sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A mídia enxovalha a Petrobras a qualquer custo





Blog do Paulo Metri, 28/02/2014



Petrobras
 

Paulo Metri - Conselheiro do Clube de Engenharia e colunista do Correio da Cidadania
 
 

É interessante e triste ver como a mídia do capital, esta que ainda tem razoável poder de influenciar a sociedade na compreensão dos fatos, noticiou o balanço de 2013 da Petrobras. Para os principiantes no tema da influência na compreensão dos fatos, a mídia citada patrocina uma compreensão distorcida, onde versões inexistentes da realidade são disseminadas.
Em primeiro lugar, ela precisa enxovalhar a Petrobras a qualquer custo, não importando o êxito que a empresa tenha. O lucro da Petrobras em 2013, 11% maior que o lucro de 2012, não pode ser transmitido sem crítica. Para contrabalançar o êxito, foi colocado em seguida na notícia: “No quarto trimestre, porém, o lucro caiu 18% na comparação com o mesmo período do ano anterior”.
Esta mídia crucificou a Petrobras por ter sido chamada para contribuir em uma política pública, a da contenção da inflação. Queriam, obviamente, atingir o governo Dilma, pois precisavam que a inflação não ficasse dentro da meta programada, o que daria excelentes manchetes, bem ao gosto.
A Petrobras, como empresa pública, pode e deve participar de políticas públicas. Ninguém contesta, por exemplo, a participação dela na maximização das compras locais, que é uma política pública. A experiência de compras de plataformas em Singapura, na era FHC, por serem um pouco mais baratas, acarretou o desmantelamento da indústria naval.
No entanto, a crítica válida no caso é o subsídio à gasolina. Não porque ajudou a conter a inflação, mas porque incentiva o transporte individual, que aumenta o consumo total de energia, os engarrafamentos nas grandes cidades e o lançamento de gases do efeito estufa na atmosfera.
Representantes da direita indagavam a mim, suposto defensor radical da Petrobras, a razão para eu estar calado sem denunciar o uso de um patrimônio público para ajudar a contenção da inflação, em benefício do governo do PT. Notar que, graças à perspectiva de perda nas ações da Petrobras, eles viraram nacionalistas. Quando eu respondia que ela estava cumprindo seu papel de empresa pública e, ao ajudar a conter a inflação, ela beneficiava a todos e não só aos petistas, a ira deles aumentava. Dizia, também, que ela iria honrar o compromisso de pagamento de dividendos aos portadores de suas ações, o que fazia a ira deles aumentar mais ainda. Em resumo, eles queriam superlucros, quando as ações teriam grande valorização, e eles conseguiriam grande rentabilidade com elas.
Mais uma vez, fica comprovada a altíssima rentabilidade do investimento em petróleo. A presidente Dilma precisa estar muito alerta, se vier a ganhar a próxima eleição presidencial, porque as mesmas forças, que a obrigaram a privatizar Libra, vão fazer pressão para ela privatizar a Petrobras, esta enorme geradora de riqueza. Além disso, sem esta empresa pública, diminui muito a possibilidade de execução de políticas de governo, inclusive a contenção da inflação.
Como a mídia fala mal sobre o alto grau de endividamento atual da Petrobras! É verdade que, hoje, ele é superior ao do passado. Contudo, não encontrei afirmações sobre a não capacidade de honrar estas dívidas com sua geração de caixa, que é o que importa. Entretanto, ninguém fala sobre as verdadeiras causas desse endividamento. Ele ocorre graças às frequentes rodadas de leilões de áreas colocadas nos governos de FHC, Lula e Dilma, com atratividade para o povo duvidosa.
Por exemplo, a Petrobras já garantia o abastecimento do país por mais de 40 anos e, ainda assim, colocaram Libra em leilão. Estes três presidentes colocaram mais áreas nas rodadas do que a capacidade da empresa de arrematá-las e, depois, de investir nelas. Os três concordaram com a entrega de território nacional, inclusive do Pré-Sal, para empresas estrangeiras, devido à pressão destas empresas e de governos estrangeiros.
Na mídia, é transmitido que o grau de endividamento foi melhorado, dentre outras razões, graças à venda de ativos da Petrobras, promovida pela presidente Graças Foster. Supondo que os ativos dispensados eram os menos atrativos para a empresa, ainda assim há crítica sobre este desinvestimento. Da forma como foi noticiado, ele pode permitir desvios, por haver chance de ocorrência de acordos secretos. Não é um leilão, um procedimento mais transparente e, ainda assim, acordos de não competição podem ser celebrados. No entanto, friso que não estou sabendo de nenhum desvio.
A Petrobras, sendo uma empresa gigantesca, tem suas falhas também, mas realiza várias conquistas para o nosso povo. Por exemplo, ela prova que o brasileiro pode desenvolver tecnologia, apesar das carpideiras pagas pelo capital internacional, entre lamúrias, dizerem: “mas a Petrobras ainda não venceu os obstáculos do Pré-Sal” ou “quem tem a tecnologia são as empresas estrangeiras que trabalham para a ela”.
Em respeito aos leitores, explico que os desafios têm se apresentado para a Petrobras durante seus 60 anos de existência e ela tem sempre cumprido seu papel. É verdade que ela usa muito as tecnologias de seus fornecedores, mas tem capacidade de encomendar tais desenvolvimentos, acompanhá-los e, por fim, utilizá-los.
Enfim, só os que querem que o brasileiro se sinta inferior é que usam estes argumentos, provavelmente para, na condição de um ser inferior, os brasileiros aceitarem a entrada dos entes superiores, os estrangeiros. Agora, além dos inúmeros benefícios para a sociedade acarretados por se ter uma empresa estatal no setor de petróleo, confesso que a existência dela me satisfaz muito, por ver uma empresa da sociedade dando certo. E os neoliberais querem criar uma CPI sobre ela.

Cai castelo de cartas do ministro Barbosa

Imagem inline 1

 
Carta Maior, 28/02/2014



Cai castelo de cartas do ministro Barbosa

 


Por Breno Altman


 

As palavras finais do presidente da corte suprema, depois da decisão que absolveu os réus da AP 470 do crime de quadrilha, soaram como a lástima venenosa de um homem derrotado, inerte diante do fracasso que começa a lhe bater à porta. A arrogância do ministro Barbosa, abatida provisoriamente pelo colegiado do STF, aninhou-se em ataque incomum à democracia e ao governo.

“Sinto-me autorizado a alertar a nação brasileira de que este é apenas o primeiro passo”, discursou o relator da AP 470. “Esta maioria de circunstância foi formada sob medida para lançar por terra todo um trabalho primoroso, levado a cabo por esta corte no segundo semestre de 2012.”

Sua narrativa traz uma verdade, um insulto e uma fantasia.
Tem razão quando vê risco de desmoronamento do processo construído sob sua batuta. A absolvição pelo crime de quadrilha enfraquece fortemente a acusação. Se não há bando organizado, perde muito de sua credibilidade o roteiro forjado pela Procuradoria Geral da República e avalizado por Barbosa. A peça acusatória, afinal, apresentava cada passo como parte minuciosa de um plano concebido e executado de forma coletiva, além de permanente, com o intuito de preservação do poder político. Se cai a tese de quadrilha, mais cedo ou mais tarde, as demais etapas terão que ser revistas. Essa é a porção verdadeira de sua intervenção matreira.

A raiva de Barbosa justifica-se porque, no coração desta verdade, está a neutralização da principal carta de seu baralho. O ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas materiais ou testemunhais, como bem salientou o jurista Ives Gandra Martins, homem de posições conservadoras e antipetistas. A base de sua criminalização foi uma teoria denominada “domínio do fato”: mesmo sem provas, Dirceu era culpado por presunção, oriunda de sua função de líder da eventual quadrilha. Absolvido do crime fundante, a existência de bando, como pode o histórico dirigente petista estar condenado pelo delito derivado? Se não há quadrilha, inexiste liderança de tal organização. A própria tese condenatória se dissolve no ar. O que sobra é um inocente cumprindo pena de maneira injusta e arbitrária.

Derrotado, Barbosa recorreu a um insulto: acusa o governo da República de ter ardilosamente montado uma “maioria de circunstância”, como se a fonte de sua indicação fosse distinta dos demais. Aponta o dedo ao Planalto sem provas e sem respeito pela Constituição. Atropela a independência dos poderes porque seu ponto de vista se tornou minoritário. Ao contrário da presidente Dilma Rousseff, que manteve regulamentar distância das decisões tomadas pelo STF, mesmo quando eram desfavoráveis a seus companheiros, incorre em crime de Estado ao denunciar, através de uma falácia, suposta conspiração da chefe do Executivo.

A conclusão chorosa de seu discurso é uma fantasia. Não se pode chamar de “trabalho primoroso” uma fieira de trapaças. O presidente do STF mandou para um inquérito secreto, inscrito sob o número 2474, as provas e laudos que atestavam a legalidade das operações entre Banco do Brasil, Visanet e as agências de publicidade do sr. Marcos Valério. Omitiu ou desconsiderou centenas de testemunhas favoráveis à defesa. Desrespeitou seus colegas e tratou de jogar a mídia contra opiniões que lhe contradiziam. Após obter sentenças que atendiam aos objetivos que traçara, lançou-se a executá-las de forma ilegal e imoral.

