato raríssimo em nossa vida pública: um debate político franco, travado com ideias e argumentos, no qual a intenção de esclarecer se sobrepõe ao esforço nocivo de ganhar uma discussão de qualquer maneira.
Estou me referindo a polêmica aberta por Breno Altman, um bom amigo, articulista claro e corajoso, a respeito de meu artigo “Dilma tenta evitar armadilha de Jango.” Breno comentou com o texto “Dilma está diante da armadilha de Getúlio.” Estamos falando de lutadores, no sentido figurado e no literal.  Admirei Waldemar Zumbano, avô de Breno, que era técnico de boxe. Assisti a muitas lutas de seus tios, inclusive Eder Jofre, campeão mundial. Também li muitos textos de Breno, referência em diversos debates.
Tudo está disponível no Brasil 247. Aqui vai meu comentário:
Concordo com grande parte das afirmações de Breno Altman. Temos a mesma visão sobre a necessidade de proteger o bem estar dos trabalhadores e dos brasileiros mais pobres. No passado e no presente, nenhum de nós teve receio de assumir bons combates pela liberdade, pela Justiça, contra a criminalização das lideranças populares.
Mas creio que Breno Altman comete um erro essencial ao apontar a lógica da conciliação como uma espécie de desvio fundamental de grandes homens públicos brasileiros, como Getúlio Vargas e João Goulart.
Referindo-se ao Getúlio que deu o tiro no peito em 1954, ele escreve que, “mentor da estratégia” de conciliação, Vargas não entendeu, ou não quis entender, “talvez por sua origem de classe, que era preciso se preparar para um choque frontal contra os grupos reacionários” e “terminou isolado e enfraquecido, vítima da sanha dos homens oligarcas da terra, do dinheiro e da informação, mas também do tabuleiro político que havia desenhado, no qual a intervenção dos trabalhadores e do povo tinha somente papel eleitoral.”
Quanto a Goulart, também conciliador, “manteve-se preso a determinados paradigmas herdados de Getúlio.” O problema de Jango, explica, era resistir em se preparar para uma “uma situação de ruptura, na qual as contradições costumeiramente se resolvem pela vitória da revolução ou da contrarreevolução.”

LULA, O GRANDE CONCILIADOR

Acho que é impossível debater conciliação política, no Brasil de 2014, sem discutir Luiz Inácio Lula da Silva, cujo espírito conciliador é um traço essencial de sua personalidade política.
Lula e seu espírito para negociar, ceder, avançar e ir em frente são parte insuperável dos progressos que o país obteve nos últimos doze anos.
Estamos falando de acordos nascidos de vários pactos de conciliação — alguns selvagens, outros elegantes, muitos desastrados — entre a classe dominante tradicional e a direção do Partido dos Trabalhadores, onde Lula sempre assumiu um papel destacado e único.
Palavra associada, erradamente, a capitulação e recuo, a conciliação é um exercício fundamental na prática cotidiana das democracias, onde as instituições existem para conciliar — compatibilizar, harmonizar, as palavras são muitas — os direitos da maioria e proteger a minoria.
A adaptação fácil a essa situação ajuda a entender o desempenho fora do comum de Lula na presidência da República. Sem perder sua referência de classe, que lhe garantiu o reconhecimento do eleitorado, ele não deixava de dialogar e mesmo fazer concessões a aliados, adversários e até inimigos.
Antes mesmo de vestir a faixa presidencial já se tornara amigo de infância de George W. Bush
Refazendo um percurso ocorrido em vários países ao longo do século XX, autores como Tony Judt e Adam Przeworski relatam o que se pode chamar de grande conciliação universal desde a emergência dos trabalhadores na cena política europeia.
Num processo diferenciado de um país a outro, a classe dominante aceitou abrir mão de uma parte de seus lucros para fazer concessões e benefícios aos assalariados, num grau de conforto que nenhum de seus profetas seria capazes de imaginar. Em troca, os trabalhadores concordaram em respeitar a propriedade privada, trocando a ideia de mudanças revolucionárias pelo respeito às regras do regime democrático.