O ministro Joaquim Barbosa imaginou-se, e nisso há mesmo um primor, como condutor ideal para uma das maiores fraudes jurídicas desde a ditadura. Adulado pela imprensa conservadora e parte das elites, sentiu-se à vontade no papel do pobre menino que é glorificado pela casa grande por suas façanhas e truques para criminalizar o partido da senzala.

O presidente do STF lembra o protagonista da série House of Cards, que anda conquistando corações e mentes. Para sua tristeza, ele está se desempenhando como um Frank Underwood às avessas. O personagem original comete incríveis delitos e manobras para chegar à Presidência dos Estados Unidos, derrubando um a um seus adversários. O ministro Barbosa, porém, afunda-se em um pântano de mentiras e artimanhas antes de ter dado sequer o primeiro passo para atravessar a praça rumo ao Palácio do Planalto.

Acuado e sentindo o constrangimento de sua nudez político-jurídica, o ministro atira-se a vinganças, recorrendo aos asseclas que irregularmente nomeou, na Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, como feitores das sentenças dos petistas. Delúbio Soares teve o regime semiaberto suspenso na noite de ontem. José Dirceu tem contra si uma investigação fajuta sobre uso de aparelho celular, cujo único propósito é impedir o sistema penal que lhe é devido. O governo de Brasília está sendo falsamente acusado, com a cumplicidade das Organizações Globo, de conceder regalias aos réus.

O ódio cego de Barbosa contra o PT e seus dirigentes presos, que nenhuma força republicana ainda se apresentou para frear, também demonstra a fragilidade da situação pela qual atravessam o presidente do STF e seus aliados. Fosse sólido o julgamento que comandou, nenhuma dessas artimanhas inquisitoriais seria necessária.

O fato é que seu castelo de cartas começou a ruir. Ao final dessa jornada, o chefe atual da corte suprema sucumbirá ao ostracismo próprio dos anões da política e da justiça. Homem culto, Barbosa tem motivos de sobra para uivar contra seus pares. Provavelmente sabe o lugar que a história reserva para quem, com o sentimento dos tiranos, veste a toga dos magistrados.


(*) Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Juízes no palanque - A quarentena necessária

Imagem inline 1

 

Juízes no palanque – quarentena necessária



Dalmo de Abreu Dallari


Os juízes exercem atividade política em dois sentidos: por serem integrantes do aparato do poder do Estado, que é uma sociedade política, e por aplicarem normas de direito, que são necessariamente jurídico-políticas. Com esta observação inicio um capítulo de meu livro O poder dos juízes, capítulo intitulado Assumir a politicidade, no qual procuro demonstrar a necessidade e conveniência de assumir a politicidade implícita no desempenho das funções jurisdicionais. Além desse aspecto mais amplo da politicidade, acrescento mais adiante que o juiz é cidadão, exerce o direito de votar, o que, obviamente, implica uma escolha política.

Existe, entretanto, uma grande diferença entre essa participação política, em sentido amplo, e a participação político-partidária. Com efeito, quem é filiado a um partido político ou se elegeu por ele e toma suas decisões políticas respeitando as implicações subentendidas nessa filiação tem reduzidas sua independência e imparcialidade, pois muitas vezes a posição adotada pelo partido é o reflexo de uma circunstância particular, não sendo raro que as direções partidárias façam acordos objetivando a obtenção de certos benefícios mas contrariando disposições do programa do partido, que, em princípio, é um compromisso para os filiados ao partido. E aí acaba a independência do filiado.

A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu no artigo 95, parágrafo único, inciso III, que aos juízes é vedado «dedicar-se a atividade político-partidária». É interessante e oportuno observar que no mesmo artigo da Constituição, no inciso V, está disposto que é vedado aos juízes «exercer a advocacia  no juízo ou tribunal de que se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração». Note-se que no tocante ao exercício da advocacia foi estabelecida a quarentena, ou seja, um prazo que deve ser observado para que cesse a probição, ao passo que quanto à atividade político-partidária dos juízes foi estabelecida, pura e simplesmente, a proibição, o que significa que no dia seguinte ao da aposentadoria ou exoneração o juiz já pode filiar-se a um partido. Isso é altamente inconveniente por vários motivos que a prática demonstra.

Exatamente porque muitas de suas decisões têm nítido significado político, no sentido de político-partidário, é importante que o juiz só possa filiar-se a um partido depois de observada uma quarentena, que poderia ser de dois anos. Com efeito, o juiz que ainda no exercício das funções jurisdicionais já entrou em contato com um partido para filiar-se logo que deixar o cargo será inevitavelmente influenciado por esses entendimentos. Os casos que lhe forem submetidos e nos quais o partido ou os dirigentes partidários tenham interesse serão conduzidos e decididos sob essa influência, comprometendo seriamente a independência e  imparcialidade do juiz. O fato de proibir a filiação partidária durante o prazo da quarentena impedirá o juiz de candidatar-se a cargo eletivo, mas ele será um eleitor prestigioso e não estará impedido de externar suas opiniões políticas. A proibição será da filiação partidária e, consequentemente, de se candidatar, pois a lei eleitoral exige a comprovação de filiação partidária para alguém ser candidato. Vem a propósito lembrar uma ponderação do ministro Joaquim Barbosa, num pronunciamento favorável à quarentena para o exercício da advocacia pelos juízes. Disse o ministro que «o caráter da quarentena prevista na Constituição é muito restrito, uma vez que o juiz aposentado segue fazendo jus a seus proventos.

Em conclusão, para a preservação da independência e imparcialidade dos juízes é necessário fixar-se um prazo de quarentena para que ele se filie a um partido político depois de deixar o cargo. É preciso impedir que o juiz, ainda no exercício das funções jurisdicionais, estabeleça entendimentos com algum partido político, pois ocorrerá, inevitavelmente, a influência desses entendimentos, e por mais que se esforce para evitá-la em suas decisões sofrerá tanto as pressões direitas do partido e de seus dirigentes, como indiretas, decorrentes de sua opção político-partidária. E o fato de não poder filiar-se a um partido não impedirá que ele exerça sua cidadania como eleitor e manifestante independente, o que, parafraseando a expressão usada pelo ministro Joaquim Barbosa, é um impedimento muito restrito. Em benefício da cidadania brasileira e dos próprios juízes, é importante que a lei estabeleça uma quarentena para sua filiação partidária.  

Sobrou indignação​, mas faltou educação, faltou leitura

 

http://oglobo.globo.com/videos/t/todos-os-videos/v/catalogo/3173842/


O Globo.com, 27/02/14
 

‘Ser manifestante não dá isenção’, afirma a psicanalista Viviane Mosé



Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo




RIO - Logo que começaram as manifestações, em junho de 2013, a psicanalista e filósofa Viviane Mosé falou sobre o risco de violência e disse que a polícia não podia ser tratada como inimiga pública número 1. E alerta: hoje, declarar-se manifestante equivale a dizer “sou do bem”.

Por que tanta violência nos protestos?

Vivemos um momento extremamente violento, a violência é gratuita, desde o menino que entra na escola mata 13 alunos e se mata, como ocorreu em Realengo, até as manifestações que estão acontecendo na Ucrânia e que aconteceram no Egito e no Brasil. Existe uma crise de valores, então todo mundo está violento. Isso é um fato, mas a questão é o que fazemos com a violência. Nossas manifestações foram violentas desde o princípio. Vimos polícia violenta, vimos manifestante violento. A violência da polícia a gente botou no jornal, criticou, mas ninguém nunca teve direito de criticar a manifestação, e esta era violenta. Provocava a polícia, jogava pedra, quebrava patrimônio público, mas ninguém podia falar nada. Então hoje estamos vendo uma violência crescente no Brasil, vinda de uma indignação sem direção, o que é muito perigoso. A gente tem de se relacionar com ela como adulto. Como sociedade, não se pode deixar a violência como está.


Por acontecer durante as manifestações, essa violência ganhou imunidade?

No Brasil, parece que dizer “sou manifestante” é dizer “sou do bem”. Então uma pessoa que nunca fez política, nunca participou de qualquer movimento social, um dia vai a uma manifestação e grita contra qualquer coisa, saindo dali como representante do bem. Ele abraça qualquer uma dessas verdades prontas que aparecem na internet, defendendo aquilo de maneira rasa. Ser manifestante não dá a ninguém isenção. Ele pode estar ali se manifestando, mas também pode ser um bandido. Ser manifestante não é sinônimo de nada além de alguém que está se manifestando. Quando soltamos manifestante só porque era manifestante, soltamos também alguns bandidos que estavam ali no meio, e hoje temos noção disso.


Na morte de Santiago Andrade, houve quem dissesse que a intenção não era atingir a imprensa, mas a polícia. Essa rejeição à polícia não seria fruto de anos de corrupção e violência policial?

Não somente de corrupção e violência policial, mas de um regime militar recente que se utilizou da polícia como ferramenta de repressão. A situação é tão grave que se fosse um policial que tivesse morrido, eles diriam que a culpa era dele. Morreu uma policial militar de 22 anos da UPP e não houve uma única manifestação por ela. Só o silêncio. Grupos de direitos humanos raramente defendem policiais. E essa violência contra a polícia recrudesce em um momento em que ela está tentando se transformar, no momento de implementação da pacificação das comunidades. Acho uma pena enfraquecer as UPPS.


A senhora acredita que essas manifestações sejam orquestradas?

As manifestações são orquestradas, mas por várias forças. É complicado. Elas são orquestradas por black blocs e pelos coletivos, como eles se chamam agora. São vários coletivos surgindo, que querem fazer justiça com as próprias mãos, como ocorreu no Flamengo. É como se estivéssemos vendo uma orquestração de alguns grupos que acreditam que a violência é válida como forma de manifesto. Também vemos alguns partidos políticos se organizando, pagando pessoas para estar lá, se utilizando daquela manifestação contra ou a favor de determinado partido. Mas também há grupos que ficaram de fora da venda de drogas nos morros, que foram prejudicados com as UPPs. Para esses grupos interessa a manifestação, porque ela vai contra a polícia, e desacreditar a polícia é uma maneira de fortalecer a criminalidade. Mas ali tem, inclusive, jovens engajados politicamente, com disposição para transformar a sociedade. Esse é o perigo das manifestações, ali tem de tudo. Atuar ali envolve a compreensão cirúrgica do problema. E não apenas botar o carimbo “é do bem” ou “é do mal”.


Qual a ideologia por trás dos black blocs?

Eles defendem o fim do capitalismo e quebram fachadas de bancos, como se isso fosse afetar os banqueiros. Eles atacam a imprensa como se esta fosse o mal, a única responsável pela alienação da sociedade. É um discurso velho e raso, quase ingênuo. Na verdade é uma indignação que não tem por trás nenhum discurso. Falta leitura ou é preguiça de desenvolver a argumentação, que fica sempre no meio do caminho. Este aliás foi o mal do século XX, a leitura foi desestimulada. O que sobrou foi essa falta de conceitos, então quando alguém diz alguma coisa na internet e um milhão concorda, vira verdade absoluta, e se você falar diferente, você é do mal. Isso é muito fascista. O domínio de uma maioria que se impõe pelo número.


As manifestações no Brasil sempre fizeram parte de momentos históricos. O que caracteriza as de hoje?

É delicado falar disso. “O gigante acordou.” É, o gigante acordou de uma hora para outra, sem nenhuma tradição de atuação ou participação política, as manifestações não nasceram de um engajamento com movimentos sociais, não houve continuidade com nada que existia até então de luta política e social. Do nada, as pessoas foram para a rua, levando a sua indignação. Mas levaram uma indignação sem conceito, sem sofisticação intelectual nenhuma, abraçados a meia dúzia de verdades rasas, quase ingênuas. Aquele grande bloco na rua contra o quê? Contra a passagem? O serviço público? Depois que toda essa energia está canalizada, o que a gente faz com isto, se não quer atingir nada? Necessariamente esse movimento acaba em violência. Para mim a violência foi o gozo das manifestações que não estavam indo para lugar nenhum. E esse gozo está justificado por intelectuais e comentadores. E é perigoso, está solto pela rua. Você vê isso o tempo inteiro, quando alguma coisa dá errado no Brasil, então você queima ônibus, queima lixo, depreda, e isso é primitivo demais.


Qual é a sua expectativa sobre o futuro dessas manifestações?

No primeiro levante do gigante adormecido sobrou indignação, mas faltou educação, faltou leitura. Mas a boa nova é que o Ensino Básico vem melhorando, e acredito que em poucos anos, em até cinco anos, esse gigante das ruas vai despertar novamente, e dessa vez será outro. Não aquele movido pela campanha publicitária “Vem pra rua”, mas por uma indignação elaborada por meio de propostas, de rumos para a sociedade que queremos. E que o poder público se prepare para essa demanda, criando novas pontes de diálogo, de entendimento, de cooperação, o que já não é uma escolha, mas a única possibilidade de vida em sociedade.

Joaquim Barbosa morreu pela boca

 





quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
 


Barbosa, a marionete do golpe, morreu pela boca


Por Miguel do Rosário



O escritor argentino Ricardo Piglia, num de seus ensaios, propõe uma tese segundo a qual um conto oferece sempre duas histórias. Uma delas acontece num descampado aberto, à vista do leitor, e o talento do artista consiste em esconder a segunda história nos interstícios da primeira. Agora sabemos que não são apenas escritores que sabem ocultar uma história secreta nas entrelinhas de uma narrativa clássica. O ministro Luís Roberto Barroso nos mostrou que um jurista astuto (no bom sentido) também possui esse dom. Esta é a razão do ridículo destempero de Joaquim Barbosa. Esta é a razão pela qual Barbosa interrompeu o voto do colega várias vezes e fez questão de, ao final deste, vociferar um discurso raivoso e mal educado. Barbosa sentiu o golpe.