NOSTALGIA AUTORITÁRIA

Olhando o ministério que foi empossado por Lula em 2003, com Antonio Palocci e Henrique Meirelles nos postos principais, Joaquim Levy no Tesouro, alinhados pela Carta ao Povo Brasileiro que falava em elevar o superávit primário até onde fosse necessário — como sugeriu o empresário João Roberto Marinho, da TV Globo — é obrigatório falar em conciliação.
Olhando os resultados, cabe perguntar: conciliação entre quem?
Era possível, na época, ler jornais que diziam que o medo tinha vencido a esperança.
Economistas ligados ao PT diziam que Lula havia superado o presidente argentino Carlos Menén na fidelidade ao Consenso de Washington.
Impaciente com a demora na reforma agrária, a CNBB anunciou sua ruptura com o governo.
Um grupo importante de parlamentares e de organizações que atuavam no PT aproveitou a reforma da Previdência para denunciar o governo e fundar o PSOL.
Hoje reconhecido como um dos maiores programas de distribuição de renda do planeta, o Bolsa Família era criticado como “política compensatória”, uma espécie de esmola institucional propagandeada pelo Banco Mundial. Também foi acusado — internamente — como fonte de corrupção, prestação de favores e clientelismo.
Maior feito econômico do governo Lula, a resposta a crise de 2008 foi um carrossel de negociações com empresários, sindicalistas, banqueiros e políticos. Conciliação pura.
No Brasil dos anos 1950 e 1960, a democracia não era vista como um regime respeitável por si — mas como caminho para uma revolução socialista ou uma sala de espera para golpes de Estado.
Considerava-se que, em função de seu atraso econômico e perfil sociológico, o país não era capaz de alimentar regimes democráticos estáveis — nem possuía políticos à altura das necessidades da população. Lideranças populares, comprometidas com causas democráticas, eram tratadas com desprezo por estudiosos influentes de nossa vida pública. O professor Octavio Ianni, conceituado autor de O Colapso do Populismo no Brasil, costumava se referir ao sistema político como “democracia populista” — conceito-avô do “bolivarianismo” empregado hoje pelos adversários do PT.
Estudioso de uma geração posterior, em O Populismo na Política Brasileira, Francisco Weffort, que anos mais tarde seria um dos fundadores do PT, escreveu: “Na impotência histórica da pequena burguesia está a raiz da demagogia populista. (…) por limitar-se às formas pequeno-burguesas de ação, o populismo traz em si a inconsistência que conduz inevitavelmente à traição.”
Essa visão mudou. A fraqueza da democracia liberal do pós-Guerra tinha a ver com suas origens — um golpe de Estado que derrubou um ditador popular — e também em seu pouco interesse para atender reivindicações das grandes camadas da população.
A democracia que vivemos nasceu nas campanhas de rua contra a ditadura, que envolveram estudantes e trabalhadores, a classe média liberal e mesmo empresários. Sofrida, difícil, a eleição direta não foi uma dádiva, mas uma conquista e isso é reconhecido pela memória da população, que despreza a nostalgia autoritária.