Houve um momento em que Barbosa praticamente se auto-acusou: “o que fizemos não é arbitrariedade”. Ora, o termo não fora usado por Barroso. Barbosa, portanto, não berrava apenas contra seu colega. Havia um oponente imaginário assombrando Barbosa, que não se encontrava em plenário, mas ele sentiu sua presença enquanto ouvia Barroso ler, tranquilamente, seu voto. O oponente imaginário são os milhares de brasileiros que vem se aprofundando cada vez mais nos autos da Ação Penal 470, acompanhando os debates do Supremo Tribunal Federal, ajudando alguns réus a pagar suas multas, dando entrevistas bem duras em que denunciam os erros do julgamento, e constatando, perplexos, que houve, sim, uma série de erros processuais e arbitrariedades.
Barroso contou duas histórias. Uma delas, no primeiro plano, era seu voto. Um voto tranquilo e técnico. Só que nada na Ação Penal 470 foi tranquilo e técnico, e aí entra a história subterrânea, por trás do cavalheirismo modesto de Barroso. E aí se explica a fúria de Barbosa.
A história secreta contada por Barroso, com uma sutileza digna de um escritor de suspense, de um Edgar Allan Poe, com uma ironia só encontrada nos romances de Faulkner ou Guimarães Rosa, é a denúncia da farsa. Aos poucos, essa história subterrânea virá à tôna. Alguns observadores mais atentos já a pressentiram há tempos. O novo ministro, antes mesmo de ingressar no STF, entendeu que há um muro de ódio e violência à sua frente, construído ao longo de oito anos, cujos tijolos foram cimentados com preconceito político, chantagens, vaidade e uma truculência midiática que só encontra paralelo nas grandes crises dos anos 50 e 60, que culminaram com o golpe de Estado.
Sabe o ministro que não é ele, sozinho, que poderá desconstruir esse muro. Em entrevista a um jornal, o próprio admitiu que estava assustado com a violência da qual já estava sendo vítima: o médico de sua mulher, sem ser perguntado, disse a ela que não tinha gostado do voto de seu marido, e suas filhas vinham sendo questionadas na escola por colegas e professores. O Brasil vive um tipo de fascismo midiático cuja maior vítima (e algoz) é a classe média e os estamentos profissionais que ela ocupa. É a ditadura dos saguões dos aeroportos, das salas de espera em consultórios médicos, dos shows da Marisa Monte.
Nos últimos meses, eu tenho feito alguns novos amigos, que tem me dado um testemunho parecido. Todos reclamam da solidão. A mãe rodeada de filhos “coxinhas”. O pai que é assediado, às vezes quase agredido, pelas filhas reacionárias. A executiva na empresa pública isolada entre tucanos raivosos. Alguns, mais velhos, encaram a situação com bom humor. Outros, mais jovens, vivem atordoados com as pancadas diárias que levam de seus próximos. No entanto, o PT é o partido preferido dos brasileiros, ganha eleições presidenciais, aumenta presença no congresso e pode ganhar novamente a presidência este ano, até mesmo no primeiro turno. Por que esta solidão se tanta gente vota no partido?
Claro que voltamos à questão da mídia, que influencia particularmente as camadas médias da sociedade, à esquerda e à direita. A maioria da classe média tradicional, hoje, independente da ideologia que professa, odeia o PT, idolatra Joaquim Barbosa, e lê os livros sugeridos nos cadernos de cultura tradicionais.
Eu conheço um bocado de artistas. Hoje são quase todos de direita, embora a maior parte se considere de esquerda. Todos odeiam Dirceu, sem nem saber porque. E me olham com profunda perplexidade quando eu tento argumentar. Como assim, parecem me perguntar, com olhos onde vemos rapidamente nascer um ódio atávico, irracional, como assim você não odeia Dirceu? Eu tento conversar, com a mesma calma de Barroso, mas não adianta muito. Eles reagem com agressividade e intolerância. Pessoas em geral pacatas se transformam em figuras raivosas e vingativas. O humanismo, que tanto fingem apreciar nos europeus, mandam às favas ao desejar que os réus petistas apodreçam no pior presídio do Brasil.
Eu mesmo costumo usar os mesmos termos de Barroso. “Respeito sua opinião”, eu digo. Às vezes até procuro elogiar o interlocutor, numa tentativa ingênua e canhestra de quebrar a casca de ódio que impede qualquer diálogo. Não adianta. Qual um bando de Barbosas, eles respondem, quase sempre, com grosserias e sarcasmos. Quantas vezes não vivi a mesma situação de Barroso? Às vezes, inclusive, aceitei teses que não acreditava, violentei-me, num esforço desesperado para transmitir uma pequena divergência, uma singela ideia que foge ao script da mentalidade de um interlocutor cheio de certezas.
Entretanto, a serenidade estóica e elegante de Barroso significou uma grande vitória para nós, os solitários, os que arrostamos as truculências diárias da mídia e de seu imenso, quase infinito, exército de zumbis. Porque encontramos um igual. Encontramos alguém que sofre, que tenta expor uma ideia diferente, e recebe de volta uma saraivada de golpes de quem não aceita ser contestado. Não confundamos, contudo, elegância com covardia. Não se pode exigir a um homem que derrube sozinho uma muralha desse calibre. Esse trabalho não é de Barroso. Será um esforço coletivo, que já estamos empreendendo. Barroso encontrará forças em nossas ideias. Mesmo que ele tenha de fazer algum recuo estratégico, como aliás já fez, ao condenar Genoíno, será para avançar em seguida.
Mas a função de um juiz do STF não é defender uma classe. Não é defender a rapaziada que frequenta o show da Marisa Monte e lê os editoriais de Merval Pereira. Não é se tornar celebridade ou “justiceiro”. A função de um juiz é ser justo e defender tanto as razões do Estado acusador quanto os direitos dos réus. Quando Getúlio deu um tiro em si mesmo, ele deixou um recado, no qual há referências algo misteriosas a “forças” que se desencadearam sobre ele. Como que antevendo o que continuaríamos a enfrentar, durante muito tempo, o velhinho ainda tentou, em sua dolorosa despedida, nos consolar: “Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado.”
E cá estamos, Getúlio, diante das mesmas forças obscuras. Diante da mesma truculência, das mesmas arbitrariedades, que dessa vez encontraram voz na figura, trágica ironia, de um negro. Do primeiro negro que nós, o povo, nomeamos para o STF, mas que preferiu se unir aos poderosos de sempre, aos donos do dinheiro, aos barões da mídia, à turma do saguão do aeroporto…
É positivamente curioso como os ministros da mídia demonstram auto-confiança, arrogância, desenvoltura. Gilmar Mendes, Barbosa, Marco Aurélio Mello, dão entrevistas como se fizessem parte de uma raça superior. São campeões de um STF triunfante, que prendeu os “mensaleiros”. Enquanto isso, os outros ministros agem com humildade, discrição, prudência. Barroso lê seu voto com voz quase trêmula, e pede reiteradas desculpas por cada mínima divergência. Nunca se ouviu um ministro pedir tantas vênias como Barroso. Nunca se viu um juiz fazer tantos elogios àquele mesmo que o destrata sem nenhuma preocupação quanto à etiqueta de um tribunal. Mas o que Barroso pode fazer? Não faríamos o mesmo? A situação de Barroso é quase a de um sertanejo humilde, argumentando em voz baixa diante de seu patrão.
Sintomático que Luiz Fux, que aderiu também à Casa Grande, tenha citado Lampião para designar a “quadrilha dos mensaleiros”. O mundo dá tantas voltas, e retorna ao mesmo lugar. Virgulino Ferreira da Silva, o terror do Nordeste, o maior dos facínoras, quem diria, seria comparado a José Dirceu! É o tipo de comparação que não dá para ouvir sem darmos um sorriso triste e malicioso. Não foi Virgulino igualmente o maior herói do sertão? Não foi ele o maior símbolo das injustiças e arbitrariedades que se abatiam, dia e noite, sobre um povo sofrido e miserável? Evidentemente, não existe comparação mais idiota. Dirceu é um homem de paz, que acreditou na democracia e na política. Lampião foi um bandido que desistiu de qualquer solução política ou pacífica para seus problemas.
Mas também Fux, sem disso ter consciência, trouxe à baila uma história subterrânea, soterrada sob sua postura covarde de um juiz submetido aos barões de sempre: Lampião provou ao Brasil que não existe opressão sem resistência, mesmo que na forma de banditismo. Esta é a lei mais antiga da humanidade. A resistência e o heroísmo nascem da opressão e da arbitrariedade, como um filho nasce da mãe e do pai. A campanha de solidariedade aos réus petistas foi a prova disso. Mas não vai parar aí. Ao chancelar uma farsa odiosa, arbitrária, truculenta e, sobretudo, mentirosa, o STF produziu milhares de Virgulinos. Só que não são Virgulinos por serem bandidos ou violentos. São Virgulinos exatamente pela razão oposta: a coragem de lutar de maneira pacífica e democrática.
É a coragem, sempre, a grande lição que o mais humilde dos cidadãos dá aos poderosos. É a coragem que faz alguém se insurgir contra a opinião do ambiente de trabalho, da família, do condomínio, dos saguões dos aeroportos, e assumir uma posição política independente, inspirada unicamente em sua consciência. É a coragem, enfim, que faz os olhos de Barroso irradiarem um brilho de confiante serenidade. Sua voz pode tremer, mas não por medo. Treme antes pelo receio de escorregar um milímetro no fio da navalha por onde caminha, entre o desejo de falar duras verdades a um tratante e a determinação de manter uma elegância absoluta.
Barroso sequer consegue usar o pronome “seu” ao se referir a Barbosa, com medo de cometer um deslize verbal. Se Barbosa fosse uma figura serena, amiga, Barroso não teria esse escrúpulo. Tratando-se de um oponente sem caráter, sem moderação, e ao mesmo tempo tão incensado e blindado pela mídia, Barroso tem de tomar um cuidado máximo. Tem de tratá-lo com respeito até mesmo exagerado. Barroso sabe que Barbosa é vítima de megalomania e arrogância messiânica, que sofre de uma espécie de loucura, uma loucura perigosíssima, porque protegida pelos canhões da imprensa corporativa.
Ao contestar tão ofensivamente o teor do voto de Barroso, ao acusá-lo, de maneira tão vil, Barbosa disparou um tiro no próprio pé. Ganhará, ainda, um bocado de palmas dos saguões aeroportuários, mas haverá mais gente erguendo a sombrancelha, desconfiada de tanta fanfarronice e falta de modos. Barroso deixou que Barbosa morresse como um peixe, pela boca.
Foi a vitória da serenidade sobre o destempero, da delicadeza sobre chauvinismo, do respeito à divergência sobre a intolerância.​

A oportuna lição de Barroso

 O Perverso e o Justo


http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/coluna/350077_A+OPORTUNA+LICAO+DE+BARROSO




IstoÉ.com, 27/02/2014



A oportuna lição de Barroso

Por Paulo Moreira Leite



O ministro Luiz Roberto Barroso deu uma aula de justiça, ontem.
Desde o início da ação penal 470 nós ouvimos a tese de que o país precisava de um julgamento exemplar. O argumento é que estávamos diante de uma denúncia histórica, cujo resultado teria um grande efeito simbólico.
Barroso disse:
Antes de ser exemplar e simbólica, a Justiça precisa ser justa, sob pena de não poder ser nem um bom exemplo nem um bom símbolo".
É isso mesmo. 
Sob a presidência de Carlos Ayres Britto, que deu início ao julgamento da AP 470, falava-se tanto no caráter “simbólico” e “exemplar” da decisão que até imaginei que o STF preparava uma mudança de função e endereço.
Em vez de permanecer na Praça dos Três Poderes, como um dos Poderes da República, com o dever constitucional de zelar pelo cumprimento das leis, pretendia  mudar-se para o divã do psicanalista Carl Jung, e passar a debater o efeito de suas sentenças sobre o inconsciente coletivo do país. Seria uma ótima diversão para todos - menos para os réus e para quem compreende o papel da Justiça na vida de homens e mulheres. 
A prioridade dos exemplar e dos símbolos é assim. Substitui o fato pela versão.
Há um truque, aqui.
O papel de elaborar versões, nas sociedades contemporâneas, não é para qualquer um.  Nosso divã de psicanalista coletivo encontra-se nos meios de comunicação, que nos dizem quem são os heróis, os bandidos, o certo e o errado.  Vale o que escrevem, argumentam, explicam. Criam os mitos e, como dizia Jung, os arquétipos. 
É através dessa opinião publicada – que os ingênuos confundem com opinião publica – que se forma o exemplar e o simbólico
É por isso que nossos psicanalistas estão lá, noite e dia, nos jornais, na TV, para repetir suas histórias. 
Sem resposta de conteúdo para uma mudança que, se for confirmada no dia de hoje, como tudo indica, representará um avanço do julgamento da AP 470 na direção correta, alerta-se para o risco simbólico, para o exemplar.
Estranho que até agora ninguém tenha falado no “cultural.”
Evita-se perguntar por que ocorre uma mudança, quais seus motivos reais.
Todo esforço consiste em evitar  perguntas incômodas e questóes de fundo.
Tenta-se fugir da  fraqueza notória nos argumentos da denúncia. Pretende-se ignorar a  insuficiência das provas para colocar um cidadão por dois ou três anos na prisão – como se uma existência humana, se o direito a liberdade e a presunção da inocência, fossem questões menores, que podem ser jogadas para lá ou para cá, ao sabor das convenientes do dia e, especialmente, da noite dos símbolos e exemplos.
Em vez de estimular a razão, nossos psicanalistas querem estimular o medo, a mais perigosa das emoções do mundo político.
O que o povo vai pensar? O "povo". Não o povo, aquele que não é bobo.  
O nome deste processo é marketing.
A base desse raciocínio é inconfessável. Tenta-se convencer um país inteiro que sua população não está preparada para assistir a demonstração de que o STF, o “exemplo,” o “símbolo”, também pode errar e, quando isso acontece, este erro deve ser corrigido.
Querem fazer a educação através do mito e não pela razão.
Essa pedagogia implica em enxergar a população brasileira como uma aglomeração de homens e mulheres incapazes de compreender seus direitos e lutar por eles. Por isso nem sempre é preciso respeitar a vontade popular nem a soberania dos poderes que emanam do povo.
Diante de pessoas que não podem tomar decisões por conta própria e necessitam de tutores e mestres para apontar o caminho do certo e do justo, nossos psicanalistas podem mais.  
Vamos entender de uma vez por todas: quem fala no exemplar e no simbólico está dizendo que a mentira pode ser útil, o erro pode ser necessário, a Justiça pode ser apenas uma aparência – desde que sirva a seus propósitos.
É este o debate. E, após tantos momentos de treva, parece haver um pouco de luz.