“NADA VIAM ALÉM DA REVOLUÇÃO

Apesar de uma imensa votação popular, Getúlio foi emparedado por uma conspiração de políticos, empresários conservadores e aliados locais do governo norte-americano, inconformados com a criação da Petrobrás, na época em que, no Irã, a CIA promovia — às claras — um golpe de Estado para derrubar um primeiro-ministro nacionalista e restaurar a monarquia.
Getúlio foi combatido, também, por quem poderia ter-lhe dado apoio e sustentação, pois falava em nome de uma parcela importante dos trabalhadores e da população pobre do país, o PCB, uma das principais organizações populares de então.
Alinhado com uma perspectiva ultra-esquerdista de expandir a revolução a qualquer custo, típica dos anos iniciais da Guerra Fria, o PCB considerava Getúlio mais do que um inimigo de classe: um aliado do imperialismo, recusando-se até a fazer campanha por sua eleição, em 1950. Pregou o voto branco. Graças a esse comportamento, que auxiliava a elite que tentava derrubar Getúlio de qualquer maneira, após o tiro no peito, em 1954, a multidão que saiu às ruas para defender suas conquistas e esperanças empastelou a redação dos jornais do partido.
Jango tomou posse em função de uma luta democrática que chegou às fronteiras de uma guerra civil — quando Leonel Brizola mostrou que a democracia nem sempre pode ser defendida de mãos vazias. Procurando enfrentar uma inflação de 25% anuais, Jango não conseguiu apoio para o Plano Trienal de Celso Furtado, projeto que implicava num pacto social que previa o controle de preços, que os empresários não apoiavam, e de salários, que os sindicatos combatiam.
O esvaziamento desse possível acordo de conciliação foi seguido pela nomeação de Carvalho Pinto, político com fortes ligações com o empresariado paulista e também com a esquerda católica. Um de seus principais assessores na época era Plínio de Arruda Sampaio, que ajudou a levar o PDC para a base de apoio de Goulart e, décadas depois, seria dirigente do PT e, após nova mudança, candidato a presidente pelo PSOL.
Após a queda de Carvalho Pinto ocorre uma nova mudança no governo Goulart, que abandona projetos de acordo político para uma ação de ruptura. “Vendo que seu governo acabaria sem realizar as reformas, o presidente aderiu a proposta de enfrentamento pregada pelas esquerdas,” avalia Jorge Ferreira, na espetacular biografia João Goulart. “Mesmo contrariado, fez tudo o as esquerdas quiseram. Todos os projetos de lei exigidos foram enviados ao Congresso Nacional.”
Mas a cena política mudava rapidamente, liberando forças que pareciam mais importantes do que se pensava. Jango fora ultrapassado — embora não fosse fácil distinguir o rumo dos acontecimentos. Ferreira avalia que, diante do motim dos marinheiros — liderados pelo sempre obscuro Cabo Anselmo — “as esquerdas, embriagadas pela arrogância e autossuficiência, nada viam além da revolução.”

A BUSCA DE UM NOVO GOVERNO

Dilma venceu as eleições mais apertadas ocorridas depois da democratização do país. Comprou e venceu o debate político, o mais claro de nossas eleições recentes.
Mas Dilma foi derrotada em urnas de forte presença operária e tradição de voto no PT, como aconteceu no ABC paulista. Enfrentou uma campanha atroz por uma parte da elite de grandes empresários e da cúpula do aparelho de Estado, que terminou numa inaceitável tentativa de intervenção no resultado da eleição. Antes que seus eleitores fossem as ruas para celebrar a vitória, em várias cidades do país ocorreram manifestações de cunho fascista a favor de um golpe militar.
É nesse ambiente que Dilma tenta construir um novo pacto político, mais amplo do que o governo de 2010-2014. Convencida de que os problemas econômicos tem uma raiz política, quer ampliar a base do governo. Em sintonia com Lula, seus movimentos tem como objetivo aproximar-se dos mercados, que em vários momentos do primeiro mandato mostraram disposição de sabotar as medidas do governo.
É uma decisão que implica em alguma dose de risco para Dilma. Não se sabe até onde ela irá, para encontrar novos caminhos em relação ao modelo atual.
Pode-se apostar que, em breve, será pressionada a entregar plenos poderes a Joaquim Levy, afastando-se da área econômica. Qualquer senho franzido será motivo de crise midiática.
Esses movimentos fazem parte do jogo político. Mas temos o direito de duvidar que a presidente irá ceder.Dilma também trouxe o empresário Armando Monteiro Neto, responsável pela campanha vitoriosa no Recife, e que foi duas vezes presidente da Confederação Nacional da Indústria, CNI. Está comprando uma briga para nomear Katia Abreu, que foi presidente da Confederação Nacional da Agriculutura, é inimiga número 1 do MST e dos movimentos sociais ligados a terra — mas tem uma boa relação pessoal com a presidente e, numa eleição disputadíssima, ajudou na vitória em Tocantins. Num movimento para o outro lado, Dilma recebeu o teólogo Leonardo Boff e Frei Betto, a quem disse que fará dos movimentos sociais a prioridade de seu governo.
Cumprindo o que disse, terá mais facilidades para enfrentar turbulências que certamente virão.
O reconhecimento popular pela importância da vitória se manifesta na empolgação pela cerimonia de inauguração do segundo mandato. As notícias são de uma grande mobilização rumo a Praça dos 3 Poderes.