Comissão da Verdade confirma ex-tenente do Exército como assassino de Rubens Paiva

O descrito abaixo como "método não tradicional de interrogatório" consistia em ficar pulando sobre o corpo de Rubens Paiva, de acordo com outros registros publicados.
 
 
 
 

 

O Globo.com, 27/02/2014

Comissão da Verdade confirma ex-tenente do Exército como assassino de Rubens Paiva


Chico Otávio


Reprodução 
A Comissão Nacional da Verdade divulgou a goto de Antônio Fernando Hughes de Carvalho foi quem Foto: Reprodução
A Comissão Nacional da Verdade divulgou a foto de Antônio Fernando Hughes de Carvalho

 
RIO - A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou o tenente do Exército Antônio Fernando Hughes de Carvalho como responsável pela tortura e morte do ex-deputado Rubens Paiva, como O GLOBO antecipou na edição de quinta-feira. A conclusão, divulgada no Rio, é sustentada pelo depoimento de um militar, identificado pela comissão por “agente Y”, que afirmou ter visto Hughes “utilizando método não tradicional de interrogatório em uma pessoa que, de relance, lhe pareceu ser de meia idade”. A data do episódio, 21 de janeiro de 1971, coincide como o segundo dia de prisão de Paiva na carceragem do Departamento de Operações de Informações do 1º Exército (DOI-I), na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca.

A CNV não divulgou o nome do “agente Y” por compromisso de sigilo com o depoente. Na edição de quinta-feira, O GLOBO revelou que o nome de Hughes foi citado pelo coronel da reserva Armando Avólio Filho, na época tenente lotado no Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército (PIC/PE). Avólio, cujo nome consta da lista de torturadores do Projeto Brasil Nunca Mais, disse à comissão e ao Ministério Público Federal que, quase ao término do expediente de 21 de janeiro, um dia após a chegada de Paiva ao DOI, testemunhou a cena de tortura porque uma das portas da sala de interrogatórios do destacamento estava entreaberta. Procurado, Avólio não quis falar ao GLOBO.
 
Além de Hughes, já falecido, a comissão também acusou ontem o general reformado José Antônio Nogueira Belham pela morte do ex-deputado, cujo corpo até hoje não foi encontrado. Major na época, Belham era o comandante do DOI. Avólio contou que, por temer que o preso não resistisse ao interrogatório, teria levado o problema a Belham. Sua iniciativa foi confirmada à comissão pelo coronel Ronald José Baptista de Leão, então major e chefe do PIC, que o acompanhou no encontro com o comandante.

Belham teve total responsabilidade pela morte de Rubens Paiva, pela condição de chefe e pela presença do local. A Comissão da Verdade já conseguiu demonstrar como se deu a detenção de Paiva, como foi barbaramente torturado e que ele morreu no DOI. Só resta saber onde está o corpo. E o único que pode nos dizer é Belham — disse ontem o professor Pedro Dallari, integrante da CNV.

Os depoimentos de Avólio e Leão foram ouvidos ano passado pelo ex-procurador-geral da República Cláudio Fontelles, na época integrante da CNV. Leão, que morreu no início deste ano, revelou que Paiva chegou ao DOI pela porta dos fundos do quartel, levado por uma equipe do Centro de Informações do Exército (CIE). Ao tentar se aproximar da cela, teria sido impedido pelo major Rubens Paim Sampaio e pelo capitão Freddie Perdigão Pereira, sob a alegação de que “era um preso importante”. Sampaio e Freddie, já falecido, eram do CIE e tiveram os nomes envolvidos no desaparecimento de presos na Casa da Morte de Petrópolis.

Documento incrimina general

Convocado para esclarecer a participação no episódio, o general Belham negou o envolvimento na morte de Paiva e apresentou uma página de suas alterações (espécie de currículo militar) para comprovar que estaria de férias durante a prisão e desaparecimento do ex-deputado. Porém, esse mesmo documento o incriminou, pois revela que as férias dele foram suspensas nos dias 17, 20, 23, 26 e 29 de janeiro para “deslocamento em caráter sigiloso”, inclusive com o pagamento de diárias.

Ele não apenas foi visto no local, como um documento arrecadado na casa do coronel Júlio Molinas Dias (ex-comandante do DOI assassinado no ano passado durante assalto em Porto Alegre) registra a entrega a Belham de dois cadernos de Rubens Paiva no dia de sua chegada ao DOI — disse Dallari.

Chamado pela comissão, Belham, que tem 80 anos, recusou-se a prestar novo depoimento. Alegou, por intermédio do advogado, que deverá ser denunciado pela morte de Paiva na Justiça Federal. Para contornar o problema, a CNV tentará convencer a Câmara dos Deputados, onde Paiva exerceu mandato, a convocar o general reformado pela via de comissão parlamentar.
Até então, a presença de Paiva nas masmorras do DOI fora reconhecida pelo ex-tenente médico Amilcar Lobo (já falecido). Ele disse que deu assistência a um “desaparecido político”, a quem viu “moribundo, uma equimose só e roxo da raiz dos cabelos às pontas dos pés”, numa cela do DOI. Em depoimento recente à Comissão Estadual da Verdade e ao Ministério Público Federal, que também investigam o caso, o então major Raimundo Ronaldo Campos admitiu ter montado, por ordens superiores, uma farsa para forjar a fuga de Paiva. Com a ajuda dos irmãos e ex-sargentos Jacy e Jurandyr Ochsendorf, ele atirou na lataria de um Fusca e o incendiou no Alto da Boa Vista, no Rio.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

René González: 'Foi muito difícil deixar o país e ficar como traidor'




http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Rene-Gonzalez-Foi-muito-dificil-deixar-o-pais-e-ficar-como-traidor-/6/30352



Carta Maior, 26/02/2014

          

René González: 'Foi muito difícil deixar o país e ficar como traidor'



Martín Granovsky - Página/12


É manhã em uma casa de Havana, uma cidade inundada de pesquisadores que participam do Congresso Universidade 2014 e por editores e escritores convidados para a Feira do Livro.  O sujeito com altura de jogador de basquete que, antes da entrevista, conversa com um dos especialistas, Pablo Gentili, o secretário-executivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, está tranquilo. É um dos cinco cubanos que foram processados nos Estados Unidos depois de se infiltrarem em Miami para buscar informações sobre os violentos grupos contrários ao governo de Fidel Castro. René González é o único dos Cinco que está livre. Os outros continuam presos.

Eu gostaria de uma definição dos Cinco dada por um deles.

Antes de tudo, somos cubanos comuns. Somos filhos de um país que, assim como nós, teve muitos filhos. Crescemos sob a ameaça do terrorismo, presenciando como a morte era imposta sobre Cuba, especificamente a partir de Miami. Tivemos que participar de enterros de compatriotas que haviam sido assassinados por grupos terroristas estabelecidos em Miami com o apoio do governo norte-americano. E como cubanos, nos pediram que nos infiltrássemos nesses grupos.
Dissemos que sim e o fizemos. Como resultado dessas ações, o governo norte-americano nos prendeu em 1998 e nos submeteu a um processo mentiroso. A natureza desse processo foi o que provocou que esta história tivesse acontecido e que muitos já nos conheçam ao redor do mundo. Até hoje eu sou o único que está em liberdade e meus quatro irmãos continuam na prisão. Bem, basicamente esses são os Cinco.

Como foi o início da missão de se infiltrar? O governo cubano pediu, ofereceu ou ordenou que fizessem?

Eles me pediram. Essa não é uma missão que se possa ordenar. E não sei o que há para oferecer. É puro sacrifício. Ao me pedirem, insistiram para que eu pensasse porque era uma missão muito arriscada. Não pensei muito e disse que sim.

Era uma missão arriscada ou suicida?

Se tudo corresse bem, sairia ileso. Nós não perdemos a vida, tivemos que ir para a prisão. Quando falo com os jovens de Cuba, eu digo: 'Esta é uma missão que, se vocês não querem, não digam sim'. Eu não acredito que isso tire o mérito de alguém. Sinceramente, há muitos riscos e requer características que você nem acredita no momento em que te propõem a missão. Isso você vai descobrindo.

Que características?

Sou um sujeito bastante aberto e, para mim, é custoso fingir, no geral. E nunca pensei que pudesse fazer isso, realmente para mim foi o mais difícil. Foi inclusive daqui. Eu às vezes digo que foi mais difícil aqui do que lá. Porque aqui tive que fingir, antes de partir, para os meus irmãos, meus companheiros, para pessoas que me apreciavam e me tinham em grande estima. E, de súbito, tive que me transformar em alguém diferente do que eu era. O lado bom é que isso foi me ajudando, porque você vai dando alguns passos, mas vai avançando, primeiramente, com um pouco de trabalho, um pouco de dor, porque você não quer decepcionar uma pessoa cuja confiança você estima. Foi difícil ter que deixar o país e ficar para eles como um traidor, como uma pessoa que os havia abandonado. Fiz como outro qualquer faria, como qualquer policial do mundo que precisa se infiltrar em uma gangue de criminosos sem ser um criminoso. Por isso, quando nos prenderam, senti alívio por poder voltar a ser eu mesmo.

Em que consistiu o fingimento inicial em Cuba?

De ser um militante, vai se transformando em uma pessoa que começa a se decepcionar, a se iludir. Mas não perdi o apreço dos meus companheiros. As pessoas, de modo geral, são generosas e relutam em aceitar que você mudou tanto. Esse é um instituo natural. Consideravam que eu continuava sendo boa gente. Enquanto isso, renunciei à minha carreira. Era piloto. Como comecei a trabalhar em esportes aéreos, havia um espaço para voar.

A missão incluía roubar um avião em Cuba e cruzar a Flórida?

Sim. Eram tempos difíceis. Em 1989 e 1990, o país começava a sentir os efeitos da queda do campo socialista. Obviamente, isso se refletiu no esporte aéreo e voar ficou mais difícil. Em um final de semana, consegui trabalhar como controlador de voo. Por uma dessas coincidências do destino, foi um argentino que me levou ao lugar onde os paraquedistas saltavam. Ele se chama Santiago, um sobrinho do Che que era paraquedista. Bom, nesse dia fiquei na torre. Os voos pararam porque o vento estava ruim e não acompanhava a atividade do salto. Desci, montei no avião e o levei. Já estava em um ponto sem volta. Tinha que continuar. Uma  vez que você continua, precisa ter êxito porque, se não tiver, é preso ou te matam. Na verdade, tinha pensado que, nesse fim de semana, levaria o avião na madrugada do dia seguinte.  Mas quando disseram que iam parar os voos, eu insisti para que colocassem gasolina no avião. Tinha 400 litros e não podiam colocar mais. Pensei: "Bom, com isso chego justo aos cayos da Flórida". E, de fato, cheguei bastante justo, mas cheguei.

Com que margem com esses 400 litros?

Nenhuma (risos). O voo durou uma hora e vinte. Fiz como um profissional, apesar de a decolagem ter sido um pouco catastrófica porque levei o avião na mesma rampa de estacionamento, sem alinhá-lo na pista. O avião não estava pronto para o voo. Depois da decolagem tive que orientar todos os instrumentos em dois ou três minutos. Eu me lembro bem de quando deixei a ilha. Meu coração apertou. Olhei para trás. Deixava tudo. Minha esposa, minha filha... Mas o piloto se impôs. O cálculo da potência me tomou muito tempo, como fazia para ir mais rápido de Cuba sem gastar muito combustível e depois como reduzir para economizar combustível. Finalmente, subir para procurar um pouco de visibilidade para encontrar os Cayos da Flórida. Bem, e já ao final do voo, a decisão de me lançar. Por um momento, pensei que teria que me atirar na água porque não via os cayos.

Paraquedas ou amaragem?

Amarar perto de algum barco.

Idade naquele momento?

Tinha 34 anos.

Ou seja, menos de três anos no dia da Revolução Cubana, em 1 de janeiro de 1959.

Minha geração foi uma geração que absorveu muito da revolução. Eu nasci em Chicago em 1956. Meu pai se integrou ao Movimento 26 de Julho de Fidel Castro, quando Fidel já estava em Sierra Maestra. Na ocasião da invasão da Baía dos Porcos, em 1961, foram às ruas protestar e foram agredidos em Chicago. Decidem que sua sorte estava voltada para Cuba e, então, vêm para cá em um dos últimos barcos que naquela época estavam oferecendo viagens entre Nova York e Havana. Eu tinha apenas cinco anos e somente algumas recordações. Em uma ocasião, minha mãe foi cuidar dos preparativos para a viagem a Cuba e me deixou com algum amigo ou com uma família. E ocorreu à pessoa me colocar uma peruca. Eu me lembro da minha mãe entrando escandalizada porque não me reconheceu.

Lembro da viagem que fizemos de Chicago a Nova York de carro, de alguns lugares onde paramos para comer, como eu e minha mãe dormíamos na parte de trás do carro. E também lembro da viagem de barco, imagens, assim, do barco, da cozinha, da piscina do barco, Guadalupe. Em Cuba, meu pai foi trabalhar na construção de uma fábrica. Nesse tempo, o Che Guevara era ministro da Indústria e estavam construindo muitos conglomerados industriais para unificar atividades que estavam dispersas. E então, meu velho trabalhou em uma fábrica de plásticos e lembro que ali vi o Che casualmente. Dei a mão para ele e tudo, eu já tinha oito anos quando eles terminaram de construir a fábrica e o Che a inaugurou em dezembro de 1963. O Che era adorado pelas pessoas. Quando ele terminou, passou pela multidão e as pessoas começaram a saudá-lo. Meu irmão e eu, que estávamos na plataforma oposta, pedimos aos nossos pais para cumprimentar o Che, descemos, nos enfiamos entre as pessoas, chegamos onde ele estava e começamos a dizer: "Che, Che". Passou a mão pela minha cabeça, me deu a mão. E para o meu irmão também. Disso nunca esqueci.

Voltando ao voo aos cayos e ao objetivo de aterrissar vivo.

Tinha que ir para o norte, mas o vento estava forte pela esquerda, do noroeste. Saí, voei com potência máxima por uns cinco ou seis minutos para me afastar rápido das costas de Cuba, muito perto da água, a dois ou três metros de altura. Uma vez afastado o bastante, reduzi a potência econômica para poder voar mais tempo, mais longe. Eu me mantive assim por um tempo para escapar dos radares cubanos e evitar a interceptação cubana, até que calculei que já deveria estar perto dos cayos da Flórida. Decidi então subir e me afastar da água para ter visibilidade.
Nesse esquema eu ia a 180 quilômetros mais ou menos. Os indicadores de emergência do combustível começaram a acender. Este avião tem dois tanques, um em cada ala, e cada um dos tanques tem um indicador para quando faltarem 75 galões. Vi barcos. Decidi voar por cima deles. Se, depois do último barco, não visse terra, me atiraria na água ao lado do marco para que me tirassem. Sobrevoei o primeiro barco, o segundo, o terceiro, comecei a contar e pensei: "bem, aqui não há opção, cinco minutos e, se não vir terra, volto e me jogo ao lado do barco".
Passei por cima do barco e comecei a ver o relógio. Um minuto, dois minutos, três minutos, quatro, cinco... E a terra. Uma coisa incrível. Pensava em ir à base de Boca Chica, que é a base naval que os norte-americanos têm em Key West. Nesse momento me senti como Cristóvão Colombo. Pensei: "bom, pelo menos em qualquer lado que eu me atirar é perto da terra e aí a terra estará". Quando a visibilidade começou a clarear, ou seja, me aproximar, o que eu tinha primeiro diante de mim era a base de Boca Chica, então tudo saiu perfeito. Me joguei. Foi uma aterrissagem bastante brusca. Eu estava muito tenso. O avião deu vários trancos.
Lembro que, quando parei o avião, fiquei no meio da pista com o motor em baixo rendimento. Eu levava uma garrafa térmica de café, abri, me servi, tomei e atirei a garrafa para trás. Ficou tombando por aí. Olhei para trás e comecei a relaxar, até que as autoridades chegaram. Há quem diga que toda aterrissagem da qual você possa sair caminhando é uma boa aterrissagem. Bem, foi este o caso. O trâmite foi rápido porque eu nasci nos Estados Unidos e apresentei minha certidão de nascimento. Na verdade, eles não sabiam o que fazer comigo porque normalmente levam o imigrante a um centro de detenção da imigração. Ao final localizaram minha avó, fizeram um trâmite bastante pessoal, com um senhor de origem cubana que vivia ali em Cayo Hueso. E ele me acolheu naquela noite. No outro dia, minha avó pagou duas passagens e eu fui com ela para Sarasota.

Isso não levantou nenhuma suspeita?

Meu pai não era uma figura pública. Saí da base e, em maio de 1990, acabei me instalando em Miami, na casa de uma tia-avó. Minha família dos Estados Unidos não era de revolucionários, e tampouco de militantes contrários à revolução. Era boa gente, de bons sentimentos, com uma longa história de relações entre Cuba e Estados Unidos. Gente sensivelmente nobre que tinha ido para lá nos anos 40. Nem anticastristas, nem fanáticos por política. Sua preocupação sempre foi familiar – tanto que fui bem recebido desde o momento em que cheguei lá quanto depois da prisão e tudo. Eu os estimo muito.

Como foi sua aproximação com os grupos anticastristas?

Eu repetia o credo. O credo de que, em Cuba, as pessoas rastejam pelas ruas, de que não têm o que comer, de que caem mortos, de que a política bate em todo mundo em qualquer esquina. Quando você me perguntou sobre a capacidade de fingir, eu disse que é mais fácil fingir lá. Primeiro, porque não exige nenhum ato de desprendimento. Mas, segundo, porque é curioso que, para eles, a única coisa que você precisa fazer é falar o que eles precisam ouvir: coisas más sobre Cuba.

Mas muitos diziam essas coisas. Qual era o diferencial, no seu caso?

A forma como cheguei. Com um avião roubado. Durante alguns dias, fui uma celebridade no Miami Herald.

Havia um objetivo especial nessa aproximação?

Eu ia vendo as circunstâncias e me aproximava de alguns grupos. Comecei pela CUPA, a Cuban Pilots Association, que era basicamente um grupo de pilotos. Muitos estiveram na Baía dos Porcos. Outros haviam sido mercenários no Congo.
Havia alguns famosos como torturadores na América Latina, como Félix Rodríguez El Gato, que foi o assassino de Che e também teve seus vínculos com torturadores e com a ditadura argentina. Hoje desfruta da hospitalidade e da benevolência do governo que o formou como torturador, os Estados Unidos. Muitos tinham ido do Congo para a Nicarágua. Alguns eram oficiais do Exército de Fulgêncio Batista.
Depois, me vinculei à HAR, Hermanos al Rescate, mais jovens do que os outros, embora criados por veteranos como o terrorista Luis Posada Carriles, um dos maiores criminosos do hemisfério. Meu objetivo era primeiramente coletar informação e enviá-la para Cuba. Depois, o governo se encarregaria de processá-la, analisá-la e fazer o que pudesse para desarticular ações terroristas dos grupos contra Cuba. Com isso, consegui que os narcotraficantes vinculados a esses grupos fossem presos. E isso também ajuda a desarticulá-los, pois era isso que lhes dava o sustento econômico. Fiquei por oito anos entre esses grupos, desde 1990 até 1998, quando fomos presos. Um era o PUND e o outro era o Comando de Liberación Unido, que também tinha outro narcotraficante, que identificamos e desarticulamos. E depois, no fim, fui incorporado ao que foi chamado de Grupo Democracia, que se dedicou a organizar flotilhas para vir provocar Cuba, entrar em águas cubanas, criar problemas entre os dois governos. E esse foi o último grupo em que entrei e no qual, bem… se fez minha a prisão. 

Como sua família reagiu quanto ao assunto e como foi a evolução disso?

Eu fui como desertor. Isso foi um baque muito forte para os meus pais. Eu não podia contar para ninguém, são ossos do ofício. É forte, essa é uma das coisas mais difíceis. Minha filha tinha seis anos quando saí de Cuba. A princípio, minha mulher dizia: “Aqui tudo parece indicar que esse é um avião com um desertor, então tenho que assumir isso dessa forma”. Depois ela me contou um pouco a história, ela começou a ligar os pontos. E começou a me incomodar e tive que dizer. Mas isso levou um tempo.

Por que, na opinião de vocês, o processo judicial foi fraudulento?

Eu me perguntaria: “O que não houve de fraudulento?”. O sistema legal norte-americano, o sistema federal, é repleto de disfunções. Não apenas para nós. Normalmente, eles aplicam um sistema que se apoia muito na capacidade de fazer uma negociação. Então, seu modus operandi é que eles te sobrecarregam. Vamos supor: uma pessoa foi pega traficando 10 quilos de cocaína, mas um de seus sócios traficou 30. Então, eles acusam também o primeiro dos outros 30 e lhe dizem: “Bom, nós vamos te dar uma sentença de vida, mas, se você colaborar conosco, nós tiramos esses 30, te deixamos com seus 10 e te damos cinco anos”.
Se você coopera, os promotores te usam para mentir e você tem que fazer tudo o que eles pedem para que o juiz dê cinco anos. E a primeira mentira que essa pessoa tem que aprender a dizer ao juri, eu diria que é a mentira fundamental do sistema, é que os promotores te prometeram isso, te propuseram isso, mas é o juiz quem decide. Estatisticamente, o juiz sempre decide aquilo que os promotores querem. E isso aconteceu com o nosso caso. E, desgraçadamente, é isso que trouxe o caso até aqui. Porque, efetivamente, nós tínhamos violado as leis norte-americanas, nós éramos agentes não registrados, o que implica uma sentença de dez anos, no máximo. Mas eles, para elevá-la, acusaram três de meus companheiros de espionagem e um de conspiração de assassinato por conta da derrubada dos aviões da Hermanos al Rescate no ano de 96. Mas nós dissemos:
“Vamos a julgamento porque não vamos aceitar acusações falsas”. Isso complicou tudo e assim estamos.

Eu não fui acusado de espionagem porque me ocupava exclusivamente de grupos paramilitares. Nunca tive nada a ver com informações militares. Mas houve companheiros que sim. Se você não procura informações classificadas, não é um espião. Não é um problema espiar o Estado ou não. Muitas pessoas confundem isso. Você pode procurar informações sobre o Estado, desde que não seja classificada por esse Estado. Mas você pode procurar uma informação civil de uma corporação que o Estado havia classificado porque lhe convém mantê-la.
Por exemplo, há um avanço tecnológico X, e o Estado e essa corporação entram em um acordo e a classificam. Mesmo que essa informação seja civil, se for classificada, se tem um selo que diz “secreto”, você está cometendo espionagem quando procura por essa informação. Eles confundiram o juri, fazendo com que acreditasse que, pelo fato de meus companheiros estarem procurando informações de natureza militar, eles haviam cometido ou estavam tentando cometer espionagem. Mas, na realidade, a informação que meus companheiros estavam procurando era pública, era informação visual, informação de jornais.

Quem foi o advogado?

A corte o designou. Eu o considero meu amigo. Fez um bom trabalho. O que acontece é que, se as instâncias que têm que aplicar a justiça não querem, não se importam com você ganhar. Eu comparo o nosso caso com o de um corredor de 400 metros. Ele chega primeiro ao final e o árbitro diz: “Não, quem vai ganhar hoje é o segundo porque eu quero assim”. Isso é o que os juízes disseram. Todo árbitro imparcial que olhou esse caso se deu conta de que é uma barbaridade e estamos falando…

Inclusive analistas jurídicos norte-americanos?

Analistas jurídicos norte-americanos, associações de advogados dos Estados Unidos. O comitê de prisões arbitrárias da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a Anistia Internacional, todos emitiram comunicados nos quais indicam que o julgamento foi injusto, que foi ilegal e que os padrões do devido processo não foram cumpridos.

Quanto vocês cinco demoraram para deixar de fingir?

Até que o julgamento se inicie, você não pode voltar a ser quem era. Nós mantivemos nossa discrição durante os dois anos de preparação do julgamento. Nós coordenamos isso. Primeiro, não podíamos admitir que éramos agentes de Cuba. Nossos advogados tiveram trabalho também. Como não lhes dissemos, eles foram os que vieram a Cuba. Ao final, o governo cubano confiou em seu profissionalismo. E se fez uma defesa muito boa. Realmente, no nosso julgamento, os papeis se inverteram. O Gerardo, que é caricaturista, fazia caricatura dos promotores, e aquelas caricaturas percorriam toda a sala, incluindo os que cuidavam da gente, e acabavam com o estenógrafo, porque as pessoas começaram a se dar conta de que o julgamento era uma farsa. E isso se sentia na sala. E, no dia em que nos declararam culpados, esses oficiais de justiça foram nos pedindo desculpas desde a sala até a cela. Uma coisa impressionante. Você fica impressionado quando uma pessoa que te vigia muda sua atitude até dizer: “Mas onde está a espionagem? Onde está o assassinato?”.
Começaram a ver nossas provas, as provocações da Hermanos al Rescate filmadas, divulgadas na televisão de Miami como se fosse engraçado. E eles mesmos nos disseram: “Mas como é possível que o governo cubano tenha demorado tanto para derrubar esses aviões?”. No entanto, eu nunca fui ensinado a odiar os Estados Unidos. Eu acredito que um país é muito mais do que seus promotores,  do que seu governo, e é muito mais do que o punhado de milionários que controla a vida desse país.

O advogado Horowitz, por exemplo, parece ter seguido regras baseadas na defesa dos direitos individuais.

Desde que tomaram a decisão política de cometer essa vingança – porque, no fim, tudo isso é uma vingança contra Cuba em cinco homens -, tomaram o caminho errado e tiveram que justificar esse erro com mais erros. No fim, acabaram fazendo o papel de ridículo na corte, acabaram sendo o motivo de chacota de todo mundo, pois eles assim decidiram. Se eles tivessem feito um trabalho decente, o caso teria se resolvido de outra maneira e eles não teriam de se rebaixar da forma como se rebaixaram. E ninguém realmente cobriu o julgamento na imprensa norte-americana. No início sim, o New York Times, mas quando julgamento começou a mostrar sua real natureza, a jornalista do New York Times desapareceu e nunca mais voltou. Então, quem o cobriu foi a imprensa de Miami. A maioria foi comprada. E foi o julgamento com sentença de espionagem mais longa da história norte-americana. Sete meses de julgamento com testemunhos orais e provas.
Três generais norte-americanos testemunharam voluntariamente pela defesa, para nos defender. Os promotores tiveram que trazer um por um – um general, que agora é James Clapper, o assessor de segurança nacional do Obama, que tampouco pôde dizer qualquer coisa quanto à espionagem. Um assessor do presidente norte-americano testemunhou. Falou-se da questão do terrorismo. O governo cubano contratou para apresentar o recurso na Corte Suprema o melhor que encontrou em Washington, um especialista em Corte Suprema, que também é analista da CNN: Tom Goldstein. E Tom Goldstein estava convencido de que colocaria o caso na imprensa.
Nos Estados Unidos, todos os dias se discute um caso judicial. O que comeu uma mulher, o que matou uma criança, o cachorro que comeu o vizinho… Tom Goldstein apresentou à Corte Suprema um briefing muito sólido. Conseguiu um recorde na história norte-americana de amicus curiae, que são briefings de “amigos da corte” no qual apresentou depoimentos de partes não interessadas ao processo, incluindo prêmios Nobel, parlamentares internacionais, associações internacionais de advogados, associações nacionais de advogados dos Estados Unidos – 12 amicus curiae, isso nunca tinha sido visto na Corte Suprema. E quando Goldstein chamou a imprensa, ninguém foi.

Quais são as perspectivas dos quatro que ainda continuam presos? Quais as desejáveis e quais as possíveis?

Teria que começar pelas sentenças. Um dos meus outros companheiros que sai em breve é Fernando González, sentenciado a 17 anos. Depois o Antonio, em 2017. Ramón, em 2024, e Gerardo foi condenado a duas penas perpétuas. Esse caso não será resolvido em âmbito legal. O âmbito legal foi um pretexto que serviu a uma decisão política que se tomou. Tomou-se a decisão política de se vingar de Cuba por meio de cinco homens. Houve um painel de três juízes que rompeu com essa decisão política, e depois isso se reverteu.
Eles mesmos reverteram ou foi outra instância?

Outra instância do mesmo tribunal. Mas tudo foi uma decisão política e eu acredito que a solução será igual: uma decisão política. Pode ser usando a via legal. Da mesma forma que sinalizaram aos juízes para que violassem a lei, podem sinalizar para que a cumpram. Nós sempre dissemos que a única coisa que pedimos é que se apliquem as leis norte-americanas, que não as distorça, que vejam os fatos, e que os apliquem às suas leis.

Como seria, em termos processuais, o caso das penas perpétuas? Um indulto presidencial?

Tecnicamente, o julgamento terminou. Mas há um recurso chamado recurso extraordinário. O recurso segue o mesmo caminho de todo caso legal. É apresentado à juíza. A juíza dá a sentença e vai à Corte de Apelações de Atlanta. E depois à Corte Suprema. Esse recurso está pendente. E ele se baseia em um erro crasso cometido pelo advogado do Gerardo quanto à estratégia de defesa. Ele defendeu muito bem seu cliente, mas cometeu um erro porque defendeu Cuba. E os promotores julgaram Cuba. O aspecto mais forte desse recurso é que o próprio advogado reconhece seu erro. Pensou em uma questão de um Estado contra outro, e que o Estado cubano tinha direitos. Mas cometeu um erro: pensou que era impossível que um juri decente não se desse conta de que Cuba tinha direito a defender sua soberania. E, em Miami, é impossível encontrar um juri decente.
Agora, os tempos mudaram. Há muitos sinais de que existe um cansaço quanto a essa política contra Cuba, sinais inclusive dentro dos próprios Estados Unidos.

Incluindo os cubanos que vivem lá. Há pouco tempo, saiu uma pesquisa mostrando que 56% dos norte-americanos dizem que já está na hora de mudar a política em relação a Cuba. Obama perdeu muito tempo tratando de mimar uma direita que não o quer nem por ser negro, nem liberal, nem jovem.

René, como foi o final da pena?

Foram quatro cruzes. Eu cumpri minha pena em 7 de outubro de 2011. Um ano antes, nós pedimos à juíza para me deixar em liberdade supervisionada em Cuba, o que é perfeitamente possível. A juíza tem o poder de modificar a liberdade supervisionada e permitir que uma pessoa a cumpra fora dos Estados Unidos. Os promotores sempre trabalharam para que a liberdade supervisionada fosse um outro castigo para mim e para minha família. Queriam me manter separado da minha gente por três anos. Além disso, teria cumprir liberdade supervisionada no mesmo distrito no qual estão os terroristas, os criminosos que contam com a cumplicidade do FBI e do governo norte-americano. Os promotores se opuseram ao pedido. Disseram que era prematuro, que era preciso esperar cumprir uma parte da liberdade supervisionada. Paralelamente, os promotores propuseram que eu renunciasse à cidadania norte-americana e, em troca, me deixariam vir para cá. Inicialmente, eu me opus.

Por quê?

Porque isso é um direito de nascimento. Uma pessoa não tem motivo para ceder seus direitos de nascimento. Mas depois pensei bem e disse a meus advogados que íamos aceitar a proposta dos promotores. Eu queria mais do que tudo estar com minha mulher, minhas filhas, meus pais, meu irmão. Os promotores fingiram que estavam interessados em chegar a um acordo que implicasse minha renúncia à cidadania em troca de vir a Cuba. Uns dias antes de eu cumprir minha pena, chamaram meu advogado e disseram que isso já não estava mais em negociação.
Dias depois, a juíza indeferiu a moção e eu tive que começar a cumprir minha liberdade supervisionada nos Estados Unidos. Então, graças a um amigo, consegui uma casa em um lugar da Flórida, o mais longe possível da prisão, vivendo na clandestinidade, recluso praticamente como se estivesse em um mosteiro, sem documentos, sem licença para dirigir, sem cartão de crédito.

Por quanto tempo?

Foi um ano e meio bastante difícil. Tinha a intenção de renovar a moção quando tivessem se passado uns meses, para que a juíza me deixasse vir para cá. Em fevereiro de 2012, estava batalhando com meu advogado para voltar a renovar a moção quando meu irmão ficou gravemente doente. Tivemos que postergar esse trabalho e pedir à juíza para que me deixasse vir por 15 dias, para ver meu irmão. Os promotores também se opuseram a que eu viesse para ver meu irmão, que estava morrendo. Mas a juíza, neste caso, assentiu. Por isso, digo que foi a terceira vez. Vim em abril de 2012.

Sua família já tinha ido aos Estados Unidos?

Minhas filhas sim, pois elas podiam. Minha esposa, não. Ela foi deportada e impedida de voltar para me ver. Eu retornei aos Estados Unidos e voltei em abril à liberdade supervisionada. Voltei a trabalhar com meus advogados para fazer a moção. Nós a apresentamos em junho para que a juíza me permitisse renunciar à cidadania.

De quem foi a decisão de continuar e levar o processo judicial até o fim?

Para nós, a palavra foi muito importante em todo esse caso. Em todo esse processo, nossa vantagem foi moral, e não vamos lhes dar de presente essa vantagem moral. Eles decidiram se rebaixar e nós decidimos nos elevar.

Você nunca teve dúvida?

Não, eu nunca tive dúvida, eu ia cumprir a pena. Não ia presentear a juíza com um argumento moral que nunca ganhou, depois de 15 anos, uma liberdade supervisionada. Se tivesse ganho antes… mas não agora. Nem a ela nem aos promotores. E eu dou risada agora porque, quando estávamos discutindo isso com meu advogado e os funcionários das Bahamas, eu dizia para o meu advogado:
“Melhor eles me deixarem entrar, porque se não eu pego um bote de Cuba, vou para lá, fico plantado na corte e digo para a juíza: ‘agora me prenda’”, porque eu não ia descumprir essa palavra que havia dado. Mas voltei, meu irmão faleceu, voltamos a apresentar a moção, os promotores de opuseram, e começou uma troca entre os promotores e a juíza, até que meu pai faleceu em abril de 2013. E, então, voltamos a fazer uma solicitação para vir de férias para estar com a família por conta do falecimento do meu pai. E a renúncia à cidadania norte-americana, com a qual caía o resto da pena. Renunciei à cidadania, a juíza recebeu os documentos, os admitiu. “Bom, está bem, você pode terminar a liberdade supervisionada em Cuba”, me disse.

E a família, René?

Estamos lidando da melhor maneira possível. No fim, ainda que tenha sido tanto tempo, para mim sempre o reencontro com a família é como se o tempo não tivesse passado. Tem sido tudo muito bonito, muito grandioso. Estamos juntos, estamos felizes, temos um neto agora, que veio para alegrar ainda mais minha vida e a da Olguita.

Em que atividade pensa em trabalhar alguém que viveu essa experiência?

Como piloto, eu gostaria de voar, mas reconheço que é muito difícil me integrar à aviação como profissional. Acredito que haja agora um campo na economia se abrindo. Muitos experimentos estão começando, temos que aprender muitas coisas, e eu gostaria de trabalhar na economia com alguma coisa, em um projeto de desenvolvimento local. Mas a ideia que tenho é essa, eu gostaria de trabalhar no processo de mudança que está sendo realizado: experiências novas de autogestão, experiências de relações mais horizontais entre as empresas, entre empresas e governos locais.

O passado te permite se adaptar à vida cotidiana de hoje?

Toda experiência te faz crescer. Se não te mata, engorda. E, obviamente, eu li muito na prisão. História, atualidades, Cuba… Eu estabeleci uma rotina forte de exercícios pela manhã e, durante a tarde, leitura, estudo. Comecei a estudar economia, inclusive na prisão. Eu me propus a sair da prisão melhor do que entrei. Disse: “Bom, se sair melhor do que entrei, essa vai ser a minha medida da vitória”. E assim foi. Eu acredito que sim, que a rotina que estabeleci na prisão me ajudou muito. Creio que fiz o melhor que pude.

Agora, aos 57 anos, depois dessa história, imaginemos uma volta aos 34 e um pedido de uma missão nos Estados Unidos. A resposta voltaria a ser a mesma?

Sim.


Tradução: Daniella Cambaúva